Thursday, March 31, 2005

As dores da direita (2) por José Manuel Fernandes

As dores da direita (2) por José Manuel Fernandes
Público, 31 de Março de 2005

Como criar uma agenda contraciclo com o ambiente político, social, cultural e comunicacional dominante?

Vimos ontem como a herança do corporativismo salazarista, hostil à economia de mercado e à concorrência, e da revolução de 74/75, com a sua matriz socialista, se conjugam para, num país pobre e com pouca tradição empresarial, criar uma cultura política que, no domínio da economia, é iliberal. Pior: não é apenas uma sociedade que cultiva a solidariedade social assegurada por sistemas públicos, ou que prefere partilhar os rendimentos individuais em nome de uma maior igualdade - é uma sociedade que desconfia da iniciativa privada, é avessa ao risco e tem mais inveja dos ricos do que verdadeira piedade pelos pobres.
Este ambiente geral, esta forma de estar com muito de pré-moderno, de oposto aos valores burgueses que asseguraram o sucesso económico dos países mais dinâmicos, é muito desfavorável à afirmação de políticas liberais. Assim, se a velha direita é iliberal, os liberais de todas as sensibilidades - não só os de direita - sentem em Portugal verdadeiras dificuldades. Não é por acaso que, à direita, se fala mais depressa de democracia cristã ou até (por equívoca tradição) de social-democracia do que de liberalismo económico. Como não é por acaso que se receia separar águas e, no poder, se actua de forma ou titubeante ou incoerente: basta pensar no que os governos de Barroso e Santana não fizeram para estimular e regular a concorrência ou na forma como preferiram proteger os "negócios" que medram à sombra do Estado.
Os resultados já citados do referido inquérito sobre o posicionamento político - a Bússola política disponível no site do PÚBLICO - também mostram que os portugueses são mais depressa libertários do que autoritários (ou pelo menos assim se declaram).
Aí o paradoxo é outro, pois aquilo a que assistimos nas últimas décadas foi a uma profunda ruptura do quadro de valores dominantes. A rápida transição do autoritarismo para a democracia, por um lado, e de uma sociedade onde um terço da população vivia no campo para outra onde apenas um vigésimo viverá da agricultura criou um país que, mesmo sem ter vivido intensamente os sobressaltos da contracultura do anos 60, os integrou de forma quase instantânea, acriticamente e sem resistência.
Um dos sinais mais evidentes desta evolução é a radical alteração do peso e do papel da Igreja. Domingo passado, Vasco Pulido Valente admirava-se, recordando os últimos dois séculos de história, por os que pretendem refundar a direita não falarem da Igreja, quando esta foi sempre central nas clivagens entre a esquerda e a direita, do miguelismo ao jacobinismo republicano, do salazarismo ao PREC. É verdade que foi - mas já não é, ou não é da mesma maneira. Primeiro porque a Igreja implodiu enquanto força com peso e influência políticas determinantes - tanto encontramos padres a publicar anúncios radicais "de direita" como encontramos membros de órgãos muitos próximos da hierarquia (como a Comissão Justiça e Paz) a candidatarem-se às eleições pelos radicais "de esquerda". Depois, porque a doutrina da Igreja - cujos templos estão vazios - está a perder a batalha cultural, substituídos que estão a ser os seus valores pelos do "politicamente correcto". A Igreja ainda conta para realizar um bonito casamento - mas a religião nada pesa no momento da separação. Não é pela Igreja ou com a sua ajuda que a direita irá a algum lado.
O que lhe coloca o desafio de construir uma identidade em ruptura não só com o seu passado mas também em contraciclo com o ambiente político, social, cultural e comunicacional dominante.
(termina amanhã)

As dores da direita (1) por José Manuel Fernandes

As dores da direita (1) por José Manuel Fernandes
Público, 30 de Março de 2005

O primeiro problema da direita é que em Portugal a cultura político-económica dominante é iliberal

Aquando da corrida à liderança do PS, o PÚBLICO desafiou os três candidatos a responderem a um inquérito político que ajudava a posicioná-los de acordo com dois eixos: mais à esquerda ou mais direita e mais autoritários ou mais libertários. Tratava-se de uma adaptação - literal - de um barómetro anglo-saxónico, The Political Compass, que os nossos leitores podem encontrar, e preencher, no nosso site na Internet, sob a designação "Bússola Política".
Sem surpresa, os três candidatos à liderança do PS surgiram colocados no quadrante da esquerda libertária. Mas os que decidiram fazer a experiência de preencher o questionário e testá-lo em conjunto com amigos tropeçaram frequentemente numa surpresa: todos ou quase todos, mesmo os que se tinham por apoiantes dos partidos de direita ou centro-direita, ficavam nesse mesmo quadrante. Aquele onde estão os que são mais estatistas do que liberais em termos económicos (o critério que permite separar nesse inquérito esquerda e direita) e os que, em termos de valores, estão mais distantes da moral tradicional e menos valorizam a autoridade do Estado.
Uma boa parte dos problemas que atormentam os que querem "refundar a direita" têm a ver com este, chamemos-lhe assim, "desvio esquerdista-libertário" da opinião dominante em Portugal. Pelo menos por comparação com o padrão de referência anglo-saxónico do Political Compass.
E começa por atormentar devido ao ambiente cultural dominante ser, no que à economia diz respeito, iliberal. A "bússola" tende a colocar os que defendem uma maior intervenção do Estado na economia, os que "desconfiam" da bondade intrínseca da economia de mercado, os que consideram que ter lucros é pecado e os que são avessos ao risco no tal lado esquerdo do quadro. Ora em Portugal não é preciso ser de esquerda para desconfiar do mercado e da economia liberal: há muita gente de direita que pensa da mesma maneira. Neste domínio a cultura política dominante tanto é uma herança da Revolução - época em que até o programa do então PPD advogava o "caminho para o socialismo" -, como do salazarismo corporativista.
Se a primeira parte desta afirmação não levanta dúvidas, muitos desconfiarão da segunda. Mas esses deviam, por exemplo, ler como se explicava, aos jovens de 15, 16 anos, numa disciplina que então se designava por "Organização Política e Administrativa da Nação", as virtudes do Estado Novo. No compêndio único em vigor podia ler-se, por exemplo, que "o fim do Estado é realizar a solidariedade social e, por isso, não pode ficar inerte em face de conflitos de interesse e de egoísmos pessoais"; que "os indivíduos devem gozar de liberdade e de livre iniciativa, mas as liberdades individuais devem subordinar-se, sempre, aos superiores interesses da colectividade"; ou que o Estado "deve intervir como coordenador de vida económica". Por isso a Constituição de 1933 - a obra-prima de Salazar - definia no seu artigo 6º, de acordo com a síntese do compêndio, como funções do Estado "coordenar, impulsionar e dirigir todas as actividades sociais, fazendo prevalecer uma justa harmonia de interesses, dentro da legítima subordinação dos particulares do geral" e "zelar pela melhoria das classes sociais mais desfavorecidas".
Por comparação, o livrinho condenava os Estados liberais, pois estes acreditavam que "o equilíbrio social resultaria do simples jogo da liberdade e da livre concorrência". "Da excessiva liberdade resultaram as mais flagrantes desigualdades económicas e as maiores injustiças sociais." José Manuel Fernandes
(continua amanhã)

Sunday, March 27, 2005

Os cocós da Lapa por António Barreto

Os cocós da Lapa por António Barreto

Público, 27 de Março de 2005

A novidade da Lapa são os cocós. Não os equivalentes aos Betinhos, às Tias ou aos Queques, que também aqui são pletora, mas os cocós mais rasteiros, esses mesmos, os dos cães. Há cerca de dez anos, talvez quinze, começaram a sua invasão

Vivo na Lapa há mais de trinta anos. Depois do Passeio Alegre, na Foz, de Vila Real, da Régua, de Coimbra e de Genebra, fiz de Lisboa a minha terra. Mais propriamente, da Lapa. O bairro confunde-se com os seus vizinhos, Santos o Velho, a Madragoa, a Estrela, São Bento e até, resvés, Campo de Ourique. É o melhor de Lisboa. Até um notório Pé Fresco, João Soares, antigo presidente da Câmara, disse um dia que tinha especial ternura pela Lapa. Tinha razão. Como fica perto dos Prazeres, é aqui que quero morrer.

