Sunday, September 26, 2004

A Tia Clotilde e o Estado Por ANTÓNIO BARRETO

Público
Domingo, 26 de Setembro de 2004

ão era metediça, nem autoritária, antes pelo contrário. A minha Tia Clotilde gostava dos sobrinhos e tratava-os, desde sempre, como adultos. Tinha, perante a vida, uma atitude calma, que se traduzia numas dúzias de máximas e de directivas simples. Quem as quisesse seguir, muito bem. Quem não quisesse, era o seu problema. Quando, por exemplo, me preparava para viajar, já sabia que a sua última frase seria: "Não desças do comboio em andamento"! Quando sentia que estava a ultrapassar o seu papel de Tia amiga, terminava as suas advertências com uma conhecida sentença: "Era para teu bem!". É nela que penso hoje, todos os dias, cada vez que vejo o Estado ocupar-se do meu bem. Só que, com ela, era sincero. Com o Estado, tenho as maiores dúvidas. Que os padres, rabis, gurus e pastores de qualquer religião queiram impor comportamentos aos seus fiéis e seguidores, é lá com eles. Mas o Estado? Mesmo quando não está em causa o prejuízo claro de terceiros?

O Parlamento inglês acaba de aprovar uma lei que proíbe os pais de baterem nos seus filhos. Dos Comuns, vinha uma lei radical que condenava e transformava em crime qualquer acto violento por parte dos pais, incluindo bofetadas, cachaços, palmadas no traseiro, etc. Os Lordes, mais comedidos e menos zeladores, decidiram suavizar: proíbem os gestos violentos, mas permitem os que não deixam marcas! Imagino o que venham a ser as discussões técnicas e jurídicas à volta de uma nódoa negra, um vermelhão ou uns dedos encarnados na bochecha... A justificação central desta lei é a protecção das crianças. Para seu bem, pois claro. Parece simples, mas não é. A lei levanta problemas muito sérios, políticos, morais e filosóficos, incluindo os que dizem respeito à função da família, à autoridade do Estado dentro das quatro paredes de um lar, aos métodos de educação, ao incitamento à denúncia e à delação e aos efeitos perversos de uma lei como esta (Que se faz depois para proteger as crianças? Internam-se? Entregam-se a uma instituição tipo Casa Pia? E os Pais? Prendem-se?). Mas a verdade é que as modas actuais são estas e não acredito que haja países que venham a escapar. Mais tarde ou mais cedo, esta lei chegará a Portugal. Ninguém resiste à demagogia e ao populismo fácil. Tendo deixado de proteger as indústrias e a agricultura nacionais, o Estado concentra os seus esforços a proteger-nos a nós!

A proibição, que considero um bem, de castigos físicos nas escolas, tem fundamentos sólidos. Quem bate é um agente do Estado (ou de uma escola privada, ou de um seminário, ou de um regimento militar), em nome de um poder burocrático e de uma autoridade discutível. A protecção das crianças, neste caso, tem um sentido. Até porque a função dessas instituições é a de ensinar, não a de educar. E, mais do que proteger as crianças, trata-se de diminuir ou limitar os espaços de crueldade que as sociedades contêm. Os verdadeiros responsáveis pelos filhos e pela sua educação são os pais e restantes familiares, não os professores ou os assistentes sociais. Apesar de considerar que os castigos físicos, mesmo os administrados pelos pais, são geralmente condenáveis e traduzem deficiências de carácter e de afectividade dos progenitores, não me resigno a ver facilmente o Estado entrar uma vez mais por nossas casas dentro, para nosso bem, pois claro. E não me deixo comover com os argumentos dos exageros: para os casos típicos de violência, existem já leis suficientes que permitem julgar e eventualmente condenar qualquer gesto excessivo, incluindo os da autoria dos pais e familiares.

As formas de tratamento das crianças, capítulo particularmente sensível, têm merecido desmedida atenção, a ponto de ser hoje difícil adoptar um comportamento simples e natural. Tocar numa criança "ao de leve", eventualmente com carinho, começa a ser suspeito. Mas tocar numa criança com força, ou dirigir-se-lhe com autoridade, está à beira de ser crime em certos países. Já o é nalguns. De qualquer maneira, parece irreversível a ideia de que o Estado, as Igrejas e outras instituições são geralmente capazes de tratar melhor as crianças do que os pais e as famílias.

Já lá vai o tempo em que a acção do Estado, nestes domínios, se dirigia essencialmente a proteger uns dos outros, não cada um de si próprio. O Código da Estrada, por exemplo, foi ditado não só pela necessidade de regular uma actividade colectiva, o trânsito, como também pela tentativa de evitar abusos e agressões, nomeadamente dos condutores contra os piões e os ciclistas. Lentamente, as coisas mudaram. Os cintos de segurança, por exemplo, já têm uma justificação explícita diferente. Trata-se de proteger, não terceiros, mas o condutor contra si próprio. Além das companhias de seguros, dos serviços de saúde e do orçamento de Estado.

