Thursday, September 30, 2004

Os "Populares" Por JOSÉ PACHECO PEREIRA

Público
Quinta-feira, 30 de Setembro de 2004

O "povo" devia ser uma abstracção, porque é suposto sermos nós todos do dito. Mas não somos. Há "nós", normalmente as elites, as "classes altas", e há "eles", os outros, o "povo", os "populares". As más-línguas, que sabem alguma coisa da Revolução Francesa, identificam logo essa distinção, colocando do lado de lá a "plebe", ou melhor, a "canalha". A "canalha" é o povo junto a fazer aquelas coisas que não agradam aos de cima, como seja falar alto, vestir mal, ser rude ou mostrar pequeno respeito pelo direito de propriedade. Depois, há a variante do "bom povo trabalhador", ou das "massas", uma salazarista, outra proletária.

Na prática, em democracia, o politicamente correcto é a abstracção do "povo", mas todos os dias a realidade social faz vir ao de cima a diferença. A publicidade e o marketing, que não cuidam dos pudores políticos, tratam com nudez e crueldade a diferenciação social: ele há as classes A, B, C e D; ele há uma "popular" para fazer propaganda ao Tide e ao Sonasol, e uma jovem tia em potência para os divãs e as viagens a Varadero. Não é que a jovem tia não use o Harpic, ou a "popular" não vá ao Algarve, mas a verdade é que não se anuncia um empréstimo bancário para jovens com o homem do Martini. Eles lá sabem porquê.

Recentemente, o "povo" entrou-nos em casa, pela porta da televisão, de duas maneiras: uma trágica e inevitável, outra ridícula e execrável. Refiro-me ao crime do Algarve, em que pode ter sido assassinada uma criança por familiares próximos, e essa é a tragédia da degradação que a pobreza e a exclusão trazem. Não "explica" nada, porque um crime é um crime e não há causalidades sociais que minimizem a responsabilidade individual, mas que a miséria conta, conta muito.

Agora o que é ridículo e execrável é o espectáculo dos "populares" à volta da tragédia, numa exibição dos piores sentimentos colectivos. Por esse "povo" não tenho nenhum respeito, nem por eles, nem pela televisão que os mobiliza e atiça, porque acho que a democracia não se faz só da igualdade e do maior número, faz-se da lei e dos costumes civilizados. E a turba dos mirones, ululante e voyeurista, não merece senão ser posta à distância. O PÚBLICO publicava há dias uma fotografia exemplar: uma fila de mirones dobrados, de rabo para cima, espreita por uma nesga do tribunal de Portimão. A um canto, uma câmara de televisão. Tudo explicado naquela metáfora da subserviência a uma curiosidade mórbida, que faz espreitar por uma fresta de uma janela, numa posição pouco decorosa.

Este espectáculo, aqui retratado no seu intenso ridículo, tem sido diário nas televisões. Um explica que já tinha vindo ontem e viera hoje de novo. Camisa vermelha berrante, que deve ser da mesma cor do carro que o trouxe. É também da mesma cor da do "assassino", cor de sangue. Pouco apropriada para o caso, porque aquele ar misto de boçal e imberbe não revela lá muitos apetites sanguinários, com excepção provável da cabidela. Outra, fala com a voz no limite da histeria: "Já cá estive ontem, todo o dia sem comer, até ia desmaiando", como se nós tivéssemos qualquer obrigação de lhe agradecer a dedicação à "menina". Uma rapariga nova, ar cheio de jovem mãe, de pernas abertas firme no solo, calças de ganga e "top", ri-se ao telemóvel. Outro, mais enredado em si mesmo, barba escura, talvez pescador pela pele tisnada, responde a uma jornalista: "Eu até acho mal que se matem os filhos..." Pois, deve achar. Três raparigas adolescentes passam de braço dado, com risinhos de cumplicidade, como se estivessem num centro comercial. Uma mulher, com o filho dependurado ao colo corre de um lado para o outro, para ver o carro da Judiciária, gritando "assassino". A criança, mais obediente às forças da natureza, força centrífuga, força centrípeta, lá oscila no braço da mãe. Muitas mulheres de puxo no cabelo são de lá, as com restos de permanentes são de fora. Uns homens de meia-idade, encorpados e de camisa aberta, clamam pela PIDE, outros valentões, encostados a uma carrinha, berram que se lhes fosse entregue o "criminoso", ele confessaria tudo ali mesmo. "Esborrachavam-no", palavra expressiva. "Deviam-no cortar aos bocadinhos", diz outro. Testosterona pelo ar não falta. Está calor

O que é que move todo este circo? O que é que os "populares" tinham ido lá fazer? Ver. Ver a polícia, ver o "assassino", ver a "mulher", ver a casa, ver as andanças públicas da polícia. "Ajudar", dando palpites, elaborando hipóteses conspirativas, abrindo tampas de esgoto - "fecha lá isso que aí não cabe a menina" - todos contentes por serem da polícia uma vez na vida. Vingar-se. De tudo, da vida que levam e que não levam, do emprego, do futebol do clube que não corre bem, da política, dos vizinhos. Há indignação, mas é muito residual, às vezes quase forçada.

O que os mobiliza não é uma causa nem um protesto, é uma mesquinha curiosidade, a vontade de ver um circo que todas as televisões transformaram em mais de dois terços dos telejornais, com directos absurdos para ocupar a inexistência de notícias que justificassem tanto aparato. A polícia ajuda, mostrando-se quando sabe que as televisões estão lá. O mecanismo pseudo-informativo repete-se vezes sem conta, e o resultado é sempre o mesmo: a excitação popular. Se houvesse um linchamento em directo, o que é que diriam as televisões? Perceberiam que elas próprias fazem parte dos linchadores? Que os crimes não se cometem só dentro daquela miserável casa de paredes brancas?

Historiador

Assessor de Santana Ganha Mais do Que Presidente da República Por HELENA PEREIRA E CRISTINA FERREIRA

Público

Quinta-feira, 30 de Setembro de 2004

João Paulo Velez, assessor para a área da comunicação do primeiro-ministro, foi requisitado a uma agência de comunicação que trabalha para uma série de instituições privadas e públicas com interesses em sectores estratégicos da economia e para onde estão projectadas privatizações. Velez ganha quase o dobro de Pedro Santana Lopes e mais do que o Presidente da República. Segundo a Rádio Renascença, o seu vencimento ronda os dez mil euros. O ordenado base do primeiro-ministro situa-se nos 5173 euros, enquanto o do Presidente é de 6897 euros.

O salário de Velez é alto comparativamente com os dos titulares de cargos públicos porque este optou por continuar a receber de acordo com o lugar de origem, ou seja, a João Líbano Monteiro (JLM) e Associados. Esta sociedade presta assessoria de imagem e de comunicação a gestores empresas privados e públicos. Entre os seus clientes mais emblemáticos, estão a Galp Energia, a PT (entrou com a administração de Murteira Nabo e manteve-se com a actual), a Somague, desde que foi adquirida pelo grupo espanhol Sacyr, ou o Banco Totta, controlado pelo Santander. Em 2003, esteve associada ainda à EDP. Algumas destas empresas ou estão em fase de privatização ou projectam adquirir posições de controlo em áreas estratégicas, como a das águas. A espanhola Somague já revelou ter ambições em controlar este sector estratégico.

João Líbano Monteiro é conhecido por ser um homem de confiança do social-democrata Joaquim Ferreira do Amaral, presidente da comissão executiva (CEO) da Galp, a quem prestou assessoria quando este era ministro das Obras Públicas e durante sua a candidatura falhada à Presidência da República. Está também ligado ao actual ministro das Obras Públicas e ex-presidente executivo da Galp, António Mexia. A sua acção desenvolve-se em duas vertentes: directamente, através da empresa, ou indicando pessoas da sua confiança, que podem trabalhar ou não na JLM.

A João Líbano Monteiro e Associados já estava ligada a Pedro Santana Lopes, através da sua candidatura à Câmara de Lisboa em 2001. Isabel Athaíde Cordeiro, que pertencia à JLM, fez parte do "staff" da campanha autárquica de Lisboa de Santana. O agora primeiro-ministro ainda contou com a colaboração de Miguel Almeida Fernandes, da Unimagem, nos primeiros momentos da campanha, mas depois optou pela JLM. Isabel Athaíde Cordeiro desvinculou-se da JLM e está como assessora de Carmona Rodrigues na Câmara de Lisboa. Antes disto, tinha trabalhado na área da comunicação na Expo 98, tal como João Paulo Velez.

De acordo com a lei orgânica do gabinete do primeiro-ministro, datada de 1988 (era primeiro-ministro Cavaco Silva e ministro das Finanças Braga de Macedo), "os membros do gabinete que sejam membros das Forças Armadas, magistrados ou trabalhadores da administração central, regional ou local ou de institutos públicos e de quaisquer empresas gozam da faculdade de optarem pelas remunerações correspondentes aos cargos de origem, que serão suportadas pelo orçamento da Presidência do Conselho de Ministros". É essa legislação que Pedro Santana Lopes menciona no despacho de requisição de Velez, datado de 5 de Agosto, embora não mencione qual a entidade a que é requisitado o assessor.

Velez não comenta o seu salário, mas garantiu à Rádio Renascença que toda a sua situação profissional é legal.

Ao contrário do salário dos adjuntos, o dos assessores não está fixado em lei e pode ser negociado entre as partes, sem direito a subsídio para despesas de representação. Um membro do gabinete do primeiro-ministro disse ao PÚBLICO que é igual caso seja uma requisição a uma agência de comunicação como a um órgão de comunicação social ou a uma empresa pública e que Velez é pago pela Presidência do Conselho de Ministros. Existem no Governo mais casos de requisições como esta, tanto ao nível de assessores como de adjuntos. O assessor de imprensa da Presidência do Conselho de Ministros (PCM) afirmou ao PÚBLICO que o salário do assessor de Santana é pago pela PCM, mas que pode haver casos em que, "por razões de facilidade de processamento de ordenado", aquele pode ser adiantado pela entidade patronal de origem, que depois é reembolsada pelo Estado.

Wednesday, September 29, 2004

A verdadeira história da colocação de professores, por LUÍS NAZARÉ

http://causa-nossa.blogspot.com

Fontes bem informadas, ligadas ao sector das Tecnologias de Informação, garantem-me que a história do flop na colocação de professores é outra. Há largos anos que o suporte lógico era assegurado por uma empresa externa e por um "grupo de ligação" constituído por cinco professores do norte do país. Era uma equipa fortemente experimentada e conhecedora das subtilezas e particularidades técnicas do exercício, anualmente revisto e actualizado para incorporar novas disposições regulamentares. Essa curva de experiência, tão importante nas aplicações "pesadas", permitiu anos sucessivos de eficácia e transparência na colocação dos professores do ensino público pré-universitário.

Já todos nos tínhamos habituado ao início a tempo e horas das aulas quando, surgida da sombra, uma voz influente de uma empresa "amiga" do PSD convence o ministro Justino e o seu secretário de estado (a ordem é arbitrária) a "mudar de software", trocando-o por um mais "moderno" e por uma relação contratual privilegiada. Adjudicada a obra, o velho "grupo de ligação", que tão bem tinha funcionado anos a fio, é desfeito sem explicações. Entretanto, surgem fortes dúvidas no interior da máquina interna do ministério quanto à razoabilidade da mudança. De dúvidas, transformam-se em angústias e em certezas quando, em Maio, são divulgados os primeiros resultados. Um flop total. Alguns dirigentes do ME pressentem que o governo teria fatalmente de encontrar um ou dois bons bodes expiatórios para o sucedido. O falhanço era demasiado grande para passar despercebido e os motivos demasiado gordurosos para poderem ser explicados. O desenlace foi hoje anunciado pelo Expresso. Venceu a incompetência e a irresponsabilidade do Governo, perderam dois dirigentes públicos que se encontravam no lugar errado à hora errada.