O BAIRRO TEM TUDO QUANTO É PRECISO. Para uma vida feliz, quer dizer. Tem casa pobre e popular, casa remediada, apartamentos, poucos "prédios", um ou outro condomínio fechado e tristonho, jardim aqui, jardim ali, solar, mansão e palacete. Há casas de todas as espécies, feitios e datas, algumas seculares. Tem vista para o Tejo, com ruas que parece descerem directamente nas águas. De certos pontos de vista, os barcos estão dentro de cidade. Além dos jardins privados, tem, desde o senhor Costa Cabral, o da Estrela, imponente, com pato e pavão, baloiço e bisca lambida. A seu lado, o pequeno jardim da Burra, segredo de namoros e charros. Aqui e ali, tílias e jacarandás enfeitam as almas. Há capelas e igrejas, velhinhas, não há templos do Estado Novo, graças a deus, mas também há a Basílica da Estrela a festejar, não se sabe bem, a gravidez da rainha ou o fim de Pombal. Todas têm sinos verdadeiros para dar horas, chamar às matinas e às vésperas. Não muito longe, a casa do Primeiro Ministro, com o jardim que já foi de Salazar, Caetano, Soares, Cavaco, Guterres e Santana. A dois passos, o casarão que foi dos monges de São Bento e é agora dos deputados ao Parlamento. Tem residências ou embaixadas para todos os gostos, da China à América, de França à Grã-Bretanha. Tem Universidade e Escola Superior, liceu e jardim escola, públicos e privados. Em quase todas as ruas, conventos e o que deles resta, das Trinas ou das Francesinhas. Tem alguns dos hotéis (York House e Lapa), restaurantes (Travessa e Guarda Mor), Casas de Chá e lojas de comida pronta (Chef) mais interessantes de Lisboa. Tem boas lojas de vinhos, incluindo uma só de mulheres, mas que também vende a homens. No comércio, há de tudo, drogaria e sapateiro, mercearia e picheleiro, ginásio e barbeiro. Tem lavadouro público e galerias de arte. Casa de fado e bar da noite. Não lhe falta supermercado, nem banco ou multibanco. Uma loja de Ferrari e Maseratti, vende agora o Smart. A piscina coberta é pública e os quiosques de jornais são quantos se quiserem. O tráfego não é grande coisa, como nenhures em Lisboa, mas melhor do que na maior parte da cidade. Os carros nos passeios, sobretudo os Jeeps, a fazer lembrar as viaturas americanas de Bagdade, são um martírio com que tem de se viver. O bairro está em vias de "gentrification", isto é, os "populares" vão saindo, ou morrendo, e para os seus lugares, depois de obras, vêm as classes médias, alguns intelectuais, gestores, artistas, estrangeiros e ricos de fresca data com um pouco de gosto pela cidade velha. Mas ainda faltam muitos anos para a Lapa perder o seu carácter.

VIVE-SE BEM, NA LAPA. O BAIRRO, AO contrário da sua reputação, é mais inter-classista do que a maioria dos de Lisboa. Tem canalizador e taxista, reformada e pensionista. Tem funcionário e secretária, empreiteiro e comerciante. Tem operário e notário, tem artista e diplomata. Tem rico dos antigos, tem novo rico da nossa era. Nunca teve menos de dois ministros de cada governo. Tem diplomata e cortesão. Tem a velha burguesia lisboeta e tem aristocracia, o que dela resta pelo menos. Tem ucraniano e africano, judeu e anglicano. Tem estrangeiro e boémio, cantor e trapezista. Tem mulher de vida fácil e indiscreta, tem homossexual recatado, tem toureiro e tem varina. Tem polícia, pintor, mulher a dias e professor. E a todos não falta snobismo: dizem que os lisboetas se dividem em duas espécies, os que vivem "para cá da Rotunda" e os outros. Eis quanto!

A NOVIDADE DA LAPA SÃO OS COCÓS. Não os equivalentes aos Betinhos, às Tias ou aos Queques, que também aqui são pletora, mas os cocós mais rasteiros, esses mesmos, os dos cães. Há cerca de dez anos, talvez quinze, começaram a sua invasão. São milhares, por todas as ruas. Isto é, por todos os passeios, que os cãozinhos não correm riscos. São de todas as formas e feitos, dimensões e idades. Pertencem a todas as raças, das mais caras de preferência. Mas sempre nos passeios. Andar na Lapa a pé, é um exercício de perícia e agilidade, a saltitar, nas pontas dos pés, a olhar para o chão. Anda-se como em terra africana de país minado. Os desgraçados dos cegos, esses, não têm solução. Vejo-os a resmungar e a sacudir os pés, após sentirem a maléfica consistência.

VIERAM, OBVIAMENTE, COM OS CÃES. Que, na Lapa, são de importação recente. De todas raças, com pergaminho e genealogia, substituíram os vadios e outros rafeiros. Chegaram com as classes médias, os artistas, os jovens gestores e alguns estrangeiros. Faz agora dez ou quinze anos. As elites portuguesas, logo copiadas pelas classes médias, habituaram-se aos cães de cidade. Quando, à volta do cão, têm jardim, quintinha ou herdade, não sobram problemas para os conterrâneos. Mas quando o cão de cidade é também de apartamento, começam os dramas da vizinhança. Na Lapa, há agora centenas deles. Vejo-os todos os dias. Às oito da manhã e à noite, pela trela do dono em fato de treino, a fazer o exercício e o passeio higiénico. O que quer dizer, a emporcalhar o passeio. O problema é que as mesmas elites e as mesmas classes médias que adoptaram a moda do cão, não adoptaram a moda da luva, do saco de plástico ou da vassourinha. Mal educadas, pouco esclarecidas, predadoras do espaço público, as elites portuguesas e as classes médias sempre se comportaram assim.

OS PORTUGUESES DETESTAM O ESPAÇO público, que sujam sistematicamente. No que são ajudados pela Câmara, que o esquece, maltrata e varre mal. Podem ser limpos em casa, é possível. Mas o bem comum é, para o nosso concidadão, desprezível lixeira ou fonte de rendimento ilícito. Tal como há cem anos, ou duzentos, as classes com meios adoptaram o que vinha de França e de Londres, sobretudo as rendas e o Chablis, mas não a leitura nem a limpeza, também agora os meus vizinhos adoptaram o canídeo, mas não a vassourinha. Felizmente que existe, como sempre, o Estado providência. Na verdade, a freguesia pôs à disposição dos residentes, cortesia do Estado, pás e luvas. Não temos emenda!

O anúncio por Carlos Vale Ferraz

O anúncio por Carlos Vale Ferraz

Público, 27 de Março 2005

Antes da prioridade ao aborto, os antecessores dos Movimentos Pró Vida criminalizaram a homossexualidade, em particular a sodomia, o prazer nas relações sexuais, especialmente o das mulheres, algumas formas de incesto e a infidelidade feminina

Oanúncio colocado neste jornal por um sacerdote da Igreja Católica de que não ministrava os seus sacramentos aos adeptos das práticas anti-natalistas que vão do preservativo à pílula e do dispositivo intra-uterino ao aborto, levantou um indignadíssimo clamor de estupefacção.
Em princípio sem razão para tal, porque o dito sacerdote mais não fez que exercer o direito de qualquer responsável por uma agremiação a negar o acesso aos benefícios estatutários aos sócios faltosos e relapsos ao cumprimento dos seus deveres.
A questão é interna e diz respeito aos fiéis da Igreja Católica. Dada a separação das igrejas do Estado, desde que as práticas religiosas não colidam com as leis gerais, ninguém exterior tem o direito de se intrometer.
Mas, ao escolher um grande meio de comunicação, aquilo que o sacerdote anunciante veio dizer é que as suas regras particulares deviam ser impostas como obrigação a todos. O que está na linha dos movimentos Pró Vida, de colocar no campo da ignomínia os opositores das suas regras e assim as trazerem da esfera do privado para a do público (neste caso literalmente), para passarem dos sistemas de crenças aos sistemas da ética, da moral e do direito. E aqui todos estamos envolvidos enquanto cidadãos.
Se eles são Pró Vida, os outros são necessariamente Pró Morte. De um lado os bons, do outro os maus. De um lado os que cumprem a lei, do outro os criminosos. O Estado não pode ser indiferente a esta opção. Vá de exigir a sua tradução na lei penal de aplicação generalizada!
A falta de escrúpulos desta proposta é tão gritante como repugnante o recurso à demagogia em que assenta a sua defesa e a chantagem que lhe está associada.
Demagogia, porque os seus defensores querem fazer crer que se trata de uma norma sobrenatural, de um valor primordial onde assenta a nossa condição humana. De facto é uma causa conjuntural, pois ao longo da sua história a Igreja Católica julgou o aborto de forma muito variada e a luta contra a norma jurídica que admite a interrupção voluntária de uma gravidez é uma prioridade recente dos movimentos que se reivindicam do cristianismo nas sociedades desenvolvidas do Ocidente.
Antes da prioridade ao aborto, os antecessores dos Movimentos Pró Vida criminalizaram a homossexualidade, em particular a sodomia, o prazer nas relações sexuais, especialmente o das mulheres, algumas formas de incesto e a infidelidade feminina. Mesmo no período mais repressivo da Idade Média o aborto era pouco castigado nos livros penitenciais e depois as práticas abortivas passaram a ser ignoradas, assim como a morte de recém-nascidos, ou a sua entrega nas rodas de enjeitados.
Chantagem, porque o eficaz produto de marketing que resulta da ideia Pró Vida, mais do que bebés, faz nascer bons adeptos adultos atraídos pela carga moral e afectiva associada ao conceito de vida e estes rendem os votos que nas sociedades democráticas materializam o Poder. Votos que os promotores daquilo que podia ser um respeitável movimento pró-natalista ameaçam só darem a quem aceitar submeter a totalidade dos eleitores aos seus interesses particulares, em estabelecer como lei universal a norma do seu grupo.
Na luta pelo direito ao aborto, ou na falácia da Pró Vida, estamos no coração da política pura e dura, na luta onde vale tudo para ganhar ou manter parcelas de poder, o que historicamente tem mais a ver com a morte do que com a vida, com a Terra do que com o Céu.
As barrigas das mulheres, os fetos a boiar em formol, as bizantinas discussões sobre o momento do início da vida, as disputas nos tribunais, os autos de fé e as procissões, são apenas enfeites na cortina de enganos que escondem a verdadeira batalha pelo controlo da vida dos homens do nascimento à morte, inerente a todas a religiões e servem nos nossos dias para algumas igrejas cristãs na Europa tentarem através delas reassumir parte do poder que já tiveram nos centros da decisão política ou para o aumentarem, como acontece na América.
É evidente que nada disto tem nada a ver com Deus nem com a salvação das almas. A questão que o anúncio levanta de forma canhestra, não é o de fiéis católicos ficarem privados de receberem os sacramentos da sua Igreja, a questão é o de mulheres e homens poderem ser e serem constituídos réus num Tribunal por imposição da Igreja Católica! Isto é, de voltarmos a ver Inquisidores mandarem entregar cidadãos ao braço secular da lei. Escritor

