Thursday, September 16, 2004

Media-esfera, Blogosfera e Atmosfera Por JOSÉ PACHECO PEREIRA

Media-esfera, Blogosfera e Atmosfera
Por JOSÉ PACHECO PEREIRA
Público, Quinta-feira, 16 de Setembro de 2004

Há cerca de um ano, escrevi sobre os blogues no PÚBLICO, coincidindo com a sua descoberta por um público mais vasto. Houve, em seguida, o habitual surto de breve fama, centenas de blogues foram criados e dezenas de artigos mais ou menos apressados, mais ou menos informados, foram publicados. Tudo quanto era órgão de comunicação social publicou pelo menos um artigo sobre os blogues. Depois os blogues passaram de moda, muitos dos blogues criados desapareceram, embora a "audiência" global dos blogues tenha aumentado significativamente, mantendo-se esse efeito até hoje. É altura de fazer um balanço deste novo tipo de publicação electrónica.

A blogosfera portuguesa mudou muito durante este ano, deixou de ser constituída por um pequeno grupo pioneiro, que a usava quase como um "espaço íntimo", para se tornar, de um dia para o outro (a rapidez é uma característica do meio), mais agressiva, politizada no mau sentido, ressentida e implicativa. Mas essa fase também já passou e o melhor dos primeiros tempos "íntimos" e o melhor da fase de democratização da blogosfera permaneceram. Cerca de 20 a 30 blogues portugueses fornecem todos os dias novas ideias, reflexões, informações, que um cidadão avisado e culto não deve perder.

Não tenho nenhumas dúvidas de que os blogues vieram para ficar, enquanto a evolução tecnológica não permitir a migração do que hoje se pode fazer num blogue para outra plataforma mais eficaz e superior. Enquanto tal, uma revolução está em curso, principalmente no âmbito do sistema comunicacional, e, a partir daí, afectando os sistemas que lhe são próximos: a política nacional e local, a crítica literária e artística, a divulgação científica, entre outros.

Nenhuma análise hoje do estado da comunicação social em qualquer país onde existe um sistema mediático - jornais, rádios, televisões - pode ser feita sem incluir os blogues. Veja-se o recente caso americano: dois blogues (Power Line e Little Green Footballs) contestaram a autenticidade dos documentos sobre o serviço militar de George Bush, que o prestigiado Dan Rather tinha divulgado no influente programa 60 Minutos da poderosa CBS. Prestigiado, influente, poderoso. Os documentos faziam imensos estragos na imagem de Bush, mostrando a existência de cunhas e tentativas de alterar os relatórios sobre a sua capacidade como piloto. Foram tratados pelos grandes media americanos como uma notícia de primeiríssima página, capaz de alterar a vantagem que Bush obtivera nas sondagens sobre Kerry, em suma, capazes de definir a contenda eleitoral. Os dois blogues, logo seguidos por muitos outros, analisaram os documentos e começaram a levantar questões: nenhuma máquina de escrever, à data putativa dos memorandos, era capaz de manter aquela ordem de espaços entre as letras, sobrepondo-se as mesmas frases escritas com o processador de texto Word sobre o texto antigo, não havia discrepâncias, etc., etc.

Outros blogues levantaram questões de conteúdo - um militar não colocaria aquelas questões no papel, havia uma discrepância entre a linguagem e a forma de outros memorandos do mesmo militar (que já morreu) e os apresentados pela CBS, etc. Outros blogues refutaram que houvesse falsificações e a CBS disse que tinha feito analisar os documentos por vários grafólogos. Foi só uma questão de tempo até que o assunto chegasse à grande imprensa, ao "Washington Post", que tem outros meios de investigação, e as dúvidas sobre a autenticidade cresceram. Analistas e grafólogos mostraram que não havia a unanimidade que a CBS garantia e toda uma nova série de investigações e depoimentos aprofundaram as dúvidas. A questão está em aberto, mas a controvérsia só existiu porque existem blogues e a Internet lhes dá uma audiência universal.