Luís Nazaré

Inserido por LN 18.9.04

Intolerável! Por M. FÁTIMA BONIFÁCIO

Público
Quarta-feira, 29 de Setembro de 2004

nquanto a operação "Borndiep" provocava o alarido publicitário desejado para celebrizar as "Women on Waves" e justificar a captação de financiamentos indispensáveis à organização, soube-se que a 28 de Outubro vai ser julgada uma rapariga de 21 anos que cometeu um aborto quando tinha dezassete. A jovem recorreu a uma pílula abortiva que produziu o efeito desejado mas lhe causou sequelas que a obrigaram a recorrer aos serviços hospitalares. Houve depois um enfermeiro que a denunciou e ei-la que, quatro anos após o "delito", se vai sentar no banco dos réus. É intolerável que, volta não volta, haja mulheres que pagam com a violentação da sua memória e a devassa da sua intimidade pelas deficiências de uma lei que perpetua o aborto clandestino em Portugal - quando não pagam com a sua liberdade no caso em que tenham o azar de deparar com um juiz "insensível".

As associações ligadas à operação "Borndiep" afiançam que a mesma foi um sucesso por ter relançado um "amplo debate" sobre a despenalização do aborto. Houve debate, sim, mas incidiu quase só sobre a questão de saber se o Governo tinha ou não o direito, e se era ou não avisado, proibir o barco de atracar num porto português; e serviu sobretudo para fornecer novas munições à guerrilha política entre a Esquerda e a Direita, reactualizando uma "questão fracturante" em torno da qual se encarniçam para medirem forças, e só subsidiariamente para resolverem o problema. Compreendo a inevitável politização do tema, mas lamento que o mesmo se ache quase reduzido a arma de arremesso entre partidos.

Depois do último referendo, a Direita jurou a pés juntos que colocaria o máximo empenho em desenvolver o planeamento familiar e promover a educação sexual por forma a reduzir e tendencialmente eliminar o "flagelo". Nada fez. No Parlamento, Helena Roseta propôs a criação de uma comissão que estudasse a sério e a fundo a realidade do aborto em Portugal. Também nada aconteceu, e até hoje não ouvi o Bloco nem o PS ou o PC reclamar pelos resultados da investigação. Continuamos assim sem conhecer números fiáveis e ignoramos tudo sobre a distribuição do aborto por classe social ou etária e a sua incidência geográfica. Continuamos tão desinformados como estávamos há três anos. Nestas condições, o debate dificilmente se poderá elevar acima de uma troca de impressões.

Mas há "impressões" de que ninguém de boa fé duvida e que deveriam, acaso prevalecessem um elementar sentido de justiça e respeito pela autonomia das mulheres, ser suficientes para justificar a liberalização da lei existente e, por maioria de razão, despenalizar o aborto. Venderam-se no ano passado perto de 500.000 pílulas do dia seguinte. Diminuíu com isso o número de abortos "propriamente ditos"? Não sei. Mas sei, mediante uma mera extrapolação a partir do universo meu conhecido, que se continuam a fazer; e que o aborto é uma das experiências humanas em que se faz sentir de modo mais revoltante a desigualdade social. Quem tem dinheiro vai a Badajoz, a Madrid ou a Londres ou encontra mesmo dentro de portas parteiras eficientes que executam a tarefa sem dor, com higiene e segurança; se despachar o assunto de manhã, à tarde pode ir às compras ou trabalhar. Quem não tem dinheiro recorre ao "vão de escada" e sofre as sequelas. Se tiver a sorte de não serem fatais, ainda pode ter o azar de vir a ser denunciada por qualquer enfermeiro de serviço. É para as mulheres pobres que o aborto é sempre um drama e às vezes uma tragédia. As mulheres ricas podem passar por dilemas angustiantes, mas a estas dores de consciência somam-se, nas mulheres pobres, um horrível sofrimento físico e o risco da própria vida. É uma realidade intolerável. Um elementar sentido de justiça exige que se lhe ponha cobro.

Não entendeu assim a maioria da população portuguesa em referendo. Por razões de princípio, não acho que o assunto deva ser referendado, por mais que agitem o espantalho da "fractura" e invoquem o valor da coesão moral da sociedade portuguesa. Mas a respeito do referendo sempre gostaria de dizer que tenho a "impressão" de que votaram contra muitas mulheres que fizeram a experiência de abortar. Quem conheça os "vãos de escada" conhece o ambiente de solidariedade ferozmente feminina que lá reina. As mulheres podem, se quiserem, abortar em absoluto segredo, resguardadas da curiosidade da terra ou do bairro, e sem que o marido, o amante, o irmão, a sogra, o pai ou a mãe venham jamais a saber. A legalização do aborto destruiria este precioso sigilo. Nos "vão de escada", o aborto é uma coisa privada das mulheres, que preferem carregar sozinhas com a culpa, o remorso e as hemorragias. É possível que esta mentalidade primitiva tenha começado a mudar, mas tenho a "impressão" de que até há poucos anos era assim. A respeito do referendo tenho ainda a "impressão" de que muitos homens respiram de alívio quando as parceiras abortam, mas que votam contra porque recusam às suas mulheres essa liberdade.

Não aceito que a minha vida, no que ela tem de mais pessoal e privado, seja determinada pela opinião maioritária dos eleitores portugueses. Ninguém nem nada me obrigaria a ter um filho que eu não quisesse. Não estou a pensar em problemas económicos, que felizmente nunca tive, nem em razões de saúde, que também me não faltou. Acontece que ter um filho - a única decisão absolutamente irreversível que tomei em toda a vida - exige, tanto ou mais do que meios económicos, uma disponibilidade total para amar e uma capacidade incondicional para aceitar responsabilidades e sacrifícios incluindo, alegremente, o da própria vida. Nesta matéria não admito os homens em pé de igualdade. Em 90 por cento dos casos, a responsabilidade por um filho recai pela maior parte sobre a mãe. São as mães que quase sempre ficam com os filhos quando o casal se separa; observo que a grande maioria dos pais satisfaz o seu instinto paternal com um ou dois fins-de-semana por mês, oito ou quinze dias de férias por ano e uma mensalidade insuficiente. Por outras palavras: a maternidade compromete a vida de uma mulher. E um tal compromisso não lhe pode ser imposto pela "vontade geral".

Nem lhe pode ser imposto como expiação de um "pecado" ou como alternativa obrigatória a um alegado infanticídio, como pretendem os movimentos chamados "pró-vida". Ninguém me convenceu até hoje de que um embrião com meia dúzia ou uma dúzia de semanas é um ser humano; será vida, como qualquer matéria orgânica é vida, mas em minha opinião não é vida humana. Em minha opinião, sim: a questão não é científica - por muito que os médicos "pró-vida" apregoem o contrário -, é religiosa ou filosófica. A doutrina da Igreja, de resto, tem variado ao longo dos tempos. Há 40 anos, quando governava o muito católico Salazar, os fetos de abortos espontâneos com menos de 500 gramas não tinham direito a certidão de óbito... Hoje, a Igreja sustenta que assim que um óvulo é fecundado estamos em presença de vida humana - em potência. Mais: que um óvulo e um espermatozóide, mesmo antes de colidirem, já configuram vida humana em potência. É por via desta dedução, aliás lógica, que a Igreja proíbe a contracepção e recomenda a abstinência. Como disse Albino Aroso ("Independente", 10-9-04), "os anti-aborto sempre contrariaram o planeamento familiar".

Acho muito bem que os católicos obedeçam à Igreja e adoptem "os métodos naturais", e até acharia ainda mais coerente que ligassem o sexo exclusivamente à procriação. Nada nem ninguém os impede. Mas já me parece intolerável que num estado laico e numa sociedade democrática pretendam estabelecer preceitos de vida para quem não partilha da sua fé, recorrendo ainda por cima a um terrorismo ideológico que não apenas inibe qualquer debate racional e sereno sobre o assunto, como cria artificial e insidiosamente um ambiente social desfavorável ao alargamento do planeamento familiar e à educação sexual. Assimilar o aborto a um infanticídio equivale a bloquear toda a discussão e conduz à negação hipócrita de uma realidade a que toda a gente, no entanto, chama uma "chaga social". Essa chaga suportam-na as mulheres, e dentro destas sofrem sobretudo, de longe, as mais pobres. Mas aqui parece que já não chega a consciência católica dos movimentos pró-vida.

Historiadora

Tuesday, September 28, 2004

Cursos de 3 anos em 2005-2006, EXPRESSO

Expresso, 25 de Setembro de 2004

A MAIORIA das licenciaturas vai passar a ter a duração de três anos, já no
próximo ano lectivo - revelou ao EXPRESSO a ministra da Ciência e do Ensino Superior. O financiamento deste primeiro ciclo está garantido para todos os cursos. O Estado garante ainda o financiamento de formações que necessitam de um segundo ciclo para o exercício da profissão, como sucede com a Medicina e com a Arquitectura, entre outras, sublinhou Graça Carvalho. Está ainda previsto financiar o primeiro ano do segundo ciclo de cursos que não podem ter menos de quatro anos - mas serão excepções, acrescentou.«O modelo que propomos para Portugal» - apoiado num trabalho produzido por grupos de docentes das universidades públicas e privadas e dos politécnicos - «tem em conta as necessidades do país e a situação nos outros países europeus», diz Graça Carvalho. Na maioria dos outros países vingou a solução 3+2 (um primeiro ciclo de três anos e um segundo, de dois). Este modelo assenta num sistema de créditos, que indica a situação académica do estudante. Para completar o primeiro ano são precisos 60 créditos e 180 para concluir o primeiro ciclo. Somam-se créditos com a presença nas aulas, os trabalhos e os exames e ainda, embora com uma fatia mínima, com outras actividades como o voluntariado. A revolução iminente no ensino superior português - quer ao nível dos currículos, quer ao nível da duração da formação - tem como pano de fundo a Declaração de Bolonha: um documento estratégico, concebido para promover a mobilidade e a empregabilidade dos jovens europeus. Os primeiros três anos (seis semestres) de formação correspondem ao chamado primeiro ciclo, que dará competências ao diplomado para exercer uma actividade ou uma profissão. O segundo ciclo, correspondente ao mestrado, terá a duração de quatro semestres. O terceiro ciclo terá como equivalente o actual doutoramento.Cinco anos de transiçãoSegundo a ministra Graça Carvalho, muitos dos estudantes que entrarão na universidade dentro de um ano serão formados já no espírito de Bolonha. Aliás, faz agora precisamente um ano que Pedro Lynce, então ministro do Ensino Superior, e todos os restantes homólogos dos países signatários de Bolonha marcaram a data para fazer a revolução: o ano lectivo de 2005-06. No entanto, no documento final sobre as novas graduações e os ciclos, fica salvaguardado um período de transição de cinco anos.Em Portugal, estão previstas algumas excepções, como a Medicina, cuja formação, pelas suas especificidades, será alvo de uma legislação própria. O mesmo poderá acontecer com a Arquitectura, mas por uma razão diferente: o facto de estar dependente de uma Directiva Europeia. «Para o exercício da profissão, a Ordem dos Arquitectos poderá optar pelos dois ciclos (três mais dois) e, neste caso, ao fim do 1º ciclo o graduado fica, por exemplo, habilitado a entrar no mercado de trabalho como desenhador», explica Graça Carvalho. A outra opção também está contemplada neste caso: a Ordem decidir que a licenciatura só tem lugar no final dos dez semestres. Neste cenário, o graduado sai com uma licenciatura e não com um mestrado, como sucederia na opção anterior. Situação semelhante poderá ser acordada para Direito (no fim do 1º ciclo, o diplomado está habilitado para ser solicitador, por exemplo, mas para exercer advocacia precisa de um segundo ciclo). A ministra dá outros exemplos: um engenheiro informático pode exercer a profissão ao fim de três anos, enquanto um engenheiro aeronáutico precisará do segundo ciclo (possuir o mestrado). Esta é uma das situações em que o Estado garante o financiamento do aluno.O processo de negociações com as universidade não está fechado. São esperadas algumas resistências, tanto mais que as instituições públicas são financiadas pelo Estado em função do número de alunos que têm matriculados nas licenciaturas. Graça Carvalho já tem, no entanto, uma resposta para estas eventuais reticências: haverá incentivos financeiros para os cursos que oferecem saídas profissionais ao fim de três anos.