Saturday, March 26, 2005

A quadratura do investimento por Ruben de Carvalho

A quadratura do investimento por Ruben de Carvalho

DN 26 Março 2005

Vários comentadores e analistas têm desenvolvido com crescente veemência a teoria de que um dos males essenciais da economia portuguesa, senão mesmo o principal, é a completa ausência de espírito de risco e iniciativa individual. Na última Quadratura do Círculo, por exemplo, José Pacheco Pereira proclamava o devastador contraste com os Estados Unidos, onde as grandes inovações tecnológicas e os grandes negócios se desenvolveriam não mediante investimento estatal na educação ou na investigação científica, mas sim através do empreendedor carola (ou antes, seguramente os milhões de empreendedores carolas...) que inventam coisas originalíssimas nas suas garagens, as vendem - e ficam ricos.

Ora Pacheco Pereira, desculpe, mas esta visão não tem nada que ver com a realidade.

A intervenção económica do Estado norte-americano não se faz em moldes inteiramente semelhantes ao que se poderá chamar padrões europeus, mas começa por ter uma área tentacularmente determinante que é a dos orçamentos de Defesa. O Estado americano poderá não investir directamente ou ser proprietário de equipamentos de produção industrial ou de investigação científica e tecnológica, mas é o principal cliente (quando não quantitativamente, pelo menos estrategicamente) dos mais influentes sectores.

Não é possível conceber as indústrias metalúrgica, química, electrónica, aeronáutica, automobilística, petrolífera, sem a densa rede de interesses que os ligam às aquisições e encomendas estaduais e especialmente militares. Estes gastos revelam--se, como é sabido, particularmente importantes nos sectores de tecnologias de ponta, onde não apenas suportam as estruturas de investigação mais pesadas, como constituem uma garantia de escoamento para desenvolvimentos avulsos e novas patentes.

Sem a intervenção do Estado, a economia norte-americana seria outra. Como muito bem sabem Pacheco Pereira, a Halliburton, o sr. Dick Cheney e bastantes outros...

O Problema com a religião por SALMAN RUSHDIE

O Problema com a religião por SALMAN RUSHDIE

DN 26 de Março de 2005

Nunca pensei em mim como um escritor sobre religião até uma religião ter começado a perseguir-me. A religião era uma parte do meu assunto, claro - para um romancista do subcontinente indiano, como poderia ter deixado de ser?

Mas na minha opinião tinha também muitos outros assuntos, maiores e mais suculentos para tratar. No entanto, quando veio o ataque, tive de enfrentar aquilo que me enfrentava a mim e de decidir o que é que queria defender face ao que se levantava contra mim de uma forma tão vociferante, repressiva e violenta.

Agora, passados 16 anos, a religião persegue-nos a todos e, apesar de a maior parte de nós pensar, como eu pensei em tempos, que temos outras preocupações mais importantes, vamos todos ter de enfrentar o desafio. Se falharmos, este assunto em particular pode acabar por tomar conta de nós.

Para aqueles de nós que cresceram na Índia no rescaldo dos motins separatistas de 1946-1947, que se seguiram à criação dos Estados independentes da Índia e do Paquistão, a sombra desse massacre manteve-se como um aviso terrível sobre aquilo que os homens fazem em nome de Deus. E essa violência na Índia tem sido demasiado recorrente - em Meerut, em Assam e mais recentemente em Gujarat. Também a história europeia está cheia de provas dos perigos da religião politizada as guerras francesas da religião, os amargos problemas irlandeses, o "na- cionalismo católico" do ditador espanhol Franco e os exércitos rivais na guerra civil inglesa indo para a batalha a cantarem ambos os mesmo hinos.

As pessoas sempre se viraram para a religião para obter respostas às duas grandes questões da vida donde viemos? E como devemos viver? Mas quanto à questão das origens todas as religiões estão, simplesmente, erradas. O universo não foi criado em seis dias por uma força suprema que descansou no sétimo dia. Nem foi amassado, até se formar, por um deus do céu com uma batedeira gigante. E quanto à questão social, a verdade nua e crua é que sempre que a religião se senta aos comandos da sociedade o resultado é a tirania. O resultado é a Inquisição ou então os talibãs.

Contudo, as religiões continuam a insistir que fornecem um acesso especial às verdades éticas e consequentemente merecem um tratamento e uma protecção especiais. E continuam a emergir do mundo da vida privada - onde pertencem, como muitas outras coisas que são aceitáveis quando feitas em privado entre adultos conscientes mas inaceitáveis na praça pública - e a ambicionar o poder. A emergência do islão radical não precisa de ser descrita aqui, mas o ressurgimento da fé é um assunto mais amplo do que isso.

Nos Estados Unidos actuais é possível para quase toda a gente - mulheres, homossexuais, afro- -americanos, judeus - candidatar-se e ser eleito para um cargo elevado. Mas um ateu confesso não teria mais hipóteses que um pregador no deserto. Daí a crescente qualidade santimonial do discurso político americano segundo Bob Woodward, o actual Presidente vê-se a si próprio como um "mensageiro" a fazer "a vontade de Deus", e "valores morais" tornou-se a frase código para o fanatismo conservador, anti-homossexual, antiaborto. Os democratas derrotados também parecem estar a escorregar para este tipo de terreno, talvez em desespero de alguma vez poderem vir a ganhar umas eleições de outro modo.

Segundo Jacques Delors, antigo presidente da Comissão Europeia, "o choque entre aqueles que acreditam e aqueles que não acreditam irá ser um aspecto dominante das relações entre os EUA e a Europa nos próximos anos".

Na Europa, as bombas nas estações de comboios de Madrid e o assassínio do realizador holandês Theo Van Gogh são vistos como avisos de que os princípios seculares que estão na base de qualquer democracia humanista precisam de ser defendidos e reforçados. Mesmo antes de acontecerem estas atrocidades, a decisão francesa de banir os símbolos religiosos tais como os lenços islâmicos teve o apoio de todo o espectro político.

As reivindicações islâmicas para aulas separadas e pausas para oração foram também rejeitadas. São poucos os europeus que hoje em dia se consideram, a si próprios, religiosos - apenas 21%, segundo um recente estudo de valores europeus, contra 59% de americanos, segundo o Pew Forum. Na Europa, o Iluminismo representou uma fuga ao poder da religião de impor limites ao pensamento, enquanto na América representou uma fuga para a li- berdade religiosa do Novo Mundo - um movimento em direcção à fé, mais do que um afastamento dela. Muitos europeus vêem agora a combinação americana de religião com nacionalismo como assustadora. A excepção ao secularismo europeu pode ser encontrada na Grã-Bretanha ou pelo menos no Governo do devotadamente cristão, crescentemente autoritário Tony Blair, o qual está agora a tentar pressionar o Parlamento a fazer passar uma lei contra "o incitamento ao ódio religioso", numa tentativa cínica de angariação de votos para apaziguar os defensores dos muçulmanos britânicos, a cujos olhos praticamente qualquer crítica ao islão é ofensiva. Jornalistas, advogados e uma longa lista de figuras públicas avisaram que essa lei irá limitar dramaticamente a liberdade de expressão e falhará o objectivo - irá aumentar os distúrbios religiosos em vez de os diminuir. O Governo de Blair parece olhar para toda a questão das liberdades civis com desdém o que importam as liberdades, por muito duramente conquistadas e acalentadas que tenham sido, quando colocadas face às necessidades de um Governo que enfrenta a reeleição?

E no entanto a política de apaziguamento de Blair deve ser derrotada. Talvez a Câmara dos Lordes faça aquilo que os comuns não fizeram e mande esta má lei para o lixo.

E, embora isto seja mais improvável, talvez os democratas americanos percebam que na actual América 50/50 eles tenham, possivelmente, mais a ganhar ao se posicionarem contra a Coligação Cristã e seus companheiros de viagem e ao se recusarem a deixar que a visão do mundo de Mel Gibson modele a orientação social e política americana. Se estas coisas não acontecerem, se a América e a Grã-Bretanha permitirem que a fé religiosa controle e domine o discurso público, então a aliança ocidental ver-se-á colocada sob uma pressão cada vez maior, e esses outros regionalistas, aqueles contra os quais é suposto estarmos a lutar, irão ter grandes motivos de júbilo.

Victor Hugo escreveu que "em todas as terras há um archote, o mestre-escola, e um extintor, o pároco". Precisamos de mais professores e de menos padres nas nossas vidas, porque, como James Joyce disse uma vez "Não há nenhuma heresia ou filosofia que seja tão detestável para a Igreja como o ser humano." Mas talvez o grande advogado americano Clarence Darrow tenha defendido o argumento secular melhor que todos os outros. "Eu não acredito em Deus", disse ele, "porque não acredito na Mãe Gansa."