Em Portugal, o mesmo já se passa hoje. Excluam-se os blogues e a comunicação social seria diferente. Não porque os blogues sejam lidos por muita gente, mas sim porque são lidos pela gente certa. Os blogues são escritos por uma elite para uma elite, são escritos por estudantes, literatos, políticos, cientistas, investigadores, jornalistas, na maioria dos casos jovens e no início de carreira, e são lidos pelos mesmos grupos sociais e profissionais dos que os escrevem. Um grupo tem relevo especial neste ecossistema que é a blogosfera: são os jornalistas.

Os jornalistas, principalmente da imprensa escrita, vão hoje buscar imensa coisa aos blogues, umas vezes citam, outras não, e os leitores dos jornais desconhecem a importância dessa contribuição. Ainda recentemente uma notícia de primeira página do PÚBLICO teve origem num blogue. O jornal demorou uns dias a referir a fonte, mas depois fê-lo quando por todo o lado na blogosfera havia protestos. Num blogue, essa ausência de citação seria impossível porque a cultura do hipertexto torna a citação do outro um elemento identitário da blogosfera.

Ideias, frases e factos circulam na blogosfera e, quando verificados, dão ao resto da comunicação social uma dimensão complementar - mais memória, mais conhecimento especializado, mais variedade de temas, novos ângulos de aproximação a um assunto, mais imaginação, maior cobertura regional através de blogues locais. Uma leitura a fundo dos blogues locais poderia suprir muitas deficiências resultantes da ausência de correspondentes locais e revelar histórias bem interessantes. A verificação é fundamental, dado que há textos ficcionais, construções e pastiches que já enganaram alguns jornalistas (e autores de blogues) como sendo verdadeiros, dando origem a alguns embaraços. Há muito lixo, como é da natureza democrática e não editada da rede, mas há também muita coisa boa.

Querem exemplos, dos últimos dias, de questões umas pertinentes, outras testemunhais, outras curiosas? Por que razão os jornalistas, que são tão activos na "transparência" foram tão parcos em nos relatar a cerimónia maçónica nos funerais do presidente do Tribunal Constitucional? Quem lá esteve? Alguém tentou fotografar? Novas do interior dos concertos de Madonna por quem assistiu, pequenos detalhes saborosos. Teorias conspirativas sobre as saídas dos administradores da CGD com algum inside trading. Como é que se come (mal) nos aviões da TAP. Críticas aos números usados por António Barreto nos artigos do PÚBLICO sobre educação. A informação de que ainda está disponível nas livrarias um livro de Hayek, supostamente esgotado. Testemunhos de levar as "encomendinhas" à escola por jovens pais e mães. Desmontagens várias do spin governamental, com exemplos para se perceber muito bem como funciona a "central de informações" e, de passagem, muito incómodos para os jornalistas que lhe dão ouvidos e caneta. Notas críticas da UE, da Constituição europeia, que quase não existem na grande imprensa, toda "europeísta". Por aí adiante.

Esta circulação rica e diversificada, em tempo quase real, constrói um tecido mais complexo à volta de notícias e interpretações e, em consequência, resulta muito crítica dos media tradicionais. É nos blogues, e na sua diversidade política e cultural, que se encontram as críticas muito duras à manipulação informativa que são impossíveis de fazer nos media. Estes são muito pouco sensíveis às críticas, quando não arrogantes, e os jornalistas não são exemplares na abertura ao escrutínio das suas práticas profissionais. Os noticiários manipulados de Rádio Bagdad (o petit nom da TSF) ou as críticas às fabulosas "análises" políticas de Luís Delgado são o "pão nosso de cada dia" nos blogues, e merecem ser lidas porque não são invectivas genéricas - têm exemplos que deviam incomodar todos, e, a prazo, incomodam cada vez mais.

Claro que os blogues estão longe de ser apenas um órgão de "jornalismo informal", como Mário Mesquita lhes chamou, e incluem outras dimensões que podem ter um carácter literário, sociológico e mesmo científico, como instrumentos de investigação. Penso, aliás, que as virtualidades literárias e estéticas da fórmula "diário-em-linha", em conjugação com inovações tecnológicas do software como o MyLifeBits da Microsoft podem vir a permitir novas formas de criação estética. Mas, a curto prazo, tem sido o efeito na media-esfera o de maior impacto.

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