Portugal Pode Perder a Face no Maior Laboratório de Física de Partículas

Público
Por TERESA FIRMINO
Terça-feira, 28 de Setembro de 2004

Portugal não está a cumprir os acordos financeiros com o Laboratório Europeu de Física de Partículas (CERN), na Suíça. Não paga as quotas anuais, como devia fazer por ser um dos 20 países-membros. Não paga às equipas portuguesas para construírem componentes de duas experiências do futuro acelerador de partículas da Europa - o Large Hadron Collider (LHC), o mais potente do mundo, que deverá funcionar em 2007. E não paga as verbas dos projectos de investigação ligados ao CERN, através de concursos abertos em Portugal pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Nos 18 anos de adesão, nunca se viveu uma situação assim, diz a física Paula Bordalo, nas vésperas do CERN cumprir 50 anos de vida.

Os incumprimentos podem ter várias consequências, alerta a professora do Instituto Superior Técnico (IST) e investigadora do Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas (LIP), em Lisboa. Para já, Portugal vai ter de pagar juros pelas quotas em atraso de 2003. Caso não sejam pagas também as quotas de 2004 até ao fim do ano, o país perderá o direito de voto no Conselho do CERN, o órgão de decisão máxima. É o que acontece quando se falha o pagamento por dois anos.

A humilhação nem será o pior. "O não pagamento das quotas traduz-se numa consequência mais grave: a impossibilidade das indústrias portuguesas participarem em concursos do CERN para projectos de construção e manutenção das suas infra-estruturas. Nestes concursos, Portugal tem obtido um grande retorno do investimento", diz a investigadora. "Tirando a parte humilhante, há a parte económica, que devia alertar o Governo."

A adesão de Portugal ao CERN, em 1986, permitiu às empresas concorrer em vários domínios. "Para a construção do futuro acelerador LHC, Portugal tem tido um retorno económico muito positivo. Várias empresas têm sido contratadas, nas áreas da engenharia mecânica e metalúrgica, novas técnicas de soldadura ou informática."

No acordo de adesão, Portugal teve condições vantajosas. Em vez de pagar a quota integral, em 1986 só pagou dez por cento e investiu o restante em Portugal; em 1987 só pagou 20 por cento e investiu 80 por cento e assim por diante, até 1995, em que já pagou a totalidade. Comprometeu-se a gastar o dinheiro das quotas em infra-estruturas, na formação de recursos humanos e no apoio à participação em projectos de investigação e desenvolvimento.

Assim, criou-se o Fundo CERN, para abrir todos os anos um concurso para projectos de investigação, explica Paula Bordalo, coordenadora do grupo português em duas experiências, a Compass e a NA50. Com essas verbas, as equipas pagam as despesas de participação nas experiências, como deslocações para recolher dados e fazer testes no CERN, ou para reuniões com todos os participantes. "As reuniões são fundamentais. Temos de ouvir o trabalho dos outros grupos e os outros têm de ouvir o nosso, senão somos postos de parte." Estas verbas contribuem ainda para um fundo comum de cada experiência, do qual se compra de material.

"Este ano não pingou um tostão"

"Todas estas verbas estão a faltar. sem dinheiro, não podemos assumir compromissos." Há dias, Paula Bordalo recebeu um E-mail do responsável geral da Compass a perguntar quando pagava a contribuição de 2004 para o fundo comum da experiência. "Para um estrangeiro, é inconcebível que, no último quadrimestre do ano, ainda estejamos à espera de receber as verbas dos orçamentos desse ano e cuja atribuição foi oficializada."

De facto, em Setembro ou Outubro, abre o concurso Fundo CERN relativo ao ano seguinte. Avaliados os projectos, por peritos internacionais, e divulgados os resultados pela FCT, as equipas costumam assinar os contratos em Janeiro e, aí, recebiam metade das verbas. Entre Junho e Outubro, recebiam mais 40 por cento e, após o fecho das contas, recebiam, entre Janeiro e Março do ano seguinte, os restantes dez por cento.

Os problemas começaram em 2002: nenhuma equipa recebeu os últimos dez por cento, denuncia Paula Bordalo. "A FCT não cumpriu o compromisso e não sabemos quando pagará o que falta." Para o concurso de 2003, só em Março ou Abril desse ano a FCT divulgou a avaliação: "E apresentou o contrato com a limitação de não poder ser retroactivo a Janeiro, contrariamente ao que o edital de Setembro anunciava", diz.

"A investigação não se pode fazer em 'part-time'. Não pode parar três a quatro meses, em que se deve continuar a colaborar com os colegas estrangeiros e continuar com os recursos humanos (estudantes de doutoramento ou pós-doutoramento). Tivemos de suportar um buraco orçamental de três ou quatro meses." Só uma parte das equipas recebeu a segunda prestação de 2003. "Tudo indica, por haver pagamentos em atraso, que não será tão depressa que receberemos a última prestação."

O concurso de 2004 não correu melhor. "O painel de avaliação só reuniu em Março!" Desde Junho, quando se divulgaram os resultados, com cortes de 30 por cento face a 2003, que as equipas esperam receber o contrato final. "Este ano não pingou um tostão. A situação está a tornar-se insustentável. É impossível dar continuidade aos projectos."

Jovens portugueses, a analisar dados das experiências para as teses de doutoramento, não puderam apresentar os resultados em conferências internacionais. "O trabalho que desenvolveram foi apresentado por outros. É uma pena", diz Paula Bordalo, perguntando para que serve gastar dinheiro no CERN se depois os cientistas não podem exercer as suas actividades normais.

O mesmo lamenta o físico João Seixas, do IST e coordenador do grupo português na experiência NA60. "A situação está a tornar-se crítica. Se o financiamento não chegar até ao fim do ano, haverá impossibilidade efectiva de continuar a trabalhar. O que é lamentável, ao fim de três anos de trabalho intensivo", alerta.

"Politicamente, a ministra da Ciência tem de dar uma solução. O ministério anda sempre a dizer que tem mais dinheiro para a ciência, para os bolseiros. Não vejo aonde", critica Paula Bordalo.



Ministério Diz Que Vai Pagar Dentro de Dias
Terça-feira, 28 de Setembro de 2004

As quotas em dívida ao CERN ascendem a 8.563.784 euros, informou o Ministério da Ciência e do Ensino Superior (MCES). Desse valor, 7.283.620 euros são da quota de 2004 e os restantes 1.280.164 é o que falta pagar de 2003. Em Junho, o MCES dizia que decorria a tramitação no Ministério das Finanças (MF) para pagar as quotas em atraso e, ontem, garantiu que o MF já autorizou o pagamento, que só não foi feito já por questões processuais. "Estão a decorrer os procedimentos administrativos para que o montante seja saldado, o que se prevê tenha lugar nos próximos dias", diz um comunicado. Estão ainda em dívida as contribuições de 2003 e 2004 (800 mil euros) para o novo acelerador do CERN, e também serão pagas dentro de dias. Quanto aos projectos de investigação ligados ao CERN, o ministério diz que as verbas de 2004 vão ser aprovadas hoje pelo gestor do Programa Operacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, e as que estão em atraso, de 2002 e 2003, vão ser todas pagas.



Participação no Novo Acelerador Está em Risco
Terça-feira, 28 de Setembro de 2004

A menina dos olhos do Laboratório Europeu de Física de Partículas (CERN) vai ser o acelerador Large Hadron Collider (LHC). Não haverá máquina igual, o que torna o laboratório um local de trabalho único e apetecível para cientistas de todo o lado. Exemplo disso são os EUA: não são membros, mas têm um acordo de colaboração com o CERN e participam no LHC. Portugal também participa, e os moldes em que o faz foram assinados em 1996: para tal, pagaria uma certa quantia, seguindo um calendário até 2007. Mas esse calendário está esquecido.

Graças ao acordo de 1996, o mais potente acelerador de partículas do mundo vai ter mão portuguesa na concepção e construção de componentes de duas experiências nos seus enormes detectores - o CMS e Atlas, que vão analisar o resultado de colisões de partículas, para continuar a desvendar os segredos da matéria. E, ao mesmo tempo, recriar os instantes iniciais do Universo, fracções de segundo após o Big Bang, onde nasceu a matéria e a energia.

Agora, a participação portuguesa no LHC está em risco. Em 2003 começaram os problemas. Por exemplo, para o CMS, no qual colaboram 25 cientistas portugueses de várias instituições, coordenados por João Varela, do Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas, havia o compromisso de pagar 2,8 milhões de francos suíços (1,8 milhões de euros), no total. Da contribuição, 400 mil francos (264 mil euros), para o fundo comum da experiência, já foram saldados, em dinheiro. O restante - 2,4 milhões de francos suíços, ou 1,5 milhões de euros - seriam pagos em equipamentos desenvolvidos pelos investigadores e indústria portugueses.

De 1996 a 2002, as verbas foram transferidas sem percalços. Mas as de 2003 e 2004 (700 mil francos suíços ou 452 mil euros) ainda não chegaram às equipas, que iam começar a construir protótipos. "Corremos o risco de não ter financiamento para construir a instrumentação que nos responsabilizámos a construir", alertava o físico em Junho.

"As consequências podem ser muito desagradáveis", dizia. Mais do que comprometer o do LHC, a credibilidade portuguesa ficará de rastos. Basta ver que na construção do CMS participam 2500 cientistas de 160 instituições, de 37 países. Também no Atlas, cuja participação portuguesa é coordenada por Amélia Maio, do LIP e da Universidade de Lisboa, colaboram 1800 investigadores de 150 instituições e 34 países.

"É impensável que Portugal não respeite este compromisso. Seria um golpe demasiado rude na credibilidade da ciência portuguesa. Os 2500 cientistas que participam no CMS não se privariam de espalhar a notícia. Se não formos nós a solucionar o problema, a nossa credibilidade baixa a um ponto mínimo. Ninguém vai querer colaborar com uns tipos que não cumprem os compromissos."