Exclusivo DN/

/'The New York Times Syndicate'

Tradução Cristina M. Queiroz
SALMAN RUSHDIE

Friday, March 25, 2005

A segunda geração, por José Manuel Fernandes

A segunda geração, por José Manuel Fernandes

Público, 25 de Março de 2005


O que se passou nestas semanas na Amadora é apenas sintoma de um problema maior que ainda não chegou

Uma reportagem editada quarta-feira no PÚBLICO, sobre um bairro de barracas do concelho da Amadora - o Casal de Santa Filomena -, traçava um retrato impressionante de um gueto onde nem a polícia se atreve a entrar. Só há três horas minimamente seguras por dia: entre as sete e as dez da manhã. Desde as sete porque já há luz, antes das dez porque a partir de então os jovens do bairro começam a acordar e a sair para as ruas e becos. Quando ainda são pouco mais do que miúdos assaltam para roubar um telemóvel ou uns sapatilhas. Quando chegam aos 18 anos entram no tráfico de droga e, dizem, tornam-se "mais discretos". Aos 20 podem já fazer parte de um dos grupos violentos que utilizam verdadeiros arsenais de armas proibidas.
Será que isto sucede por nesses bairros viverem quase só famílias de origem africana? Não, até porque as malhas dos gangs juvenis ou das quadrilhas mais adultas também agarram muitos jovens com outras origens. E sim, porque existe, ou começa a existir, um problema real com as segundas gerações da imigração que veio das antigas colónias.
Os pais, quando deixaram as suas terras, vinham determinados a trabalhar, a poupar e a arrecadar. Ainda hoje, como também se podia ler na reportagem, se levantam cedo para rumar aos seus empregos, tantas vezes duros e mal pagos - quase sempre duros e mal pagos. Só que eles têm a recordação do que deixaram para trás, e tal como os nossos emigrantes na França dos anos 60, os dos bidonvilles, esgalgam-se a trabalhar até para poderem ajudar quem ficou longe.
Os filhos já não têm essas referências. Aquilo que vêem para onde quer que olhem é uma sociedade de consumo onde circulam bens a que nunca terão acesso se seguirem as pisadas dos pais. Ir trabalhar para as obras, vender peixe nos mercados, trabalhar de noite como segurança ou de madrugada nas limpezas nunca lhes dará acesso às casas, aos carros e às televisões que vêem por todo o lado. E eles sabem que dificilmente encontrarão outros empregos. Muitos, senão a maioria, deixaram cedo a escola, em que não viam utilidade e onde tinham dificuldade em evoluir, para entrarem na vadiagem juvenil.
Sabem como gostariam de viver e sabem que, por meios normais, nunca terão dinheiro para viver assim. A tentação de seguir o exemplo dos que, um pouco mais velhos, já visitam o bairro em grandes carrões é com frequência irresistível.
Este padrão de marginalidade, estas histórias de uma difícil integração da segunda geração das comunidades imigrantes nem sequer é um exclusivo português ou dos que chegam da África negra. A França conheceu e conhece problemas muito semelhantes com os seus magrebinos. Mesmo quando estes vivem em subúrbios de sólidos blocos de apartamentos, e não nas vielas infectas de lugares como o Casal de Santa Filomena.
Claro que estes destinos não são uma fatalidade. Claro que há também as boas histórias de integração. Claro que mesmo na temida Cova da Moura também existe uma obra social capaz de produzir milagres de inserção e estímulo à aprendizagem, como é o Moinho da Juventude. Claro que há muito por fazer para tentar evitar a concentração destas comunidades em guetos onde não se entra e de que nem se querem ouvir as histórias.
Mas não nos iludamos: o que se passou nas últimas semanas na Amadora é apenas o sintoma de um problema maior que ainda não chegou - o problema que pode chegar quando, por exemplo, a natural reconversão do nosso modelo de desenvolvimento deixar de criar tantos empregos "nas obras" e, naqueles bairros, aos filhos ociosos se juntarem cada vez mais pais desempregados.

José Manuel Fernandes

Monday, March 21, 2005

Parte 3 por Fernando Ilharco

Parte 3 por Fernando Ilharco

Público 21 de Março 2005

Quando Arafat morreu em Paris, Mourinho estava no Chelsea, a América em Bagdad. A Turquia às portas da Europa e a Nokia na China

Os ingleses já sabiam mas quando Abramovich, o russo milionário que não fala, no coração de uma das zonas mais selectas da capital britânica, comprou o Chelsea Football Club, eles tiveram a certeza: Londres já não era inglesa. Obviamente, não sendo de qualquer outro país ou Estado, tal como outras grandes cidades europeias, americanas ou asiáticas, Londres é hoje mais do que um espaço urbano, é um certo tipo de tempo, de mundo e de evento impossível de prever nos passados que passaram há não mais do que vinte ou trinta anos. Londres, tal como Nova Iorque ou Barcelona, é o mundo todo, ora festejando o presente ora querendo festejar, ou simplesmente olhar, o futuro; e trabalha, inventa e aguenta. Em Londres há mendigos deitados nas esquinas do metro, lendo livros até adormecerem ao frio. Londres é a terra onde Khadafi disse que se devia começar se se quisesse acabar à bomba com os terroristas da Al-Qaeda. Em Londres, onde coabitam mais de cem nacionalidades, onde a economia cresce há quase vinte anos, um português prepara-se para vencer o campeonato de futebol da terra-mãe do maior desporto de todos os tempos. No centro desta Europa da inovação e do dinheiro, uma equipa de um russo, liderada por um português, com jogadores de mais de dez países, colocou um estádio inteiro a cantar música tradicional de além dos Urais. Ao ritmo dos cossacos, no "Eu amo Abramovich!", ouvia-se o comentário de Nietzsche: "a vitória é o melhor remédio!" E isto nos écrãs das televisões portuguesas.
Ouvia-se mais; ouvia-se que num estádio cabem milhões de vidas, que em Londres, em Barcelona ou em Lisboa cabem todos os sonhos da vida de um homem. O futebol contemporâneo, na televisão de écrãs cada vez maiores, filmado de cima para baixo como se se tratasse da visão de um helicóptero, é o que é para nós, europeus, sendo isso e mais na Palestina, no Iraque, no Vietname, na Colômbia ou no Zimbabué. Se lhe juntarmos os videoclips da MTV, os Óscares de Hollywood, os anúncios dos telemóveis, dos automóveis e dos hotéis de luxo por todo o mundo temos uma das mais poderosas frentes informacionais e culturais globais. Nem o Iraque, nem as ruas de Beirute, nem os novos milionários chineses ou o terrorismo global são indiferentes a isto. No Marquês de Pombal, num carro japonês com matrícula francesa, um africano fala em inglês num Nokia finlandês. E ainda a história não chegou a metade, falta a China e o Médio Oriente.
Nos escassos anos deste novo século o mundo voltou a mudar, muito. O que era há muito era esperado por uns e temido por outros está em vias de acontecer. Pode parecer-nos estranho, escrevia-se salvo erro, na Harpers do mês passado, mas para quem vive em Xangai, Tóquio ou Hong Kong, nada é mais óbvio do que o mundo, hoje, não rodar à volta da Europa nem sequer da América. No Oriente, a China mutante, emergindo como uma Singapura gigante - para utilizar as palavras que Castells utilizou a semana passada em Lisboa -, com a economia a crescer 10 por cento ao ano, é o centro do novo furacão. É mais do que o centro, pois na China está 1/4 da população mundial. Em Pequim está também o departamento de investigação mais avançado da Nokia, a mais poderosa empresa do país mais competitivo do mundo actualmente, a Finlândia. Na China, no mercado mundial de maior crescimento, a Nokia investiga, entre outros desafios, a integração infra-estrutural, técnica e de protocolos, entre a Internet e a mobilidade dos telefones. Ninguém hoje no mundo da inovação e do futuro pode dar-se ao luxo de não estar na China. A China acordou e está aí a chegar. Hoje nos restaurantes e nas lojas de todas as coisas, amanhã nos computadores, nos automóveis, nas roupas, no design, nas administrações das empresas, nos laboratórios da investigação, nas universidades, etc. Hoje mesmo, quando se fala do coração da inovação fala-se já da China e dos chineses, cujo peso em Silicon Valley, a par do dos indianos, é dos mais relevantes quando comparado com o das outras nacionalidades, mesmo da americana.
Demasiado no presente, na Internet e na televisão global, bem como Heidegger nos idos anos 50 apontou a essência da tecnologia como revelação do mundo, os écrãs mostram as praias por todo o planeta, o Nasdaq, as roupas, as casas, os museus, o futebol, os iPods, os ténis com rodinhas, os tempos e os estilos das vidas possíveis neste mundo. Demasiado no presente, na Internet, nas guerras na televisão, nos escândalos e na publicidade por todo o lado, quase não nos damos conta da forma como neste novo século a vida no mundo está outra vez a mudar. A queda do muro de Berlim, a Guerra do Golfo e a Internet são história, isto é, passado, isto é, contexto. O centro do mundo, a energia mais vital, transformadora e modeladora do futuro, está hoje a estender-se ao Oriente, e ao Médio Oriente possivelmente também. Com a Turquia a aproximar-se da Europa, com os dois anos da intervenção norte-americana, com centenas de milhões de antenas parabólicas, com o milagre do progresso todos os dias nos videoclips pop e nos anúncios das empresas globais, todo o Médio Oriente está em mudança. "Tudo está a mudar no mundo árabe," ouvia-se a semana passada nas ruas de Beirute. Tudo, talvez seja exagerado, mas algo de importante pode bem estar a tomar um novo caminho. No Iraque, entre bombas e tiros, o tempo corre nas ruas e o comércio cresce, os carros aumentam e as eleições parecem estar a abrir um novo e possível futuro. No Líbano, com o processo de paz entre a Palestina e Israel finalmente a avançar, arrisca-se uma nova abertura à democracia e no Egipto novas eleições vão acontecer em breve. Muito boa e má gente sabe isto. O mundo árabe enfrenta o seu desafio final: o progresso, sim ou não e a que preço?
A Europa está também a mudar. A população está a tornar-se diferente e em dez ou vinte anos, o continente europeu pode ver-se como uma gigantesca plataforma cosmopolita. Muitos problemas demográficos e de emprego possivelmente vão ser resolvidos da forma em hoje o estão a ser, com imigrantes, do Brasil, do Leste, da África e da Ásia. Esta nova população europeia repete muitas corridas ao ouro da História e repete corrida nenhuma. A municipalidade de Barcelona realizou recentemente um inquérito ao nível de educação dos imigrantes e descobriu que em média havia mais universitários entre eles do que entre a população nativa da Catalunha, 27 contra 17 por cento, referiu Castells. Algo do género pode também passar-se em Portugal, onde são conhecidas as histórias de médicos, advogados e professores do Leste europeu, entre nós, a trabalharem na construção civil ou a servirem em cafés e restaurantes.
Quando Arafat morreu em Paris, Mourinho estava no Chelsea, a Turquia às portas da Europa, a América em Bagdad e a Nokia na China.

