Público
Quarta-feira, 22 de Setembro de 2004
de António Barreto
Em duas longas crónicas publicadas no PÚBLICO, António Barreto dá conta da sua amargura perante o estado da educação em Portugal e os equívocos da esquerda, os quais segundo ele são os principais responsáveis pelo estado a que se chegou. Apesar de ter sido em tempos umas das vozes mais lúcidas da vida intelectual portuguesa, Barreto decide enveredar num estilo populista e desinformado que merece alguma reflexão.
Contrariamente ao que Barreto afirma não foi a esquerda que descobriu e difundiu este encantamento moderno com a educação e o seu potencial económico. É sobretudo a partir de finais dos anos 50 que um conjunto de economistas, em grande medida associados à Universidade de Chicago (já então grande baluarte do pensamento liberal nos EUA), resolvem enfatizar o papel que a educação poderia ter no enriquecimento individual e colectivo. Neste movimento da chamada teoria do capital humano, destacam-se alguns dos economistas contemporâneos mais influentes: Milton Friedman, T. W. Schultz, Gary Becker e Jacob Mincer (os três primeiros galardoados com o Prémio Nobel da Economia). Segundo estes autores as despesas em educação e formação deveriam ser encaradas, em grande medida, como investimentos que as sociedades e os indivíduos fazem de modo a aumentar a sua produtividade futura e a sua riqueza.
Estas ideias tiveram um impacto profundo no pensamento económico e político contemporâneo. Em termos de crescimento económico, as economias capitalistas deveriam apostar na qualificação dos seus recursos. No que se refere ao desenvolvimento económico, defende-se que os governos dos países mais pobres deveriam apostar em promover os serviços de educação, em vez de intervir directamente na actividade económica. Quanto à mobilidade social, caberia ao Estado criar uma situação em que os indivíduos pudessem ser responsabilizados pelas suas decisões e premiados de acordo com as suas capacidades intelectuais e com o seu investimento no desenvolvimento das mesmas.
A esquerda reagiu com muita desconfiança a tudo isto. Muitos acharam que juntar economia e educação era negar a nobreza da educação, horrorizados perante esta analogia das pessoas como um tipo de capital. Além do mais, achavam que era o capitalismo a vestir a pele de cordeiro e a tentar dar uma imagem benevolente do que a esquerda considerava ser genericamente uma relação de exploração produtiva. Aliás, entre os economistas mais importantes que resistiram e contestaram aquelas ideias encontram-se nomes como Robert Solow e Kenneth Arrow, referências de longa data da esquerda intelectual americana. (Ainda há poucas semanas apareceram como subscritores do manifesto dos prémios Nobel em apoio de John Kerry. Credenciais insuspeitas, portanto.)
Quanto ao caso português, Barreto considera notável que, apesar da grande expansão do sistema de ensino, o país não só não tenha beneficiado grandemente desses esforços, como claramente esteja bastante pior do que estaria se não fossem desperdiçados esses recursos em tentar educar a plebe. Aliás, não foi só o país que caiu no logro. Desde logo os antigos países socialistas, cuja terrível situação económica só se consegue explicar pela sua obsessão com a educação. Estes, que até têm em geral uma boa prestação nas tais comparações internacionais que são usadas para fustigar a má qualidade do nosso sistema. Nem isso lhes pode valer! Já agora, porque é que esses testes são bons para criticar o nosso e provar que a educação é um logro económico, mas já não servem para o contrário quando os resultados são bons? E porque será que os países mais ricos continuam a ter uma preocupação sistemática com o desenvolvimento dos seus sistemas de ensino, investigação e inovação? Será que terão sido tomados pelos vermelhos desempregados com o desmembramento das antigas economias socialistas?
Convém esclarecer que estas coisas da economia da educação entraram em Portugal nos inícios dos anos 60, por via do chamado projecto regional do Mediterrâneo. Este foi o primeiro grande projecto internacional do género e surgiu dum pedido do governo português à OCDE, que o aproveitou para pôr em prática os seus apetites de planeamento educativo. Também à época houve um conjunto de estudos apoiados pela Fundação Gulbenkian e coordenados por um dos pioneiros da economia da educação, o britânico John Vaizey, nos quais participou uma jovem economista, de seu nome Manuela Ferreira Leite (sim, essa mesmo!). Como se pode ver, uma trilateral de perigosos vermelhos: os ministros do professor Salazar, a Fundação Gulbenkian e a Dra. Ferreira Leite...
E que dizer de uma época em que o sistema de ensino se expande e a desigualdade de rendimento conhece um incremento? Este argumento também não é novo. Há mais de trinta anos, Lester Thurow e os principais economistas radicais americanos (que no contexto americano quer dizer bem vermelhinho...), têm afirmado algo semelhante. (Não deixa de ser irónico ver Barreto utilizar argumentos análogos àqueles que se propôs desmascarar...) Haverá, no entanto, que ter em atenção que, numa fase de expansão da educação, é de esperar que a distribuição desta variável seja mais desigual, logo, se o rendimento está mais desigualmente distribuído, quer dizer que a correlação entre as duas variáveis está a funcionar no sentido previsto. Ao aumentar o nível de formação duma sociedade, criamos condições para que alguns cheguem mais longe e por isso não é surpreendente que a distribuição de rendimento se torne mais desigual nessa fase de expansão. Em alternativa, aplica-se a "técnica Barreto": sempre que algo corre mal a culpa é da educação; se, no entanto, algo corre bem, isso já se deve a uma multiplicidade de factores e muito pouco à educação.
E que dizer do mercado de trabalho e da tendência inexorável para o crescimento do desemprego de licenciados? Será que Barreto ignora que os diplomados apresentam persistentemente as taxas de desemprego mais baixas do seu nível etário e têm em média muito menos dificuldade em encontrar um novo emprego? Isto num contexto de crescimento avassalador do sistema e apesar das conhecidas debilidades tecnológicas de parte do nosso tecido produtivo. Aliás, este argumento da educação para o desemprego tem antecedentes conhecidos, no caso americano, e mais uma vez são os já nossos conhecidos intelectuais (neo)marxistas. Como diria o saudoso Diácono Remédios, não havia necessidade!...
Nada disto desculpa o mal que se tem feito na educação em Portugal, mas não adianta arranjar uns bodes expiatórios fáceis. Eu gostaria que o sistema fosse mais exigente face aos alunos, professores, pais e políticos, e que houvesse menos burocracia, desorganização e instabilidade legislativa e governativa. No entanto, não tenho uma visão idílica de um passado que não existiu. Não posso (nem quero!) regressar a um passado em que só os intelectualmente muito bons e os abastados, mesmo que intelectualmente medíocres, conseguiam prosseguir os seus estudos. Mais dinheiro não é condição suficiente para melhor educação (há 30 anos que se sabe isto em economia da educação), mas convém que não haja dúvidas que, em educação, o barato costuma sair caro. Há problemas complicados na educação em Portugal, mas Barreto parece demasiado preocupado em ajustar as contas com o seu passado e o dos seus "compagnons de route" para ter o discernimento necessário para discuti-los seriamente. Quanto a isso, infelizmente não lhe posso valer.
Professor da Faculdade de Economia do Porto e Centro de Investigação de Políticas do Ensino Superior
Wednesday, September 22, 2004
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