Para Paula Bordalo, da equipa do CMS, o desaparecimento do grupo português do acelerador causará apenas um pequeno atraso no desenvolvimento das experiências. "Como somos um pequeno grupo, há-de aparecer um grupo de outro país que cobre logo o nosso espaço, e então adeus." T.F.

Sunday, September 26, 2004

A Tia Clotilde e o Estado Por ANTÓNIO BARRETO

Público
Domingo, 26 de Setembro de 2004

ão era metediça, nem autoritária, antes pelo contrário. A minha Tia Clotilde gostava dos sobrinhos e tratava-os, desde sempre, como adultos. Tinha, perante a vida, uma atitude calma, que se traduzia numas dúzias de máximas e de directivas simples. Quem as quisesse seguir, muito bem. Quem não quisesse, era o seu problema. Quando, por exemplo, me preparava para viajar, já sabia que a sua última frase seria: "Não desças do comboio em andamento"! Quando sentia que estava a ultrapassar o seu papel de Tia amiga, terminava as suas advertências com uma conhecida sentença: "Era para teu bem!". É nela que penso hoje, todos os dias, cada vez que vejo o Estado ocupar-se do meu bem. Só que, com ela, era sincero. Com o Estado, tenho as maiores dúvidas. Que os padres, rabis, gurus e pastores de qualquer religião queiram impor comportamentos aos seus fiéis e seguidores, é lá com eles. Mas o Estado? Mesmo quando não está em causa o prejuízo claro de terceiros?

O Parlamento inglês acaba de aprovar uma lei que proíbe os pais de baterem nos seus filhos. Dos Comuns, vinha uma lei radical que condenava e transformava em crime qualquer acto violento por parte dos pais, incluindo bofetadas, cachaços, palmadas no traseiro, etc. Os Lordes, mais comedidos e menos zeladores, decidiram suavizar: proíbem os gestos violentos, mas permitem os que não deixam marcas! Imagino o que venham a ser as discussões técnicas e jurídicas à volta de uma nódoa negra, um vermelhão ou uns dedos encarnados na bochecha... A justificação central desta lei é a protecção das crianças. Para seu bem, pois claro. Parece simples, mas não é. A lei levanta problemas muito sérios, políticos, morais e filosóficos, incluindo os que dizem respeito à função da família, à autoridade do Estado dentro das quatro paredes de um lar, aos métodos de educação, ao incitamento à denúncia e à delação e aos efeitos perversos de uma lei como esta (Que se faz depois para proteger as crianças? Internam-se? Entregam-se a uma instituição tipo Casa Pia? E os Pais? Prendem-se?). Mas a verdade é que as modas actuais são estas e não acredito que haja países que venham a escapar. Mais tarde ou mais cedo, esta lei chegará a Portugal. Ninguém resiste à demagogia e ao populismo fácil. Tendo deixado de proteger as indústrias e a agricultura nacionais, o Estado concentra os seus esforços a proteger-nos a nós!

A proibição, que considero um bem, de castigos físicos nas escolas, tem fundamentos sólidos. Quem bate é um agente do Estado (ou de uma escola privada, ou de um seminário, ou de um regimento militar), em nome de um poder burocrático e de uma autoridade discutível. A protecção das crianças, neste caso, tem um sentido. Até porque a função dessas instituições é a de ensinar, não a de educar. E, mais do que proteger as crianças, trata-se de diminuir ou limitar os espaços de crueldade que as sociedades contêm. Os verdadeiros responsáveis pelos filhos e pela sua educação são os pais e restantes familiares, não os professores ou os assistentes sociais. Apesar de considerar que os castigos físicos, mesmo os administrados pelos pais, são geralmente condenáveis e traduzem deficiências de carácter e de afectividade dos progenitores, não me resigno a ver facilmente o Estado entrar uma vez mais por nossas casas dentro, para nosso bem, pois claro. E não me deixo comover com os argumentos dos exageros: para os casos típicos de violência, existem já leis suficientes que permitem julgar e eventualmente condenar qualquer gesto excessivo, incluindo os da autoria dos pais e familiares.

As formas de tratamento das crianças, capítulo particularmente sensível, têm merecido desmedida atenção, a ponto de ser hoje difícil adoptar um comportamento simples e natural. Tocar numa criança "ao de leve", eventualmente com carinho, começa a ser suspeito. Mas tocar numa criança com força, ou dirigir-se-lhe com autoridade, está à beira de ser crime em certos países. Já o é nalguns. De qualquer maneira, parece irreversível a ideia de que o Estado, as Igrejas e outras instituições são geralmente capazes de tratar melhor as crianças do que os pais e as famílias.

Já lá vai o tempo em que a acção do Estado, nestes domínios, se dirigia essencialmente a proteger uns dos outros, não cada um de si próprio. O Código da Estrada, por exemplo, foi ditado não só pela necessidade de regular uma actividade colectiva, o trânsito, como também pela tentativa de evitar abusos e agressões, nomeadamente dos condutores contra os piões e os ciclistas. Lentamente, as coisas mudaram. Os cintos de segurança, por exemplo, já têm uma justificação explícita diferente. Trata-se de proteger, não terceiros, mas o condutor contra si próprio. Além das companhias de seguros, dos serviços de saúde e do orçamento de Estado.

O tabaco é outro bom exemplo. Os grandes argumentos colectivos foram os primeiros. Fumar aumenta a poluição. Fumar é uma agressão contra os que não querem fumar. Ou fumar em locais fechados e públicos pode causar danos e incómodos a muita gente. Simplesmente, tais argumentos acabaram por perder força e sentido. Hoje, a luta contra o tabaco é, evidentemente, para nosso bem, do fumador. Fumar faz mal à saúde e é indiferente o que o próprio possa pensar sobre o assunto. Com bons e maus motivos, com boas e más intenções, a verdade é que a liberdade individual está a diminuir e que a privacidade está a ser ameaçada. Maus motivos? Más intenções? Com certeza. As modas do dia alimentam a demagogia. O desejo universal de ser eterno, belo e saudável transformou-se em pressão sobre os governos. A esperança infantil de ver o mundo conservado, equilibrado, harmonioso e límpido é uma razão de viver para muita e virtuosa gente, a que os governos não sabem resistir. Mas há ainda, finalmente, a razão última e com certeza mais importante: o Estado quer poupar dinheiro com a saúde, os hospitais, as baixas e os acidentes mais variados. Por isso se preocupa connosco. Com cada um de nós. Com o que se passa em minha casa.

Tudo começa com estudos e relatórios médicos. Depois, seguem-se os militantes da virtude, os lobbies de causas ecológicas e as almas cristalinas. Lá chega o dia em que os governos começam, primeiro, a fazer recomendações. Depois, incentivos oficiais. Finalmente, as proibições e a criminalização. O percurso do tabaco é o exemplo mais evidente. O que não impede a União Europeia de, ao mesmo tempo, proibir o consumo, subsidiar disparatadamente o cultivo de tabaco e impor taxas astronómicas. Mas depois do tabaco (ou antes) teremos um sem número de bens e comportamentos que seguirão a mesma via. Para nosso bem, pois claro. Mas em detrimento da nossa liberdade.

O álcool, a gordura e os hambúrgueres estão sob a mira dos zeladores. Os saltos altos das senhoras (gastam-se milhões por ano com entorses e outros danos na coluna), os brinquedos das crianças e certos tecidos já estão a ser estudados. As recomendações já existem, desde a ginástica quotidiana aos preservativos em qualquer circunstância, passando pela peça de fruta oferecida nas escolas, o copo de leite e uma dieta de fibras vegetais. Daqui à proibição e ao crime vai um passo. Sempre na esperança de que se as pessoas forem perfeitas e eternas não se gasta tanto com a saúde. E para nosso bem, claro. E não se pense que exagero. Nos Estados Unidos, depois dos recintos fechados e dos locais públicos, já há praias, jardins e parques onde é proibido fumar! Tanto lá como na Europa, já há localidades onde, em certos estabelecimentos públicos, mesmo que os donos e os clientes queiram o contrário, é proibido fumar. Como será, um dia, proibido beber, comer alimentos que favoreçam a obesidade ou entregar-se a actividades sexuais não protegidas.

Em Inglaterra, as companhias de telefones instituíram um método para nos proteger. A quem aluga uma linha, os serviços impõem um limite mensal de chamadas. Protestei e tentei eliminar o limite. Como não sou residente permanente, foi-me dito que era obrigatório. Apenas podia, eventualmente, elevar o limite. Ao inquirir sobre as razões de tão absurda medida, foi-me dito que era para meu bem! Uma pessoa pode distrair-se e deixar a conta ultrapassar o limite razoável! Como não acreditei, acabei por saber as razões verdadeiras: não querem que os clientes fujam, paguem a prestações e tenham dívidas. Para bem da companhia, pois claro.

Toda a gente ri com a leitura das proibições ridículas em vigor em certos municípios e Estados americanos e que dizem respeito à vida de cada um, e que vão desde a sodomia (mesmo entre adultos homo ou heterossexuais, mesmo em casa, mesmo entre casais legalmente constituídos) até a práticas mais ou menos estranhas com animais. Mas não vale a pena rir com a superioridade moral dos europeus. Por nossa conta, bem europeia, estamos a caminhar a passos largos para esses e outros absurdos.

De acordo com a literatura (neste caso, jornais e revistas), esperam-nos aí leis esclarecidas que, para nosso bem e para glória das virtudes humanas, vão mudar muitos dos comportamentos que julgávamos os mais anódinos. Espera-nos aí a obrigatoriedade (imposta sob pena de multa...) do uso de cremes contra o sol e de preservativos, de consumo de uma peça de fruta e de um copo de leite quotidianos, de uma hora de passeio a pé por dia, da frequência de aulas de comportamento cívico e de cursos de relações sexuais e afectos (os portugueses dizem, oficialmente, "de saúde reprodutiva"...), sem falar na proibição de ingestão de bebidas com açúcar, de refrescos gasosos, de chocolates, rebuçados e de "hambúrgueres". Alguns destes comportamentos virtuosos serão aliás alargados aos animais, como por exemplo, a proibição, já hoje legal em Inglaterra, de menores de 16 anos adquirirem "hamsters" ou peixinhos para os seus aquários. E já se discute mesmo o âmbito de aplicação destas novas regras, pois muitos dos comportamentos condenados sê-lo-ão mesmo dentro de casa. O que levanta o problema, menor para os virtuosos, do modo de vigilância e controlo. Enfim, coisa pequena!

Felizmente que o Estado zela! E me protege contra as más comidas, os maus hábitos, as más leituras e as más companhias!

N.R. - Estas reflexões de António Barreto não substituem a sua habitual crónica Retrato da Semana, que regressará ao contacto dos leitores no próximo mês de Outubro.

A Crise das colocações de professores, entrevista com DAVID JUSTINO

Público, 26 de Setembro de 2004

A Crise das colocações de professores

David Justino: Surpreende-me ter pedido uma auditoria aos concursos e ainda não ter sido ouvido

Isabel Leiria

PÚBLICO, com Raquel Abecasis/Rádio Renascença)
O ex-ministro da Educação diz que todo o processo de colocação de professores foi delegado no seu secretário de Estado da Administração Educativa, Abílio Morgado, e na directora-geral dos Recursos Humanos. Assume a responsabilidade política, mas apenas pela concepção das novas regras. E estas mereceram o acordo genérico de todos.