ilharco@gmail.com

Friday, March 11, 2005

O estranho caso de Luís Delgado por Eduardo Prado Coelho

o fio do horizonte
Público, 10 de Março de 2005


Émais um cronista e um administrador de jornalistas do que um jornalista propriamente dito. Nunca o vi fazer uma reportagem ou uma entrevista. Começou a ganhar alguma presença com uma coluna no Diário de Notícias correspondendo ao ponto de vista da direita mais convictamente liberal. Era, e é, uma coluna previsível. Luís Delgado aparece como um defensor da mais conservadora (no sentido amplo do termo) doutrina americana. Em determinada altura, assumia as funções de porta-voz, e, quando Bush começa a exercer o poder, escreve como se tivesse recolhido as suas confidências da véspera. Fala como se estivesse no segredo dos deuses - mas que deuses! Conhece números que só ele conhece.
De repente, deu-se uma metamorfose. Onde havia um discreto comentador, capaz de falar sobre as eleições americanas mas também sobre o euro, onde havia um ponto de vista que se cruzava com muitos outros, surge um potentado da imprensa portuguesa, com o mundo a seus pés. Ele é Lusa, grupos de imprensa, projectos de aquisição, retratos na comunicação social. O resultado foi um processo de comentarite aguda.
A gente acordava, ligava o rádio e lá estava Luís Delgado. A gente comprava o jornal e lá tinha a crónica de Luís Delgado. A gente ouvia um debate ao fim da tarde, e lá tínhamos, incansável e insone, a voz de Luís Delgado. A gente esperava um confronto no noticiário na televisão e Luís Delgado já tinha chegado. A gente adormecia, exausta, com a voz incessante de Luís Delgado, certa de que no dia seguinte lá teríamos a presença de Luís Delgado. Este homem não dorme, não descansa, não faz uma sesta, não vai a um cinema? Aparentemente, não. Indómito samurai da imprensa portuguesa, cultiva o ascetismo: é uma espécie de monge da palavra escrita e da administração de empresas. Como se os seus deuses tutelares estivessem sempre do lado de lá do telemóvel a enviar mensagens que são ordens: agora diga isto, agora digo aquilo. Na inequívoca "direitização" dos comentadores portugueses, em que Mário Bettencourt Resendes aparece como um homem de extrema-esquerda, um radical da política, Luís Delgado era o centro, a luz da evidência, o lugar de equilíbrio, o alfa e o ómega. Tudo isto ganhou o seu máximo esplendor nos tempos de Santana Lopes, embora já tivesse começado com a direita de Durão Barroso.
Na noite eleitoral, nesse estendal de desastres em torno de Santana Lopes, Luís Delgado ainda tentou dizer que as primeiras freguesias eram dos pardais, mas que depois é que íamos ver. Vimos, e ele próprio viu. Tivemos, mais tarde, um momento de extrema densidade dramática. Luís Delgado despiu a máscara que ele parece supor ser do comentarista neutro, e disse que ia falar do amigo, o Pedro. Porque o Pedro era uma vítima. E então veio a grande tese: era uma vítima de quem? De Durão Barroso, que tinha mentido ao Pedro e ao país. Sentimos a voz embargada pela emoção e tivemos direito em voz e em escrita a uma espantosa condenação daquele que tinha, num momento de precipitação, feito de Santana Lopes o nosso primeiro-ministro.
Nos últimos dias, sentimos a tristeza de Luís Delgado. Teve o seu quarto de hora de glória, parece estar a amarelecer. Já não aparece, já não comenta, já não tem música na voz. Vai-nos fazer muita falta. Professor universitário

Entrevista com Manuel Castells Parte IV

"Patentear o software é destruí-lo"
Teresa de Sousa e José Vitor Malheiros



Manuel Castells exemplifica com a recente decisão do Conselho de ministros da UE sobre as patentes de software as resistências de uma cultura europeia que não favorece a inovação.
A crítica que faz aos bloqueios da "agenda de Lisboa" é uma crítica aos Estados?
É uma crítica aos Estados e uma autocrítica aos desenhadores da estratégia. Falando do concreto, o software é a linguagem da era da informação. Se não funcionar, nada mais funciona, porque é o coração do sistema tecnológico. Hoje mesmo [7 de Março], o Conselho de ministros [da UE] pode estar a aprovar a obrigatoriedade de patentear o software, apesar de o Parlamento Europeu se ter oposto por duas vezes [a directiva foi de facto aprovada]. Patentear o software é destruí-lo. A imensa maioria do software criado no mundo e o melhor é feito por gente a quem ninguém paga, que coloca o seu trabalho em rede, disponibilizando o código-fonte para outros terem acesso e até poderem melhorá-lo. E tudo isto deixará de acontecer se alguém o patentear.
Como se justifica, então, a decisão europeia?
Para controlar. Nos EUA, o governo tinha feito o mesmo se pudesse. Mas lá a indústria opõe-se e há uma dinâmica universitária fortíssima que está contra. Na Europa, as grandes empresas são a favor das patentes porque o que lhes interessa é poder comprar, mais do que criar.

Entrevista com Manuel Castells Parte III

Open Source "Uma questão fundamental para a Europa e o mundo"
Teresa de Sousa e José Vitor Malheiros



No seminário que organizou dedicou uma sessão ao software de código livre ou open source, onde não faltou a habitual polémica com um representante da Microsoft. Parece-lhe que, para a Europa, a aposta no software open source é importante?
A questão do open source é fundamental. Eu diria mesmo que é a questão mais importante, neste momento. No mundo da tecnologia de informação e não apenas para a Europa mas para o mundo. E a última coisa que se deve fazer é transformar isto numa questão ideológica, como a Microsoft deseja, tentando apresentar os defensores do open source como um grupo de anarquistas ou comunistas digitais. Foi o open source que fez a Internet. Sem open source a Internet não existiria e uma grande parte das operações que fazemos no dia-a-dia não existiriam.
Todos os protocolos e todo o software fundamental que deram origem à Internet foram produzidos fora de empresas comerciais, por universitários ou inovadores, colaborando voluntariamente, pela pura paixão de criar. O princípio do open source não é algo que tenha sido inventado ontem. A ciência sempre funcionou em código aberto. Muita gente não sabe que dois terços dos servidores de Internet usam o software Apache, que é open source.
Mas é qual a razão da sua defesa do open source?
É uma questão de qualidade. O open source é muito melhor software, é mais robusto e menos vulnerável aos vírus.
Por muitos milhares de programadores que a Microsoft possa contratar isso não é comparável com uma rede mundial de voluntários que vão aperfeiçoando o software.
Uma das vantagens desta rede de criadores é que ela dá origem a uma enorme diversidade. Por isso, os vírus têm a vida mais complicada.
A IBM neste momento apoia o open source - nada impede aliás que sobre código livre se desenvolvam aplicações comerciais. Há muitos milhares de empresas que vivem disso.
Acha que deveria haver um critério de preferência do software open source por parte da administração?
Sem dúvida nenhuma. Pela simples razão de que há maior qualidade, maior capacidade de adaptação às necessidades concretas dos utilizadores e é muito mais barato. É estúpido pagar mais por software de pior qualidade.
É verdade que, como não existe um serviço de manutenção de muitas das aplicações open source, há alguns problemas. Mas a administração pode dar o exemplo, como está a fazer o Brasil. O Brasil está a preparar uma lei que vai obrigar toda a administração brasileira a usar software open source. Não vai impedir as empresas de usar outros produtos, mas a sua administração vai tomar essa medida.
Falou-se no seminário que seria muito interessante se o Brasil e Portugal tomassem uma iniciativa conjunta neste sentido, aproveitando a sua língua comum. Podia criar-se uma indústria de software livre em Portugal, com um fácil acesso a um grande mercado como o Brasil e de forma articulada com este esforço da administração brasileira. Este esforço podia mesmo apoiar-se em empresas como a IBM, a Oracle ou a Sun, que hoje em dia trabalham em open source. Há, neste momento, mais multinacionais de informação a trabalhar em código aberto que em software Microsoft. Se são comunistas digitais, então a IBM tornou-se comunista.

