Público
Quinta-feira, 30 de Setembro de 2004
O "povo" devia ser uma abstracção, porque é suposto sermos nós todos do dito. Mas não somos. Há "nós", normalmente as elites, as "classes altas", e há "eles", os outros, o "povo", os "populares". As más-línguas, que sabem alguma coisa da Revolução Francesa, identificam logo essa distinção, colocando do lado de lá a "plebe", ou melhor, a "canalha". A "canalha" é o povo junto a fazer aquelas coisas que não agradam aos de cima, como seja falar alto, vestir mal, ser rude ou mostrar pequeno respeito pelo direito de propriedade. Depois, há a variante do "bom povo trabalhador", ou das "massas", uma salazarista, outra proletária.
Na prática, em democracia, o politicamente correcto é a abstracção do "povo", mas todos os dias a realidade social faz vir ao de cima a diferença. A publicidade e o marketing, que não cuidam dos pudores políticos, tratam com nudez e crueldade a diferenciação social: ele há as classes A, B, C e D; ele há uma "popular" para fazer propaganda ao Tide e ao Sonasol, e uma jovem tia em potência para os divãs e as viagens a Varadero. Não é que a jovem tia não use o Harpic, ou a "popular" não vá ao Algarve, mas a verdade é que não se anuncia um empréstimo bancário para jovens com o homem do Martini. Eles lá sabem porquê.
Recentemente, o "povo" entrou-nos em casa, pela porta da televisão, de duas maneiras: uma trágica e inevitável, outra ridícula e execrável. Refiro-me ao crime do Algarve, em que pode ter sido assassinada uma criança por familiares próximos, e essa é a tragédia da degradação que a pobreza e a exclusão trazem. Não "explica" nada, porque um crime é um crime e não há causalidades sociais que minimizem a responsabilidade individual, mas que a miséria conta, conta muito.
Agora o que é ridículo e execrável é o espectáculo dos "populares" à volta da tragédia, numa exibição dos piores sentimentos colectivos. Por esse "povo" não tenho nenhum respeito, nem por eles, nem pela televisão que os mobiliza e atiça, porque acho que a democracia não se faz só da igualdade e do maior número, faz-se da lei e dos costumes civilizados. E a turba dos mirones, ululante e voyeurista, não merece senão ser posta à distância. O PÚBLICO publicava há dias uma fotografia exemplar: uma fila de mirones dobrados, de rabo para cima, espreita por uma nesga do tribunal de Portimão. A um canto, uma câmara de televisão. Tudo explicado naquela metáfora da subserviência a uma curiosidade mórbida, que faz espreitar por uma fresta de uma janela, numa posição pouco decorosa.
Este espectáculo, aqui retratado no seu intenso ridículo, tem sido diário nas televisões. Um explica que já tinha vindo ontem e viera hoje de novo. Camisa vermelha berrante, que deve ser da mesma cor do carro que o trouxe. É também da mesma cor da do "assassino", cor de sangue. Pouco apropriada para o caso, porque aquele ar misto de boçal e imberbe não revela lá muitos apetites sanguinários, com excepção provável da cabidela. Outra, fala com a voz no limite da histeria: "Já cá estive ontem, todo o dia sem comer, até ia desmaiando", como se nós tivéssemos qualquer obrigação de lhe agradecer a dedicação à "menina". Uma rapariga nova, ar cheio de jovem mãe, de pernas abertas firme no solo, calças de ganga e "top", ri-se ao telemóvel. Outro, mais enredado em si mesmo, barba escura, talvez pescador pela pele tisnada, responde a uma jornalista: "Eu até acho mal que se matem os filhos..." Pois, deve achar. Três raparigas adolescentes passam de braço dado, com risinhos de cumplicidade, como se estivessem num centro comercial. Uma mulher, com o filho dependurado ao colo corre de um lado para o outro, para ver o carro da Judiciária, gritando "assassino". A criança, mais obediente às forças da natureza, força centrífuga, força centrípeta, lá oscila no braço da mãe. Muitas mulheres de puxo no cabelo são de lá, as com restos de permanentes são de fora. Uns homens de meia-idade, encorpados e de camisa aberta, clamam pela PIDE, outros valentões, encostados a uma carrinha, berram que se lhes fosse entregue o "criminoso", ele confessaria tudo ali mesmo. "Esborrachavam-no", palavra expressiva. "Deviam-no cortar aos bocadinhos", diz outro. Testosterona pelo ar não falta. Está calor
O que é que move todo este circo? O que é que os "populares" tinham ido lá fazer? Ver. Ver a polícia, ver o "assassino", ver a "mulher", ver a casa, ver as andanças públicas da polícia. "Ajudar", dando palpites, elaborando hipóteses conspirativas, abrindo tampas de esgoto - "fecha lá isso que aí não cabe a menina" - todos contentes por serem da polícia uma vez na vida. Vingar-se. De tudo, da vida que levam e que não levam, do emprego, do futebol do clube que não corre bem, da política, dos vizinhos. Há indignação, mas é muito residual, às vezes quase forçada.
O que os mobiliza não é uma causa nem um protesto, é uma mesquinha curiosidade, a vontade de ver um circo que todas as televisões transformaram em mais de dois terços dos telejornais, com directos absurdos para ocupar a inexistência de notícias que justificassem tanto aparato. A polícia ajuda, mostrando-se quando sabe que as televisões estão lá. O mecanismo pseudo-informativo repete-se vezes sem conta, e o resultado é sempre o mesmo: a excitação popular. Se houvesse um linchamento em directo, o que é que diriam as televisões? Perceberiam que elas próprias fazem parte dos linchadores? Que os crimes não se cometem só dentro daquela miserável casa de paredes brancas?
Historiador
Thursday, September 30, 2004
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