Há esclarecimentos que já podiam e já deviam ter sido prestados pelo actual Governo e pelo Ministério da Educação, defende David Justino, o anterior titular da pasta da Educação e actual deputado do PSD. O ex-governante nega qualquer ligação à empresa Compta e sente que não teve a "lealdade" dos seus colegas de partido e do Governo. Por isso, decidiu que era altura de defender-se.

Que explicações tem a dar sobre o que se tem passado nos últimos meses com a colocação dos professores e sobre este atraso no início do ano lectivo, que há muitos anos não era visto em Portugal?

A primeira explicação que tenho a dar é sobre o porquê do meu silêncio. Quando saí do cargo de ministro [da Educação] entendi que, durante uns bons meses, devia inibir-me de tecer qualquer comentário relativamente à forma como a Educação está neste momento a ser conduzida. Não só para dar toda a margem de manobra à nova equipa, mas também porque entendo que a presença assídua de um ex-ministro na opinião pública não é boa para a equipa, para o Governo, ou para a Educação. Por isso tentei levar até às ultimas consequências esse meu silêncio. Depois da tomada de posse da actual ministra apresentei-me na Assembleia da República. Tenho também uma carreira académica e já comuniquei ao director da minha faculdade que iria retomar a investigação e as aulas.

Está a dar esta explicação inicial para que não fique a ideia que tenciona regressar a uma vida política mais activa do que aquela que tem neste momento?

Eu sou professor associado da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas [da Universidade Nova de Lisboa] e tenho um orgulho enorme em sê-lo. Isto não quer dizer que tenha considerado a minha experiência governativa tão má, tão má, que não resista a qualquer outra experiência. Agora, vamos ser objectivos. Depois do que se tem dito acho muito difícil poder vir a ter qualquer outra responsabilidade política. A minha preocupação é cumprir o meu mandato de deputado até ao final da legislatura e retomar a actividade académica.

Mas então por que é que decidiu quebrar o silêncio?

Por duas ou três razões. Em primeiro lugar, acho inadmissível que não haja perante a opinião pública o esclarecimento dos factos que são já susceptíveis de ser divulgados. E, acima de tudo, é um silencio que eu entendo que vai sempre em desfavor de quem deu a cara por este processo.

Quem é que devia ter dado esses esclarecimentos?

Podiam ter sido dados quer pelo Governo, quer pelo Ministério da Educação [ME]. Mas não foram e deixaram as pessoas numa autêntica confusão. Isso leva precisamente a que as pessoas especulem e, a partir daí, comecem a acontecer coisas inadmissíveis. Houve um jornal diário que chegou ao ponto de falar dos "Negócios da Educação" e associar-me em termos de imagem a uma empresa, que é a Compta, e a dois militantes do PSD, que eu nem sabia que pertenciam à Compta. Quando se chega a este nível é a honra pessoal que está em causa. Até já se fala que tenho participações na Compta. Não tenho nem na Compta nem em mais nenhuma empresa. Eu nunca falei com a Compta, nem nunca acompanhei o processo de adjudicação da programação do concurso de professores.

Quem é que acompanhou?

Foi uma competência delegada no secretário de Estado da Administração Educativa [Abílio Morgado] e na directora-geral dos Recursos Humanos da Educação [Joana Orvalho]. Só a partir de um determinado valor que, se não estou em erro, é de um milhão de euros, é que o contrato tem de ter a homologação do ministro. Não era o caso. As direcções gerais estão constantemente a fazer concursos. Este, não sei, mas presumo que teria de ser homologado pelo secretário de Estado, porque tinha competências delegadas para isso. Devo confessar que só soube que era a Compta depois da adjudicação. Ou seja, esta suspeição politico-partidário e de interesses eu não admito.

Vamos então começar pelo princípio do problema...

Mas há algo que eu também acho que é importante dizer. Hoje, [sexta-feira], o Governo, finalmente, achou por bem instituir uma comissão de inquérito para averiguar. Eu acho muito bem e estou disponível para responder perante essa comissão de inquérito. Aquilo que me surpreende é ter feito o pedido de auditoria à Inspecção-Geral das Finanças (IGF) a 25 de Maio e, ao fim deste tempo todo, ainda não ter sido ouvido. Há mais de uma semana, propus ao meu grupo parlamentar que fosse criada uma comissão parlamentar - de inquérito, eventual, permanente, não me interessava o formato. A primeira reacção de que me apercebi foi de que, relativamente a uma proposta de comissão de inquérito, o PSD não se mostrou muito aberto.

Foi consultado sobre isso?

Não. Apenas apresentei ao presidente do grupo parlamentar, Guilherme Silva, que foi de uma compreensão que tenho de destacar, uma carta dizendo que etava disponível. Disse-lhe: "Façam o que entenderem, mas resolvam isso depressa". A cada dia que passa, aquilo que se vai verificando em termos de opinião pública e produção jornalística, é um autêntico juizo em praça pública, em que quase me enterram vivo. Eu respeito e tenho uma relação de lealdadade para com os meus colegas de partido, para com o partido, Governo, Assembleia da República. Chega uma determinada altura em que, se a lealdade não é recíproca, eu tenho de me defender.

A revisão do modelo do concurso de professores foi uma das grandes apostas do seu mandato. Não se sente responsável por aquilo que se está a passar?

Claro, politicamente responsável. Nomeadamente no que diz respeito à concepção do próprio modelo de concurso.

Acha que se continuasse ministro teria optado por um modelo diferente?

Não. O modelo de concurso foi publicado em diploma de Janeiro de 2003 e, face à experiência concretizada nesse ano, entendeu-se fazer algumas rectificações. Eu tenho de fazer justiça ao doutor Abílio Morgado. Ele foi o grande obreiro do diploma. Seguiu escrupulosamente as orientações que eu tinha dado, designadamente, acabar com os "mini-concursos", tornar o processo mais transparente. Acima de tudo, a ideia era fazer do concurso um processo que permita que o início do ano lectivo não esteja, de há muitos anos para cá, condicionado sempre por dois factores: colocação de professores e segunda fase dos exames nacionais.

Este ano os professores também continuam por colocar...

Só estou a lembrar o que eram os concursos dos anos anteriores. Na fase regional, a colocação de professores era feita em meados de Outubro e mesmo durante Novembro. O problema dos exames foi resolvido. Os concurso não correram tão bem. Mas das nove organizações sindicais envolvidas no processo, oito assinaram o acordo com o ME. A nona, que era a Fenprof [Federação Nacional dos Professores], teve a honestidade de dizer que só não assinava porque uma velha reivindicação que tinha acordado com o anterior ministro Augusto Santos Silva - a vinculação extraordinária de seis mil docentes contratados - não tinha sido contemplada. O diploma foi aprovado em Conselho de Ministros, foi promulgado pelo Presidente da República e nenhuma força política requereu a discussão do diploma no Parlamento. Perante este quadro, é só o "pai" do diploma que fez o "filho"? Neste processo de produção legislativa há responsabilidades que são repartidas.

Se o modelo não está errado, então o que é que correu mal?

Eu não sei o que correu mal. Desde meados de Julho que deixei de ter contactos com o ME.

Mas foi em Maio que se verificaram os primeiros problemas...

As primeiras listas provisórias que foram divulgadas então foram um desastre completo. Eu tive a ombridade de ir à Assembleia da República dizer que os erros eram imperdoáveis.

Uma questão prévia: como foi possível divulgar listas tão erradas que tiveram de ser anuladas?

Eu aceito a crítica, mas tenho de dizer que foram divulgadas sem a minha autorização, sem o meu conhecimento.

Não fizeram testes antes?

Eu acho que sim. Mas eu não estou na 24 de Julho [DGRHE], não sou director-geral, sou ministro e parto do princípio que, quer por parte da doutora Joana Orvalho, quer por parte do doutor Abílio Morgado esses testes foram feitos. No dia 24 de Maio, na comissão parlamentar, eu disse que se viessem a ser apuradas responsabilidade directas eu pediria a minha demissão. Não é por acaso que no dia seguinte, a directora-geral me envia uma carta em que assume a inteira responsabilidade pelos erros cometidos e pede a demissão. Tenho uma cópia, em que é dito o seguinte: "Considerando as repercussões que a acção técnica desta direcção-geral causou em matéria das listas provisórias do concurso dos docentes e educadores, pela qual, enquanto directora-geral, sou a inteira responsável, venho solicitar de vossa excelência a cessação das minhas funções, que exerço em regime de gestão desde 2002".

Por que é que não aceitou o pedido de demissão?

Eu falei com a doutora Joana Orvalho e disse-lhe: "É fácil aceitar o seu pedido de demissão e a senhora sai. Agora, eu fico com um problema por resolver." A directora-geral, como expressão de brio profissional que quero destacar, disse que estava disponível para continuar até resolver o problema. Decidiu-se então refazer o programa informático do zero.

Faltou Coordenação Entre Quem Sabe de Concursos e Quem Sabe de Programação

David Justino diz que o único dado objectivo que tem é a carta de demissão da directora-geral, em que é assumida a responsabilidade pelos erros

Nunca colocou em causa a escolha da empresa que venceu o concurso?

Não, porque tinha informações, quer da directora-geral, quer do secretário de Estado da Administração Educativa, que os técnicos da empresa demonstravam competência no que estavam a fazer. O pecado original estava no chamado "briefing", ou seja, o interface entre quem concebe e sabe de concursos e entre quem sabe de programação e executa falhou. Não há nenhum programa que possa ter êxito se esta articulação não existir.

E foi um processo que acompanhou a partir daí?

Não, porque todo este processo é uma delegação de competências no secretário de Estado da Administração Educativa. Que desempenhou um trabalho excepcional.

Perante os resultados que temos, como é que se pode dizer que foi feito um trabalho "excepcional"?

Foi por isso que pedi uma auditoria e é por isso que acho que deve haver uma comissão de inquérito. Só assim, em vez de se estar a estabelecer suspeições de responsabilidade, podemos saber, de uma vez por todas, o que competia a cada um e que, eventualmente, não foi cumprido. Até agora, o único dado objectivo que tenho é a carta da doutora Joana Orvalho, em que afirma ser a inteira responsável por isto. Na altura, eu tinha de ponderar o seguinte: mudo a equipa, mudo a empresa ou vou tentar resolver o problema. Optei por aquilo que era mais importante: resolver o problema. Para todos os efeitos, a lista ordenada que acabou por sair, e que é a base a partir da qual se faz a afectação dos professores às escolas, tem qualidade, reconhecida pelos sindicatos.

Mas depois de sucessivos adiamentos e de terem sido apresentadas 36 mil reclamações sobre as listas provisórias...

A partir da publicação das segundas listas provisórias, entra-se no período de reclamações e deixo de ter qualquer controlo porque saio do ME. Mas tenho de pedir desculpa a todos aqueles que foram fortemente prejudicados por este processo. Agora não me façam pedir desculpa por aquilo que não fiz.

Nuno Ferreira Santos/PÚBLICO

Thursday, September 23, 2004

Debate do PS e Unanimismo do PSD Por JOSÉ PACHECO PEREIRA

Público
Quinta-feira, 23 de Setembro de 2004

enso que o debate que se trava no PS o reforça e que o unanimismo no PSD o enfraquece. Tenho várias razões para o dizer, a principal das quais tem a ver com as necessárias mutações da vida partidária e a sua adaptação ao mundo mediático, nos seus bons e maus aspectos. Os bons aspectos têm a ver com a vantagem da comunicação social de massas em democratizar a vida política, levando a um maior número de pessoas informações que permitem sustentar uma decisão, neste caso de escolha de pessoas.