Entrevista com Manuel Castells Parte II

A bolha europeia
Teresa de Sousa e José Vitor Malheiros



Um modelo capitalista como o Europeu, com o seu modelo social, pode sobreviver num mundo em que outros tipos de capitalismo — sobretudo o chinês — impõem regras muito mais duras? Ou a Europa é uma bolha que pode rebentar?

É frágil. Falando claro: só é possível em termos económicos com o aumento da produtividade. Está certo que desejemos ser competitivos vivendo melhor e não vivendo pior. Mas isso só pode ser alcançado pela inovação tecnológica e organizativa. Temos de nos transformar numa verdadeira economia do conhecimento (na prática, há bastante pouco conhecimento na nossa economia). Se pensarmos no investimento em I&D em proporção do PIB, vemos que a Europa está mal. A Finlândia está bem — investe 3,2 por cento — mas Portugal está muito abaixo da média europeia.
Na Europa — e em Portugal, em particular — o problema são as empresas. As empresas não investem em I&D. Acreditam que comprar a tecnologia já chega. Mas não chega, porque ela é cara, é má, e a empresa muitas vezes não a consegue adaptar às suas necessidades.
Por outro lado, além do aumento da produtividade a partir do desenvolvimento da economia do conhecimento, é preciso aproveitar a extensão do mercado. O desenvolvimento da China dá-nos acesso a novos mercados. Nesse capítulo a Finlândia está, mais uma vez, a fazer as coisas muito bem. Há mais de 300 empresas finlandesas na China. Não para explorar o trabalho barato dos chineses mas para criar centros tecnológicos. Em troca, a China dá-lhes acesso ao seu mercado.

Entrevista com Manuel Castells parte I

Entrevista com Manuel Castells
Não precisamos de inventar outra estratégia de Lisboa
Teresa de Sousa e José Vitor Malheiros
Público, 10 de Março 2005

O primeiro erro da "agenda de Lisboa" foi ter adoptado uma perspectiva muito estatista, diz Manuel Castells, um dos mais importantes teóricos da Sociedade de Informação. Mas não é preciso inventar outra estratégia, outra grande visão, que é o que gostam de fazer os europeus