O tabaco é outro bom exemplo. Os grandes argumentos colectivos foram os primeiros. Fumar aumenta a poluição. Fumar é uma agressão contra os que não querem fumar. Ou fumar em locais fechados e públicos pode causar danos e incómodos a muita gente. Simplesmente, tais argumentos acabaram por perder força e sentido. Hoje, a luta contra o tabaco é, evidentemente, para nosso bem, do fumador. Fumar faz mal à saúde e é indiferente o que o próprio possa pensar sobre o assunto. Com bons e maus motivos, com boas e más intenções, a verdade é que a liberdade individual está a diminuir e que a privacidade está a ser ameaçada. Maus motivos? Más intenções? Com certeza. As modas do dia alimentam a demagogia. O desejo universal de ser eterno, belo e saudável transformou-se em pressão sobre os governos. A esperança infantil de ver o mundo conservado, equilibrado, harmonioso e límpido é uma razão de viver para muita e virtuosa gente, a que os governos não sabem resistir. Mas há ainda, finalmente, a razão última e com certeza mais importante: o Estado quer poupar dinheiro com a saúde, os hospitais, as baixas e os acidentes mais variados. Por isso se preocupa connosco. Com cada um de nós. Com o que se passa em minha casa.

Tudo começa com estudos e relatórios médicos. Depois, seguem-se os militantes da virtude, os lobbies de causas ecológicas e as almas cristalinas. Lá chega o dia em que os governos começam, primeiro, a fazer recomendações. Depois, incentivos oficiais. Finalmente, as proibições e a criminalização. O percurso do tabaco é o exemplo mais evidente. O que não impede a União Europeia de, ao mesmo tempo, proibir o consumo, subsidiar disparatadamente o cultivo de tabaco e impor taxas astronómicas. Mas depois do tabaco (ou antes) teremos um sem número de bens e comportamentos que seguirão a mesma via. Para nosso bem, pois claro. Mas em detrimento da nossa liberdade.

O álcool, a gordura e os hambúrgueres estão sob a mira dos zeladores. Os saltos altos das senhoras (gastam-se milhões por ano com entorses e outros danos na coluna), os brinquedos das crianças e certos tecidos já estão a ser estudados. As recomendações já existem, desde a ginástica quotidiana aos preservativos em qualquer circunstância, passando pela peça de fruta oferecida nas escolas, o copo de leite e uma dieta de fibras vegetais. Daqui à proibição e ao crime vai um passo. Sempre na esperança de que se as pessoas forem perfeitas e eternas não se gasta tanto com a saúde. E para nosso bem, claro. E não se pense que exagero. Nos Estados Unidos, depois dos recintos fechados e dos locais públicos, já há praias, jardins e parques onde é proibido fumar! Tanto lá como na Europa, já há localidades onde, em certos estabelecimentos públicos, mesmo que os donos e os clientes queiram o contrário, é proibido fumar. Como será, um dia, proibido beber, comer alimentos que favoreçam a obesidade ou entregar-se a actividades sexuais não protegidas.

Em Inglaterra, as companhias de telefones instituíram um método para nos proteger. A quem aluga uma linha, os serviços impõem um limite mensal de chamadas. Protestei e tentei eliminar o limite. Como não sou residente permanente, foi-me dito que era obrigatório. Apenas podia, eventualmente, elevar o limite. Ao inquirir sobre as razões de tão absurda medida, foi-me dito que era para meu bem! Uma pessoa pode distrair-se e deixar a conta ultrapassar o limite razoável! Como não acreditei, acabei por saber as razões verdadeiras: não querem que os clientes fujam, paguem a prestações e tenham dívidas. Para bem da companhia, pois claro.

Toda a gente ri com a leitura das proibições ridículas em vigor em certos municípios e Estados americanos e que dizem respeito à vida de cada um, e que vão desde a sodomia (mesmo entre adultos homo ou heterossexuais, mesmo em casa, mesmo entre casais legalmente constituídos) até a práticas mais ou menos estranhas com animais. Mas não vale a pena rir com a superioridade moral dos europeus. Por nossa conta, bem europeia, estamos a caminhar a passos largos para esses e outros absurdos.

De acordo com a literatura (neste caso, jornais e revistas), esperam-nos aí leis esclarecidas que, para nosso bem e para glória das virtudes humanas, vão mudar muitos dos comportamentos que julgávamos os mais anódinos. Espera-nos aí a obrigatoriedade (imposta sob pena de multa...) do uso de cremes contra o sol e de preservativos, de consumo de uma peça de fruta e de um copo de leite quotidianos, de uma hora de passeio a pé por dia, da frequência de aulas de comportamento cívico e de cursos de relações sexuais e afectos (os portugueses dizem, oficialmente, "de saúde reprodutiva"...), sem falar na proibição de ingestão de bebidas com açúcar, de refrescos gasosos, de chocolates, rebuçados e de "hambúrgueres". Alguns destes comportamentos virtuosos serão aliás alargados aos animais, como por exemplo, a proibição, já hoje legal em Inglaterra, de menores de 16 anos adquirirem "hamsters" ou peixinhos para os seus aquários. E já se discute mesmo o âmbito de aplicação destas novas regras, pois muitos dos comportamentos condenados sê-lo-ão mesmo dentro de casa. O que levanta o problema, menor para os virtuosos, do modo de vigilância e controlo. Enfim, coisa pequena!

Felizmente que o Estado zela! E me protege contra as más comidas, os maus hábitos, as más leituras e as más companhias!

N.R. - Estas reflexões de António Barreto não substituem a sua habitual crónica Retrato da Semana, que regressará ao contacto dos leitores no próximo mês de Outubro.

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