Os maus aspectos têm a ver com a selecção natural pelo espectáculo e não pelas qualidades individuais, e a notória capacidade de os media modernos substituírem o argumento, o Logos, pelo anedotário confrontacional e pelo soundbite. Os media tornam cada vez mais funda a contradição entre as qualidades exigidas para se ganhar uma eleição e as necessárias para se exercerem os cargos. É pois numa fina linha entre a vantagem democrática e a necessidade comunicacional, por um lado, e a perversão demagógica e o populismo, por outro, que tudo se decide.

Comecemos pelo PS. Três militantes de relevo do PS candidatam-se ao cargo de secretário-geral num processo eleitoral que se faz essencialmente na praça pública. Houve desde o início relutância por parte do PS nesta abertura do debate e tentativas de o restringir às sedes partidárias. Os maus hábitos morrem devagar e, se tal acontecesse, o que viria a público seriam as notícias cozinhadas pelos candidatos que melhor capacidade e contactos tivessem na comunicação social. Se as questões são públicas e se o debate é político, não há razão nenhuma para que o debate não seja público e eu tenha que saber o que João Soares pensa de Sócrates, e vice-versa, através de opiniões anónimas.

Depois, o modelo eleitoral de eleição do secretário-geral do PS aproxima-se cada vez mais do modelo genérico para a eleição legislativa e para a escolha cada vez mais decisiva da personalidade do primeiro-ministro. Sendo assim, as "primárias" partidárias exercem o efeito positivo de os eleitores poderem ter acesso a um processo de escolha, no qual se podem antever as qualidades dos dirigentes partidários que depois encontram no mercado eleitoral legislativo para o exercício da governação.

Para o debate ter efeitos positivos, ele deve ter mais do que a duração mínima de um congresso de três dias. Um dos meios de contrariar o efeito soundbite e os "homens de plástico" é serem observados numa situação de competição durante algum tempo. No debate do PS isso favoreceu Alegre, que se percebe que é uma personalidade com espessura, e mesmo Sócrates beneficiou do debate para se "fazer" no confronto, muito para além do "plástico" da sua desastrosa entrevista ao "Expresso".

Por último, não sendo o debate no PS muito interessante do ponto de vista político-ideológico, revelou diferenças tácticas na condução política do partido, por exemplo na política de alianças, cujo conhecimento melhora a transparência da vida pública.

No PSD vive-se um período muito diferente, de grande anomia partidária, e de um unanimismo esmagador. Tudo indica que este unanimismo se concentra no "aparelho" partidário (como no PS teria acontecido se o confronto de candidaturas não tivesse dissolvido o apoio maciço do "aparelho" a Sócrates), e é bem menor entre os militantes e os eleitores do partido. O peso deste unanimismo não é de agora, dado que a tradição de debate no PSD é diferente, em parte porque há uma cultura de autoridade interna que coexiste com uma tradição de rebelião, hoje já muito enfraquecida. Este enfraquecimento, que fez desaparecer (e não mais aparecer) grupos como a Nova Esperança, acompanhou a perda progressiva das qualidades basistas do PSD, durante a direcção de Cavaco Silva, acentuando-se com Fernando Nogueira, Barroso e Santana Lopes. O processo não foi linear e houve momentos em que o debate emergiu com toda a força, como quando Barroso confrontou Nogueira no Coliseu, talvez o último momento de "popularização" da vida partidária, levada aos portugueses em geral. No entanto, quase todos os dirigentes de topo do PSD, em particular Marcelo Rebelo de Sousa, Durão Barroso e Santana Lopes, actuaram de forma organizada e pública em oposição às lideranças do partido. Cavaco Silva fez o mesmo num passado mais longínquo.

Hoje, a desertificação do debate interno no PSD leva a acentuar as formas conspiratórias e anónimas do confronto político, formando toda uma nova geração nesse tipo de actuação. A conspiração, a fonte anónima, a intriga, acabam por ser aceites como naturais e pululam em recados nos jornais, como se vê em cada edição do "Expresso", ou nos jornais de recados, como pouco mais são o actual "Semanário" ou o "Diabo". A característica deste tipo de actuação é que pouco tem de político e por isso não interessa a ninguém, a não ser a um pequeno grupo de iniciados, eles próprios produtores e consumidores.

Cria-se no partido uma cultura claustrofóbica, em que se acha natural a fuga de informação, a opinião anónima, o "recado", e se ataca a opinião com nome e cara. Um exemplo típico dessa atitude é o comunicado da Comissão Política Permanente do PSD-Porto contra Marcelo Rebelo de Sousa, queixando-se da "crescente agressividade e despropositada animosidade que semanalmente expressa relativamente ao partido, seus dirigentes e militantes", e as "críticas injustas e desproporcionadas" que tem "sucessivamente emitido acerca da personalidade e desempenho dos membros do Governo", em particular Santana Lopes. Esta atitude é errada e nunca foi a de muitas pessoas no PSD, a começar pelo actual primeiro-ministro, que nunca se coibiu de fazer críticas públicas aos dirigentes do PSD e aos seus governos.

Sempre que no PSD se manteve um debate crítico público sobre política e suas orientações, o partido reforçou-se, a exemplo do que acontece hoje com o PS. Seria por isso positivo, inclusive face a um novo Congresso, que o partido abrisse um debate franco nas suas fileiras, nos seus meios de comunicação, nas suas páginas electrónicas, sobre matérias tão cruciais para o seu futuro como sejam a política de coligação com o PP, os aspectos da governação, a estrutura organizativa, o futuro da JSD e TSD, a modernização do seu Programa e dos Estatutos, sem que tal debate se faça, logo à cabeça, associado a listas, delegados, moções e lideranças.

Historiador

Um por Todos: o Jogo do "Faz-de-conta", CARTA AO DIRECTOR

Pùblico
Quinta-feira, 23 de Setembro de 2004

Sou professor numa escola de ensino básico que abriu portas no dia 16. Desde essa data tenho dado aulas, visto fazer parte do quadro da escola, pelo que os atropelos à profissão docente, que têm acontecido ultimamente, passam-me um pouco ao lado. Isso não quer dizer que não seja sensível ao problema de milhares de colegas, incluindo aqueles que conheço directamente e que, caso estranho, mostram um semblante optimista, apesar das atrocidades a que têm sido sujeitos. Não são eles os únicos afectados, mas nem é isso que aqui está agora em causa.

No tocante ao funcionamento da escola em que lecciono, tenho a dizer que tudo se passa num universo algo virtual, digno de um filme de ficção, dos mais arrojados. A nível de 2º ciclo, são quatro apenas os professores a leccionar e, no tocante ao 3º ciclo, sou apenas eu que estou em funções. Ou seja, há alguns professores (os do quadro de zona, colocados nesta escola, no ano passado) que têm um horário de substituições, devendo cumpri-lo relativamente aos professores que faltam. Mas quem falta? Os que, como eu, estão já ao serviço (e até nem faltam) ou aqueles que, sendo do quadro da escola, só se apresentaram no início do ano e nunca mais ninguém os viu, até porque fazem parte dos mais de 50 mil que estão por colocar em destacamentos? Isto é: olho para o livro de ponto e, por cada dia que passa, apenas eu assino e sumario as aulas, ficando um enorme vazio correspondente aos longos períodos em que os alunos se arrastam pelo recinto escolar, sem ordem de saída, como é de lei.

Mas também não é por eles que redijo estas laudas. Elas surgem a propósito da ficção criada em se insistir em abrir escolas, para criar números fictícios que credibilizem o Ministério da Educação e, indirectamente, o próprio Governo, ainda que à custa de tudo se passar em teoria e na forma do "faz-de-conta". Os alunos lá fazem o jeito de vir às minhas aulas e eu procuro fazer de conta que tudo acontece na maior das normalidades. (...)

Comecei por uns textos de diagnose, usando Herberto Hélder, Eduardo Lourenço e um senhor (Abílio Louro de Carvalho) que escreveu uma Carta ao Director do PÚBLICO, no dia 13 de Setembro. Textos que problematizam a sociedade, a nossa maneira de ver as coisas e a forma de nos interrogarmos sobre o real. Com Herberto, percebemos que o real não é exactamente aquilo que aparenta, porque "a lei da metamorfose" forma a "insídia do real" ("Teoria das Cores", in "Os Passos em Volta").

Eu creio que, como alguns alunos, não me reconheço, nem consigo rever-me no papel do um (eu) por todos (os outros professores). Sinto-me a personagem inventada, máscara de um delírio. É só quando paro para pensar (ou escrever coisas como esta) que deixo de me sentir alienado, porque me disponho a procurar a verdade.

Mas alguém quer que eu não pense e prossiga o jogo do "faz-de-conta". E eu não quero ser esses professores todos. Que diabo se faz numa escola assim, em que a nossa realidade não é de todo humana? Sou a pessoa que caminha e tropeça em si mesma, como num sonho. Depois de acordar, tenho de me identificar ("anagnórises"), mas não sei invocar o meu nome, porque, nesta realidade kafkiana, trocaram-nos os nomes todos e destituíram-nos de memória. O nome que tenho também foi inventado, para que não pudesse voltar a mim. Sou um, sou todos, não sou nenhum.

António Jacinto Pascoal

Professor

O Diário Secreto de Paulo Portas com a Idade de 42 Anos, Por MARIA FILOMENA MÓNICA

Público
Quinta-feira, 23 de Setembro de 2004

23 de Agosto - Ao que consta, está para chegar à costa portuguesa um barco holandês, o "Borndiep", pertencente à Women on Waves. Esta organização pretende ressuscitar a polémica à volta do aborto. É uma maçada ter de me ocupar de coisas do mulherio, até porque, sobre o sexo oposto, a minha visão é aristotélica (reler as notas que elaborei para as minhas aulas de "História das Ideias Políticas"). Mas em tudo há que encontrar um lado positivo. Vou aproveitar o facto de a maioria dos meus colegas de Governo estar de férias para brilhar em todo o esplendor. A vigília é minha.

24 de Agosto - Ainda bem que também sou ministro do Mar. Não é por acaso que o nosso hino, infelizmente tão esquecido, começa com as palavras: "Heróis do mar...", nem que a nação valente é tão católica. Tenho portanto aliados. Aqui, num dia, pode-se fazer um aborto, e, no seguinte, ser-se absolvido pelo pároco mais próximo.

25 de Agosto - Fui ler o Código Penal, que, durante o curso na Universidade Católica, não consegui consultar na íntegra. Fiquei estupefacto. Afinal, no que respeita ao aborto, a lei portuguesa é liberal. Só o não sabe a população, porque, ciosos dos seus pergaminhos, os médicos se recusam a sujar as mãos. Ao contrário do que sucede em Espanha, ainda não apareceram, no nosso país, obstetras com iniciativa empresarial. É por isso que tantas portuguesas vão à Clínica El Bosque, do outro lado da fronteira. As auto-estradas do prof. Cavaco estão a facilitar o crime. É o preço do progresso.

27 de Agosto - Invocando a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar de Montego Bay (eu quero lá saber das leis europeias), mandei notificar o comandante do "Borndiep" que o Governo não autorizava a entrada do navio em águas nacionais. Na eventualidade de aquele não respeitar a interdição, a Marinha está a preparar várias corvetas de guerra para vigiar os seus movimentos. É evidente que, caso não impeça o barco de entrar em águas nacionais, o Governo deixará de ter autoridade para combater a pesca ilegal, o tráfico de droga e a imigração clandestina. O mar territorial português não é uma selva.