Autor do mais célebre e mais completo estudo sobre a Sociedade de Informação, professor em Berkeley, Universidade da Califórnia, e agora da Universidade Aberta de Barcelona, catalão de origem, Manuel Castells foi um dos peritos que ajudaram a preparar a "agenda de Lisboa", uma estratégia europeia lançada em 2000 para fazer da economia da Europa a mais competitiva do mundo em 2010, sem perder pelo caminho o "modelo social europeu". Hoje, faz um balanço mitigado. Os objectivos estavam certos mas não os meios. Castells esteve no passado fim-de-semana em Lisboa, enquanto coordenador do seminário internacional sobre A Sociedade em Rede e a Economia do Conhecimento, da iniciativa de Jorge Sampaio.
PÚBLICO - Passados cinco anos desde a aprovação da "estratégia de Lisboa", de cuja concepção foi um dos inspiradores, arriscamo-nos a dizer que ela falhou. O fosso entre as economias americana e europeia tem continuado a crescer em termos de produtividade e de competitividade. Como explica isto?
MANUEL CASTELLS - Falhou em parte. Falhou no objectivo e falhou nos prazos. Não estou a fazer uma crítica, mas uma autocrítica, porque fiz parte do grupo de peritos que aconselhou a presidência portuguesa da União Europeia. A estratégia de Lisboa pretendia fundamentalmente aproximar a Europa em termos de produtividade e competitividade da economia americana, gerando inovação mas mantendo a coesão social, o modelo social europeu. Isto resultou no plano de acção e-Europa que, muito acertadamente, percebeu que, no caso europeu, o sector público podia ser o motor dessa mudança, coisa que não acontece nos EUA, como se sabe. O que se pretendia era criar um círculo virtuoso entre a transformação do sector público (saúde, educação, administração pública) e o desenvolvimento tecnológico.
Houve bastantes avanços mas, se considerarmos os objectivos, temos de concordar que, em lugar de haver convergência com a produtividade e a competitividade da economia americana, houve divergência.
Porquê? Quais foram as resistências, os obstáculos?
Não se evoluiu no desenvolvimento de novas formas de organização, não se mudou a saúde, a educação, a administração. Avançou-se nas redes de comunicações, o que é muito importante porque as redes são a infra-estrutura, mas é o mais fácil de fazer. É verdade também que a coesão social se manteve, mas é bom recordar que a ideia original da "agenda de Lisboa" era precisamente que, para manter a coesão social a prazo, era necessário inovar mais e produzir mais. Caso contrário, com o envelhecimento da população e a resistência da Europa à imigração, essa coesão social não será sustentável a médio prazo.
O primeiro erro da "agenda de Lisboa" foi ter adoptado uma perspectiva muito estatista. Não contou com a sociedade civil, com os inovadores. E quando se fala de inovação é preciso falar de inovadores. A Europa só tem sabido pensar em termos dos Estados ou das grandes empresas, quando a imensa maioria das empresas são pequenas e médias. Há aqui algo que falhou. A Europa tentou dizer à sociedade e às empresas como deviam fazer, em vez de libertar a energia inovadora da sociedade.
Creio que a Comissão Europeia fez o que tinha a fazer razoavelmente bem - as directivas, as recomendações, os documentos, as estratégias. Mas a Europa não é a Comissão. Isso é um mito. A Comissão tem um orçamento pequeno e nenhum poder. O poder está no Conselho de Ministros.
Mas o mau resultado não foi igual para todos. Os nórdicos seguiram o caminho apontado pela "agenda de Lisboa" e estão a ter resultados excelentes. Os países de modelo anglo-saxónico portam-se melhor do que a média. Como explica que o modelo nórdico tenha sido o de maior sucesso?
Tem razão quando diz que o mau resultado não é igual para todos. O problema é, antes de mais, da Alemanha, que é o centro da economia europeia, mas cuja economia e tecnologia não funcionam segundo um modelo de inovação. A Espanha foi um desastre absoluto desde o ano 2000 - não na política económica mas na política de inovação e da sociedade de informação -, e está atrasada em todos os indicadores. A Itália foi outro desastre, em termos de inovação e de modernização da administração. Temos três países grandes que não fizeram nada. A França é diferente. Está bem em termos de produtividade nas empresas, mas não na modernização da administração - que é um dos grandes objectivos de Lisboa.
Eu diria que há dois modelos que estão a funcionar e que são muito diferentes: o de Inglaterra e o da Irlanda, embora esta última seja um caso atípico, porque os líderes da competitividade e da produtividade são grandes multinacionais. A Irlanda criou as bases tecnológicas, científicas e de capital humano para poder atrair as multinacionais. O problema é que elas, um dia, vão-se embora para a China ou para o Leste.
Quando falamos de "modelo nórdico" também não devemos generalizar demasiado. A Noruega não faz muito em matéria de inovação tecnológica. Na realidade vive da renda do petróleo. Se não fosse um país tão frio, julgaríamos que era um emirado. A Suécia sempre foi uma grande potência económica, não progrediu muito nos últimos anos em termos de produtividade e competitividade, mas já era competitiva no passado. O que é interessante é a Finlândia e a Dinamarca - com governos de orientações políticas distintas. Nos dois casos, houve uma tentativa séria de construir um modelo que reproduz, em boa parte, a estratégia de Lisboa. Isso não acontece por acaso, porque a "agenda de Lisboa" já se inspirou naquilo que eles estavam a fazer.
Diria, pois, que nos países em que o Estado entendeu que o seu papel era dinamizar a inovação, apoiar o empreendedorismo e fazer da inovação tecnológica e social uma força dinâmica, a acção do Estado facilitou este processo. Nos países em que o Estado, ou adoptou um modelo neoliberal, deixando tudo para o mercado resolver, ou é prisioneiro de interesses corporativos, tanto de empresas como de sindicatos - como é o caso da Alemanha -, aí não houve qualquer avanço.
E o que se deve fazer para repor a "agenda de Lisboa" no caminho certo?
O diagnóstico que fazemos hoje é que as políticas dos Estados não levaram a sério estes objectivos. Penso que é através da correcção das políticas nacionais, coordenadas e apoiadas a nível europeu.
O conteúdo da "agenda de Lisboa" estava certo e as medidas propostas também. Faltaram os mecanismos de implementação. O que devemos fazer hoje é reavaliar esses mecanismos e ver quais são os bloqueios, ver o que falhou. Não precisamos de inventar outra estratégia, outra grande visão, que é o que gostam de fazer os europeus.
No livro que escreveu em 2002 com Pekka Himanen, fala de três modelos de desenvolvimento da sociedade de informação: Silicon Valley, Singapura e o modelo finlandês. Disse agora que a "agenda de Lisboa" falhou porque os países europeus não souberam seguir o modelo finlandês (e não podiam seguir os outros). São os únicos três modelos possíveis ou pode haver muito mais?
O estudo sobre a Finlândia mostrou que a sociedade da informação mais avançada do mundo (segundo todas as estatísticas), que era também a economia europeia mais produtiva e mais competitiva, possuía um modelo de inovação e de crescimento económico totalmente diferente do de Silicon Valley, apresentando os mesmos resultados em termos de inovação e uma coesão social e qualidade de vida muito superior. O interesse de Singapura é que os chineses o adoptaram como modelo, estão a tentar um megamodelo de Singapura, porque é um modelo de Estado autoritário com economia de mercado, inovação e desenvolvimento tecnológico. Em Singapura funciona. Não sabemos se vai funcionar na China.
A mensagem central desse estudo é que cada cultura e cada sistema institucional têm de encontrar o seu próprio modelo a partir de um núcleo comum de princípios: o papel central das tecnologias de informação e comunicação e da inovação, o conhecimento como matéria-prima, a ideia de que o valor acrescentado está mais no processo do que o produto. A Coreia está a fazê-lo, aproximando-se do modelo de Singapura. O Japão não conseguiu fazê-lo e está em queda livre desde 1990. Na realidade, quando estamos a falar de modelos de inovação tecnológica estamos a falar de muito poucos países: da Escandinávia, dos EUA e de algumas zonas asiáticas como a Coreia, Singapura, e Bangalore e Bombaim na Índia. E das redes de inovação entre estes centros de inovação. A maior parte do mundo está fora deste processo.
Na Europa, são os países meridionais os mais atrasados. Está a estudar o modelo catalão. Será que é possível um modelo meridional, diferente, compatível com a cultura católica e mediterrânica?
Quanto ao catolicismo, é preciso ser prudente. Pode existir como matriz histórica, mas em Espanha menos de 10 por cento da população vai à missa ao domingo. E a cultura fundamental em Silicon Valley pertence a chineses e indianos, que não são protestantes nem católicos.
Pekka Himanen e Linus Torvalds escreveram um livro muito interessante sobre isto, que compara a ética hacker com a ética protestante da revolução industrial. Para os inovadores o trabalho é um prazer, onde o jogo e a inovação se misturam. Ganhar dinheiro é a última das suas preocupações.
Quanto ao modelo meridional, se existe, não o encontrámos, a não ser que se queira transformar a incapacidade em modelo e se decida que vamos fazer parques temáticos para os turistas chineses, japoneses e americanos. A Catalunha entrou, nos últimos anos, nesta dinâmica, no "turismo de sol e lua", praia e divertimentos nocturnos, mas esse modelo é insustentável porque é mais fácil fazê-lo noutros países do Terceiro Mundo, mais baratos e menos deteriorados ambientalmente.
A questão é: ou há uma dinâmica interna muito forte das pequenas empresas e dos empreendedores, dos inovadores e das universidades, (como é o caso de Silicon Valley), ou tem de haver uma política de Estado que impulsione esse desenvolvimento tecnológico a longo prazo.
Essas políticas têm de ter efeitos a curto prazo, porque precisam de base política para continuar, mas há que definir, como fez a Finlândia, o médio e longo prazo, investir dinheiro - que também é preciso - e ter a coragem política de fazer reformas sérias na administração, na universidade, no sistema de ciência e tecnologia. Nesta matéria, tanto em Espanha como em Portugal e Itália, nos últimos anos a evolução tem sido ao contrário.
Como se promove a inovação? Conhece o plano tecnológico que o novo Governo português quer pôr em prática e que visa precisamente esse objectivo?
Não li esse programa e por isso não posso falar dele. Mas creio que, numa situação como a portuguesa, o primeiro agente desse desenvolvimento tem de ser o Estado. E isto porque não há outro. Mas é preciso criar um programa impulsionado pelo Estado que não seja estatista. Que liberte a capacidade de inovação da sociedade e das empresas. No caso da Catalunha, acabo de terminar um trabalho produzido por uma comissão de peritos sobre um acordo estratégico de competitividade e internacionalização da economia catalã, que visa responder à deslocalização das multinacionais.
A discussão teve a participação de sindicatos e organizações patronais, de PME e de grandes empresas, e do Governo. Chegaram a uma série de acordos concretos, com medidas, que serão condicionantes dos orçamentos do Governo catalão nos próximos quatro anos. Algumas são tão concretas como contratar 500 novos professores de Inglês.
É preciso que a sociedade tenha consciência de que, se não houver um acordo nacional para mudar as bases do modelo de desenvolvimento, afundamo-nos todos juntos.
Na Catalunha os sindicatos aderiram a esse processo...
Com uma grande consciência dos problemas, dispostos a trocar flexibilidade de emprego pela manutenção dos direitos básicos. Ou seja: a eliminar o emprego precário e flexibilizar o emprego formal.
Que oportunidades são essas que os governos têm de criar?
Há duas coisas importantes: uma é a criação de um sistema de verdadeiro capital de risco - que é diferente de subsídios - que permita a quem tem um projecto de inovação tecnológica ou económica transformá-lo numa empresa sem ter de arriscar a sua vida toda nisso. Em Silicon Valley os mecanismos de capital de risco foram absolutamente fundamentais. Na Finlândia, como as instituições financeiras nacionais são extremamente conservadores - na Europa é assim -, o governo criou uma empresa pública, que depende do Parlamento e que actua como capitalista de risco. E que também investe em todo o mundo, incluindo em Silicon Valley, para aprender como se fazem as coisas. Isso agora é menos importante, mas foi decisivo em meados dos anos 90.
Outro exemplo finlandês muito importante é o Tekes, um organismo transversal, que identifica os projectos de inovação de empresas e universidades, que organiza as ligações entre as empresas e as universidades e que financia projectos em função das prioridades estratégicas do país.
Mas nenhum destes mecanismos serve de nada se não houver uma mudança da máquina administrativa.
Mas é possível promover uma cultura de inovação e do empreendedorismo onde ela não existe?
Creio que é possível. Em parte, essa responsabilidade cabe aos meios de comunicação. Os media são muito pouco dados a explicar estas histórias. A Andaluzia, que é dos governos mais dinâmicos de Espanha neste momento (o mais dinâmico é o de Euskadi, que tem a produtividade mais alta e que seria o "tigre europeu" se não tivesse o terrorismo), criou um programa de televisão que difunde iniciativas de empresários inovadores - desde a indústria do mármore, que se revitalizou graças a novas tecnologias e a novos mercados, até muito pequenas empresas agrícolas com tecnologias avançadas. Os programas são muito bem feitos, absolutamente profissionais, e as pessoas que aparecem são vistas pelos jovens como os novos heróis, são role models.
Há muitos outros exemplos de coisas que se podem fazer: na Catalunha, as escolas de engenharia têm cursos organizados pelas escolas de gestão sobre o que é ser empresário.
No seminário que organizou houve uma sessão sobre o Governo Electrónico (e-Governo). Por que é que isso é tão importante? Porque se gasta menos recursos que podem ser aplicados noutro lado, ou há um impacte directo da inovação do Estado no tecido económico?
Por um lado, há ganhos de produtividade do Estado. Outra coisa fundamental é a interligação das diferentes administrações e serviços permitir maior eficácia e rapidez da administração. Mas há mais. É muito difícil para uma administração dinamizar a inovação no tecido produtivo se ela própria não sofrer uma transformação tecnológica, organizativa e cultural. Para já não falar do efeito de transparência.
Na maioria dos países europeus, sobretudo nos países do Sul, os cidadãos não confiam na administração - com ou sem razão, todas as sondagens o confirmam. Isso é um obstáculo a tudo: ao pagamento de impostos, por exemplo. A transparência administrativa é fundamental tanto para a gestão como para a política. A tecnologia não garante a transparência. Mas se há um registo electrónico de todos os actos, a corrupção ou a má gestão tornam-se mais difíceis.
Há quem pense que a única coisa que precisamos de fazer é investir na educação e que o resto virá por si. Pensa que sim?
Não é verdade. Se se investe mais dinheiro para fazer a mesma coisa, o único resultado que se atinge é uma maior taxa de abandono escolar. Há que investir mais (porque a inovação não é barata), mas de maneira distinta. O que o ensino secundário obrigatório até aos 16 anos está a provocar em países como Espanha e Portugal é uma taxa de abandono escolar muito mais alta entre os 14 e os 16 anos.
Mas pode investir-se em educação com outros critérios, noutros sistemas de ensino...
Se se trata de investir para transformar o sistema educativo, é claro que o devemos fazer. Precisamos de investir em formação profissional de um novo tipo (mais do que em educação tradicional); precisamos de investir numa educação que possua maior interacção com o novo sistema tecnológico - mas dentro dos próprios currículos e não ao lado, não estou a falar de aulas de Internet. Aquilo que precisamos de investir na educação não são forçosamente mais recursos: é mais inovação administrativa, mais inovação cultural.
Disse que a Europa tinha em relação aos EUA dois problemas: a falta de capital de risco mas também a dificuldade com a imigração. Ora, a Finlândia é um país muito fechado a imigrantes. A Europa precisa ou não de imigrantes?
Neste momento, na Finlândia, esse é um dos grandes debates. O modelo é insustentável por esse lado: os finlandeses são demasiado poucos e demasiado velhos. Faz falta gente para tratar dos idosos e gente que trabalhe para sustentar a segurança social. Mas hoje a maioria dos países europeus estão a receber muita imigração. Barcelona passou, em cinco anos, de 3 por cento de população estrangeira para 12 por cento e as previsões para dez anos são de 27. É impressionante. A primeira coisa é reconhecer que é um facto que não pode ser travado.
Mas, em termos de qualificação, a imigração europeia é comparável à que chega à Califórnia?
Podemos ter aí grandes surpresas. A municipalidade de Barcelona fez recentemente um inquérito sobre o nível educativo dos imigrantes e descobriu que havia mais diplomados universitários entre eles do que na população nativa: 27 contra 17 por cento!
Mas essa formação universitária é utilizada? Em Portugal há engenheiros ucranianos a trabalhar nas obras...
A capacidade de absorver essa mão-de-obra qualificada depende da existência de postos de trabalho tecnologicamente avançados. Eles trabalham na construção porque é isso que se faz em Portugal. Não são os imigrantes que têm baixas qualificações, é o país que tem baixas qualificações.
Um dos seus temas recorrentes é que a tecnologia não é o factor crítico do desenvolvimento e da modernização mas sim a forma como as pessoas a usam. Em particular, sublinha que o factor crítico é sobretudo a rede, o networking. Como é se estimula o networking?
De facto, em 2004, só 3 por cento da fibra óptica instalada no mundo era utilizada. Quanto ao networking como tal, ele não se pode promover, mas podem promover-se as organizações que permitem utilizá-lo. A rede já é utilizada pelas pessoas para fazer o que lhes interessa: relacionar-se com os amigos, copiar música, etc. Mas olhem, por exemplo, para o caso dos serviços de saúde. Um hospital pode ter a política de estimular a criação de grupos de entreajuda de doentes, que trocam informação entre si, falam com as enfermeiras, etc. Isso é uma política, que exige recursos e formação, mas pode proporcionar muita informação aos serviços médicos, além de melhorar as condições dos doentes. Não é uma solução mágica, mas se houver essa possibilidade as pessoas tenderão a organizar-se.
As PME são as empresas mais flexíveis e as que criam mais empregos. Qual é o seu problema? Massa crítica. Podem concentrar-se, mas ao fazê-lo perdem flexibilidade. A resposta pode ser a cooperação, a construção de redes de empresas. Não é fácil fazê-lo numa cultura de desconfiança, mas se houver incentivos fiscais à cooperação, por exemplo, isso é um incentivo. Também se pode fornecer assessoria gratuita via Internet a estas empresas. Não é o Estado a produzir nem a mandar. O Estado pode criar condições tecnológicas e organizativas que permitem o desenvolvimento da rede.