29 de Agosto - A líder das holandesas, uma tal Rebecca Gomperts, afinal é médica. Mas isso não quer dizer que possa poluir as águas nacionais com o sangue de fetos mortos. Os nossos adolescentes têm de aprender a controlar a testosterona e o estrogéno, que andam aos pulos nos seus corpos, de forma a fazer filhos atempadamente.

30 de Agosto - Um patriota enviou um "e-mail", no qual dizia: "Tenham vergonha. Em Portugal, mandam os portugueses e não meia dúzia de gatos-pingados armados em senhores da lei." É isto que o Marcelo não percebe. Dantes, quando ele andava com o referendo na alma, era a sofisticação no frasear que o preocupava. Agora, chama-me "chico-esperto". Ele que se ponha a pau.

2 de Setembro -O Santana Lopes fez declarações ambíguas sobre a possibilidade de se mudar a lei no próximo ano parlamentar. Diz que as leis não são "estáticas", nem ele é "dogmático". Tudo isto se deve ao facto de ele gostar de ter filhos, o que não sucede no meu caso. No passado, quando tinha tempo para ir ao cinema, citava frequentemente a frase de W. C. Fields : "Eu gosto de crianças... mas bem cozidinhas numa panela." Agora não o posso fazer, porque sou importante. O que tem desvantagens, como a de ter de aturar os amuos do Jorge Sampaio, o qual acha que foi - claro que foi! - marginalizado. Enquanto eu me ocupo da defesa da vida, ele que se entretenha com a sua Casa Civil.

4 de Setembro - Mais uma vitória pessoal: o Governo holandês reconheceu que a recusa da entrada do barco era legal. A imprensa internacional -- que tem andado a propalar calúnias - devia meter a viola no saco. A jornalista do "El País" diz que entre 20.000 e 40.000 portuguesas abortam clandestinamente todos os anos (ou vão a Espanha). Mas os números que surgem na imprensa são divergentes. O aborto devia ser proibido, ponto final. Neste caso, deixariam de existir estatísticas falsas.

6 de Setembro - Nova vitória. Com a sua reconhecida falta de imaginação, a Helena Roseta declarou: "Não posso compreender que o PSD esteja de cócoras perante o Paulo Portas." Num inquérito feito pelo PÚBLICO, 40 por cento dos respondentes, como eles dizem, concordaram com a minha política. Os portugueses acreditam em valores eternos, como Deus, pátria e família. Às vezes, tenho saudades dos tempos em que era liberal. Mas esta fase da minha vida, um fruto da imaturidade, ficou para trás.

7 de Setembro - A maluca da Rebecca Gomperts veio a Lisboa, onde conseguiu comprar, sem receita, uma pílula indutora do aborto. Foi, de seguida, para a SIC dizer-se surpreendida. O mesmo não sucede, como é óbvio, com os portugueses, que sabem ser-lhes possível comprar todo e qualquer medicamento nas farmácias. Habituada a viver num país protestante, onde os cidadãos obedecem às leis, a menina não entende os sadios hábitos da nação mais antiga da Europa.

8 de Setembro - Acordei a meio da noite, a pensar que a polémica acerca do aborto - com a menção dos nomes de medicamentos que se podem comprar através da Internet - é capaz de favorecer a causa do inimigo. Para me consolar, telefonei ao Luís Nobre Guedes, com o qual combinei uma nova estratégia de afirmação do PP.

9 de Setembro - A Associação Portuguesa da Maternidade e Vida apresentou ontem queixa contra Rebecca por esta se ter gabado na TV de ter adquirido o tal Arthotec. É pena que três reputados especialistas em Direito Penal - entre os quais Germano Marques da Silva - tenham vindo a público declarar que, uma vez que a dita não "instigara" ninguém, não cometera qualquer crime. Três dias antes do previsto, as militantes do "Borndiep" partiram. Ao que parece, quando o mar fica demasiado picado, a causa passa a segundo plano.

10 de Setembro - Na Tunísia, onde estou em visita oficial, chegam-me ecos de que Francisco Balsemão, outro que gosta de fazer filhos, teria afirmado que o PSD daria uma imagem "mais tolerante" de Portugal no estrangeiro do que aquela que eu exporto. O BE também ameaçou interpelar o Governo sobre os direitos reprodutivos das mulheres. Exceptuando o mano Miguel, não me interessa o que pensam. Aliás, as praias da Tunísia acalmaram-me o espírito.

11 de Setembro - A minha mãe escreveu um artigo sobre a questão do aborto no "Diário de Notícias", no qual afirma respeitar as divergentes opiniões dos seus dois filhos. É uma querida.

12 de Setembro - Estou-me nas tintas para o aborto. Sei, contudo, que a questão, num país onde existe uma Igreja poderosa, pode render em votos. Se for preciso chamar assassinos a uns e fascistas a outros (coisa que Sampaio desaprova), fá-lo-ei. Triste de quem vive em casa, contente com o seu lar. Eu gosto da luta. As miúdas holandesas, defensoras da ideia de que as mulheres só devem ter os filhos que desejam, não sabem com quem se meteram.

Historiadora

Wednesday, September 22, 2004

Regresso às Aulas Por LUÍS SALGADO DE MATOS

Público
Segunda-feira, 20 de Setembro de 2004

O regresso às aulas é este ano assinalado pela singular e persistente incompetência da nossa burocracia educativa. Deveremos mudar de alto a baixo as escolas portuguesas e reconhecer "aos pais o direito de optar livremente entre qualquer delas"?

A frase entre aspas é do Fórum para a Liberdade de Educação, uma associação patrocinada por homens de prestígio como são os professores Mário Pinto, Fernando Adão da Fonseca e João Carlos Espada. A frase defende o chamado "voucher": quando os pais não gostarem de uma escola pública, transferem os filhos para uma privada e o Estado dá-lhes um "voucher", uma guia, pagando a nova escolha.

Hoje, temos o direito de optar por uma escola privada mas pagamos duas vezes: pagamos os impostos com os quais o Estado financia o ensino e pagamos a escola privada. A guia restabeleceria a liberdade efectiva.

A ideia parece aliciante. Ninguém contesta que cabe aos pais o direito sobre a educação dos filhos pequenos.

A ideia, porém, só é aliciante na aparência. É desaconselhada por três motivos. O primeiro é a sua impossibilidade prática. As escolas infantis, básicas e secundárias são monopólios locais. Os alunos têm que lá ir, não podem fazer os cursos pela Net. Os custos e o tempo de transporte são por isso determinantes. Nas grandes cidades haverá alguma margem de escolha, ainda assim limitada, pois o trânsito de veículos "diesel" é cada vez mais lento nas horas de ponta. Fora dos grandes centros urbanos, haverá só uma escola ao alcance de cada aluno - e por isso os pais não poderão escolher.

A segunda razão é fiscal. Todos aceitamos que os nossos impostos financiem a escola pública pois o ensino nela fornecido é um bem público ainda que de consumo pessoal. Mas o leitor aceitará que o produto dos seus impostos seja entregue ao vizinho do lado para ele pôr o filho no Liceu Francês? Sentir-se-á defraudado, pois o Ministério das Finanças passaria a ser o cobrador coercivo do seu vizinho, para fins educativos. A guia conduziria ao fim da intervenção pública na educação pré-universitária.

A terceira razão é social. Um sistema em que o Estado financia a escola à vontade do freguês favorece os estabelecimentos de ensino dos extremistas - religiosos, políticos, ideológicos. A escola actual dá integração social, a guia aceleraria a fragmentação.

A guia escolar teria pois indesejáveis efeitos perversos. É certo que a escola actual é centralista e privilegia os professores. Temos que a aperfeiçoar, aumentando a fiscalização das famílias e dos cidadãos, no respeito da autonomia escolar. Pondo sempre os alunos à frente. Porque o sistema tende a esquecê-los. Quer um exemplo? Ainda há dias, o PÚBLICO on-line resumia uma recente publicação da OCDE sobre ensino subordinando-a ao tema dos salários dos professores e sem nunca referir o que os alunos aprendem - ou como.

Investigador de ciências políticas

Os "Filhos de Rousseau" Têm as Costas Largas Por ANTÓNIO MANUEL HESPANHA

Público
Domingo, 19 de Setembro de 2004

A generalidade dos comentadores estabelecidos vem elegendo como culpados de quase todo o mal do mundo os "filhos de Rousseau". Querem designar assim os que entendem que tem que haver algum governo; e que é melhor que esse governo provenha de um sujeito que se sabe quem é - nem que seja para o criticar - do que de entidades sem lugar, sem nome, sem cara, como é o "mercado", a "globalização", o "país real". Essa entidade de quem os "filhos de Rousseau" esperam uma certa racionalização da desordem estabelecida é o Estado.

Claro que o Estado, na sua curta vida de dois séculos, foi sempre razoavelmente mau: planificou mal, executou pior, foi arrogante e abusivo no exercício do poder. Porém, isto aconteceu tanto mais quanto a ideia original de Estado se corrompeu. De facto, na ideia original, o Estado devia ter essa força toda porque ele era a encarnação da vontade geral ou, pelo menos, generalizada. E, por isso, os revolucionários sempre partiram do princípio de que o Estado, por ser poderoso, tinha que ser democrático.

Desta paixão estadualista surgiu a Europa que nós conhecemos. Muito do que temos de bom veio da mão do Estado ou foi por ele decisivamente impulsionado - as estradas e caminhos-de-ferro, o fomento da economia, a generalização do ensino, da saúde e da previdência, a protecção dos mais fracos e, já agora, a ordem pública e a defesa externa, E, tanto isto marcou as nossas vidas que, quando nos queixamos de que algo não vai bem, queixamo-nos ao Estado, ou queixamo-nos do Estado. Claro que dele também nos veio muito de mal. Ditaduras, violação de direitos, guerras, protecção de interesses camuflados de públicos, corrupção, desperdício e má gestão.

De tudo isto, a "nova direita" costuma eleger como herança de Rousseau os totalitarismos modernos: o nazismo e o estalinismo (ficando o maoísmo um pouco mais esquecido, por compreensíveis nostalgias de muitos dos nossos liberais mais evidentes). Quando (finalmente) ataca o totalitarismo, a direita tem razão. No entanto, o que é preciso notar é que a ditadura surge quando e, só quando, o projecto revolucionário de Estado é amputado da sua componente democrática. Componente que inclui não apenas a liberdade de decidir, mas também a criação de condições para decidir livremente. Fomentando a igualdade, desenvolvendo a cultura, garantindo a pluralidade, fomentando o pensamento crítico, acarinhando - como propunha o liberal Stuart Mill - os extravagantes e os dissidentes.

Os privados podem, naturalmente, fazer por tudo isto. O voluntariado, as ONGs, as Igrejas, as fundações, o mecenato científico e cultural. Mas, por muito que lhes creditemos, não foram eles quem fez o essencial da sociedade de bem-estar. Foi a mão orientadora (e pagadora) do Estado.

Não de um Estado ideal, ocupado apenas por sacerdotes virtuosos do bem público. Não! A mão do Estado que temos tido! Ou seja, de um Estado que - soe ou não isto a panfletário - tem estado quase continuamente ocupado pelos poderosos da sociedade civil, por alguma decência pública que estes, na situação, tenham que ter. Claro que este não era o Estado de Rousseau. Mas é este - o Estado deles - que os liberais conservadores nos atiram à cara.