Saturday, March 05, 2005

Sete medidas para um programa de esquerda Por Luís Campos e Cunha

Público, 5 de Setembro de 2004

«Estas sete propostas, naturalmente, não pretendem constituir um programa de governo, mas no seu conjunto teriam maior impacto no nosso futuro que muitos programas a que temos sido sujeitos. A maioria das medidas são, mais ou menos, conhecidas e até têm sido levadas a cabo nalguns países europeus. O que este texto tem de novo é a defesa articulada de medidas que poderiam ser o sal num programa de esquerda para mudar o país. Obviamente, cada uma delas teria que ser devidamente enquadrada num conjunto mais vasto.

1. Acabar com o sigilo fiscal (a par de uma declaração de riqueza) constitui a minha primeira proposta, seguindo, aliás, a prática dos países escandinavos. O acesso geral aos rendimentos brutos de cada um seria uma forma muito eficaz de controlo pelos cidadãos da evasão fiscal. Este combate terá sempre um impacto pequeno na consolidação orçamental, mas por razões de moralidade e equidade é absolutamente necessário prosseguir essa luta. Acabar com o sigilo bancário é menos eficaz e teria efeitos muito negativos no sistema de pagamentos a retalho, actualmente um dos mais eficientes do mundo, com os correspondentes custos para o consumidor. Não deixa de ser exemplar o que se passou na vizinha Espanha, em que o fim do sigilo bancário para efeitos fiscais levou ao surgimento de 'gangs' especialistas em extorsão (pelas contas bancárias fica-se a saber a vidinha de cada um...) e de acordo com os 'rankings' mundiais a Espanha continua a ter níveis de corrupção semelhantes a Portugal. Note-se que o sigilo bancário para efeitos fiscais já foi muito suavizado no segundo governo socialista e, naturalmente, não existe para crimes graves como tráfico de droga, prostituição, lavagem de dinheiro...

2. A segunda medida proposta também teria impacto fundamental na moralização da vida pública portuguesa: alterar a lei da droga. A droga deveria ser distribuída gratuitamente por receita médica, acabando, assim, com a possibilidade de realização de lucros ao maior negócio provavelmente existente em Portugal. O marketing dos traficantes deixaria de existir, "dealers" deixariam de ter interesse em seduzir os nossos filhos, a sociedade e as instituições seriam menos corrompidas e todos estaríamos mais seguros. Neste aspecto o exemplo dos suíços - também eles são um pequeno país - deveria ser tomado como referência.

3. Na área partidária é fundamental acabar com o financiamento privado dos partidos. Esta terceira proposta de financiamento exclusivamente público, que há muito vem sendo falada, permitiria isolar os partidos de compromissos pouco claros e de conflitos de interesses a que estão sujeitos, ficando mais imunes a "lobbies" ilegítimos, quando não mesmo ilegais.

4. Mas é também necessário atrair mais e melhores pessoas para a actividade política. Há dias, por mero acaso, revi a lista dos deputados-constituintes de 1975-76. De facto, estava lá o melhor que o país tinha e, comparativamente, a situação actual é triste e paupérrima, pese embora o empenho de algumas andorinhas em fazerem a Primavera... Sugiro, assim, como quarta proposta, que o vencimento das pessoas em cargos públicos seja (apenas como exemplo) 50 por cento acima da média dos rendimentos do trabalho declarados em IRS nos 3 anos anteriores a tomar posse! Em cargos estritamente políticos é necessário remunerar a função, mas também a pessoa. Desta forma afastar-se-iam da política os menos honestos e poderíamos contar com pessoas mais qualificadas. O impacto na despesa pública seria mais que compensado pelos resultados na qualidade e transparência da governação do país.

5. Noutra área bem diferente, pelo menos aparentemente, seria fundamental acabar com a dependência do financiamento das câmaras em relação a novos projectos urbanísticos. Esta quinta proposta, seria essencial para acabar com a construção indiscriminada, em prejuízo da indústria do turismo de qualidade, da preservação do património arquitectónico e arruinando o ordenamento do território, já para não referir as mais que indesejáveis dependências (de partidos e câmaras) face a empresas de construção civil.

6. Simultaneamente, sexta proposta, seria levantado um imposto sobre a terra: meio cêntimo por metro quadrado, por exemplo. Este imposto seria muito fácil de cobrar e não prejudicaria os mais pobres, o que não deixa de ser muito interessante, pois a teoria económica ensina que os "melhores" impostos são também em geral socialmente injustos. Este caso é a excepção. Mas os efeitos secundários do imposto sobre a terra seriam muito mais importantes. As terras improdutivas seriam postas no mercado, naturalmente os preços cairiam o que beneficiaria o investimento no sector primário. O emparcelamento surgiria sem imposição estatal, o abandono das terras seria penalizado, a dita desertificação seria contrariada... e até os fogos de Verão teriam mais dificuldade em se propagar...

7. Por último, não posso deixar de referir uma medida que me é particularmente cara e que defendo há anos e anos: introduzir o inglês na pré-primária. Já que outra linguagem ninguém ouve, saliente-se que esta é a forma mais barata para o Estado de ensinar inglês. Mas muito mais importante, alteraria a prazo a especialização e as vantagens competitivas na localização da actividade económica, factor essencial no mundo globalizado de mobilidade de capitais. Há muito que se refere uma banalidade: "o modelo português de desenvolvimento está esgotado"! Mas a generalização, desde a pré-primária, do ensino do inglês faria mais pelo desenvolvimento que as dezenas de "pedipes" levadas a cabo nos últimos 20 anos! E mais barato, mais uma vez...

Um velho professor meu avisou-me um dia que nunca se põe mais de uma ideia num artigo. Eu ousei falar em sete, mas com a consciência de que cada uma delas merecia um artigo, em especial o problema do sigilo fiscal como contraponto ao sigilo bancário, a alteração das leis da droga e o imposto sobre a terra.

Mais ainda, a lista é manifestamente incompleta. Por exemplo, apenas para falar do ensino superior necessitaria de vários artigos.

No entanto, com estas sete medidas teríamos a prazo, mais ou menos curto, políticos, partidos e um Estado mais fortes e independentes para enfrentarem os grandes "lobbies" e as forças corporativas mais imobilistas. E elas são muitas, desde logo o poder económico, mas também os professores (incluindo os universitários), os juízes, os médicos, os jornalistas...

Um aviso importante: defendendo estas medidas, perder as eleições poderá ser uma honra, mas é também muito provável!»