A alternativa ao Estado é o não-governo. Cada um a fazer pela vidinha. Claro que a vidinha de uns não lhes permite que façam muito por ela. Mas a vidona de outros faz-se mesmo à custa destas disparidades. Ou seja, a situação de desregramento só desgoverna a vida de uns. Em contrapartida, outros governam-se justamente com o desgoverno.

Resta-nos sempre ir aprendendo com os obsessivos esforços educativos dos liberais, que sensatamente crêem que eles é que sabem como é que nós devemos saber e fazer. Todas as semanas, nas suas colunas de jornal, lá estão eles a ensinar-nos a pensar, a sentir, a comportarmo-nos, já tendo um chegado mesmo à maneira de nos vestirmos. Tudo muito liberalmente, claro...

Historiador. In História, nº 69, Setembro, 2004, p. 82

Desenvolvimento Científico e Dinâmica de Inovação - a Propósito do Choque Tecnológico Por A. TRIGO DE ABREU

Público
Quarta-feira, 22 de Setembro de 2004

Existe um largo consenso na sociedade portuguesa sobre os diagnósticos do processo de inovação e do crescimento económico, mas ele não se estende às estratégias políticas anunciadas no sentido de vencer o atraso que ainda separa Portugal dos seus parceiros europeus. Importa, assim, reflectir sobre os requisitos de qualquer estratégia neste domínio, com três aspectos que condicionam radicalmente o seu sucesso:

Uma estratégia de inovação exige consenso, persistência e continuidade. A continuidade é indispensável para vencer o atraso, rejeitando os milagres apressados que prometem este mundo e o outro, de hoje para amanhã. Exige também persistência na implementação concreta das políticas definidas, afirmando a necessidade de construir consensos políticos mínimos que assegurem a estabilidade das políticas públicas e a confiança dos cidadãos e das empresas.

As políticas de inovação são hoje necessariamente referidas às trocas mundiais de conhecimento e de tecnologia e aos fluxos internacionais de investimento. Uma estratégia nacional de inovação tem de ser necessariamente internacional. Neste sentido, as referências que se fazem aos sistemas nacionais de inovação correm o risco de ressuscitar os fantasmas nacionalistas da auto-suficiência que os tempos se encarregaram de dissipar.

Uma estratégia de inovação sustentada deve ainda ser ancorada na percepção social da importância da ciência e da tecnologia (C&T) para o progresso económico e social. Esta percepção envolve necessariamente uma familiaridade com os conceitos básicos da ciência e da tecnologia, e não só por parte da população escolar, sublinhando a necessidade de um apoio continuado à difusão da cultura científica.

Continuidade, internacionalização, apropriação social da C&T são elementos centrais de qualquer estratégia de inovação que queira ultrapassar os limites dos sucessivos compromissos com Portugal, que morrem no instante em que são anunciados ou dos choques fiscais ou tecnológicos cujos efeitos se desfazem como fumo à medida que o tempo passa.

Hoje, pretende-se opor o choque tecnológico ao choque fiscal de Barroso. Não se combate uma miragem com outra miragem. A proposta de um choque tecnológico como solução para os problemas de competitividade do país será uma boa jogada de marketing a curto prazo, mas é inverosímil. Por definição, um choque é uma mudança abrupta, uma espécie de "big bang". Ora, nenhum país teve, tem ou terá a possibilidade de conseguir um significativo salto qualitativo e quantitativo da sua base científica e tecnológica e da sua capacidade inovadora, por efeito de um qualquer choque. Quando se fala de política científica e tecnológica em relação com a inovação e o crescimento é preciso partir de conceitos sólidos e ideias bem arrumadas. Promessas à revelia desses elementos vitais só podem causar, primeiro, ilusão e, depois, frustração.

Uma visão moderna do processo de inovação requer um conjunto de políticas articuladas em alguns pontos prioritários que são essenciais para assegurar o fluxo de inovação no sistema económico e social e para impedir os seus bloqueamentos.

Dois indicadores são motivo de preocupação no domínio das qualificações dos portugueses, num tempo em que a competitividade das nações se mede pelo conjunto de competências detidas pelos seus cidadãos. As enormes taxas de abandono em todo o sistema de ensino constituem um desperdício de recursos públicos e de potencialidades individuais. E este abandono juvenil, em que cerca de metade da população juvenil não completa o ensino obrigatório, é ainda agravado pelo facto de termos das mais baixas percentagens da Europa de adultos que frequentam qualquer actividade de formação. Importa desenvolver uma política consolidada de ataque ao abandono escolar precoce e devolver uma nova oportunidade de qualificação às centenas de milhares de portugueses que um dia abandonaram a escola para não mais voltar. A contemporização com os atractivos imediatos de um mercado de trabalho não qualificado na economia doméstica ou subterrânea e a passividade perante o desperdício social não pode ser tolerada em nome da equidade social e do combate pela competitividade.

Se existe uma área onde o puro preconceito político e a atracção pela política dos interesses se aliaram para bloquear o surto de progresso visível do quinquénio 1996-2001, essa foi a da ciência e tecnologia. A diminuição dos financiamentos públicos às instituições de investigação e à formação avançada, o acumular de dívidas às grandes instituições científicas internacionais, a perpétua revisão cosmética dos mecanismos de apoio à inovação ou a conspiração contra o Ciência Viva são as marcas destes últimos dois anos.

É este trajecto que importa reverter, ampliando de forma sustentada o mercado de trabalho para os jovens cientistas, atacando os preconceitos corporativos que se opõem à escolha dos melhores em favor dos mais próximos, renovando os compromissos de médio e longo prazo com a rede de Laboratórios Associados, respondendo às novas necessidades de regulação informada do Estado, substituindo as apressadas modificações sobre a interface universidade-empresa pela construção de pontes estáveis e efectivas entre estes dois sectores. A inovação precisa do impulso decisivo do conhecimento científico, sem o preconceito provinciano de que o mercado nacional da inovação é o destino único e o aferidor universal da bondade das políticas e dos produtos científicos desenvolvidos em Portugal.

A inovação é um processo social transversal às sociedades e às administrações, conflitual e gerador de rupturas com forte impacte sobre a coesão social, é um processo que requer a convergência de políticas diversas. Os laços entre a política de inovação, a política económica e a política industrial são necessariamente muito estreitos e podemos perguntar-nos se as dificuldades da política de inovação em Portugal não residem fundamentalmente na desconexão, ou dissonância, entre estas políticas. Assegurar a sua convergência efectiva, em torno de objectivos de médio prazo, deve ser a primeira ambição de uma nova política nesta área.

A inovação, factor essencial da competitividade da economia portuguesa, não é compaginável com um regime de protecção de empresas através da manutenção de salários baixos e da prevalência da especulação em mercados protegidos. A inovação é também um processo selectivo de reestruturação industrial, com impactes fortes sobre a coesão social, que requerem uma rede de segurança ágil, embora desejavelmente temporária.

Os instrumentos de apoio à inovação que têm sido sucessivamente alterados nos últimos anos, na febre cosmética dos governos Barroso & Herdeiro, incorporam instrumentos, sobretudo financeiros, centrados em vários passos do processo de inovação. Também podem ser úteis os esforços de atracção de investimento directo estrangeiro ou de contrapartidas com alto conteúdo tecnológico, desde que não se confundam com as facilidades para a instalação de capital nómada, sempre pronto para a deslocalização ao menor pretexto, ou mesmo sem pretexto. Mas é preciso não ignorar as empresas e os empresários, que, sentindo a necessidade da mudança, têm dificuldades em visualizar e organizar essa mudança. Neste domínio, o apoio a parcerias estratégicas com instituições ou empresas estrangeiras de base tecnológica e o acesso a "conselheiros de inovação" podem trazer o impulso e a informação indispensáveis.

Ex-presidente do Instituto de Cooperação Cientifica e Tecnológica Internacional, apoiante de Manuel Alegre

A Floresta de Enganos Por PEDRO TEIXEIRA

Público
Quarta-feira, 22 de Setembro de 2004

de António Barreto

Em duas longas crónicas publicadas no PÚBLICO, António Barreto dá conta da sua amargura perante o estado da educação em Portugal e os equívocos da esquerda, os quais segundo ele são os principais responsáveis pelo estado a que se chegou. Apesar de ter sido em tempos umas das vozes mais lúcidas da vida intelectual portuguesa, Barreto decide enveredar num estilo populista e desinformado que merece alguma reflexão.

Contrariamente ao que Barreto afirma não foi a esquerda que descobriu e difundiu este encantamento moderno com a educação e o seu potencial económico. É sobretudo a partir de finais dos anos 50 que um conjunto de economistas, em grande medida associados à Universidade de Chicago (já então grande baluarte do pensamento liberal nos EUA), resolvem enfatizar o papel que a educação poderia ter no enriquecimento individual e colectivo. Neste movimento da chamada teoria do capital humano, destacam-se alguns dos economistas contemporâneos mais influentes: Milton Friedman, T. W. Schultz, Gary Becker e Jacob Mincer (os três primeiros galardoados com o Prémio Nobel da Economia). Segundo estes autores as despesas em educação e formação deveriam ser encaradas, em grande medida, como investimentos que as sociedades e os indivíduos fazem de modo a aumentar a sua produtividade futura e a sua riqueza.

Estas ideias tiveram um impacto profundo no pensamento económico e político contemporâneo. Em termos de crescimento económico, as economias capitalistas deveriam apostar na qualificação dos seus recursos. No que se refere ao desenvolvimento económico, defende-se que os governos dos países mais pobres deveriam apostar em promover os serviços de educação, em vez de intervir directamente na actividade económica. Quanto à mobilidade social, caberia ao Estado criar uma situação em que os indivíduos pudessem ser responsabilizados pelas suas decisões e premiados de acordo com as suas capacidades intelectuais e com o seu investimento no desenvolvimento das mesmas.

A esquerda reagiu com muita desconfiança a tudo isto. Muitos acharam que juntar economia e educação era negar a nobreza da educação, horrorizados perante esta analogia das pessoas como um tipo de capital. Além do mais, achavam que era o capitalismo a vestir a pele de cordeiro e a tentar dar uma imagem benevolente do que a esquerda considerava ser genericamente uma relação de exploração produtiva. Aliás, entre os economistas mais importantes que resistiram e contestaram aquelas ideias encontram-se nomes como Robert Solow e Kenneth Arrow, referências de longa data da esquerda intelectual americana. (Ainda há poucas semanas apareceram como subscritores do manifesto dos prémios Nobel em apoio de John Kerry. Credenciais insuspeitas, portanto.)

Quanto ao caso português, Barreto considera notável que, apesar da grande expansão do sistema de ensino, o país não só não tenha beneficiado grandemente desses esforços, como claramente esteja bastante pior do que estaria se não fossem desperdiçados esses recursos em tentar educar a plebe. Aliás, não foi só o país que caiu no logro. Desde logo os antigos países socialistas, cuja terrível situação económica só se consegue explicar pela sua obsessão com a educação. Estes, que até têm em geral uma boa prestação nas tais comparações internacionais que são usadas para fustigar a má qualidade do nosso sistema. Nem isso lhes pode valer! Já agora, porque é que esses testes são bons para criticar o nosso e provar que a educação é um logro económico, mas já não servem para o contrário quando os resultados são bons? E porque será que os países mais ricos continuam a ter uma preocupação sistemática com o desenvolvimento dos seus sistemas de ensino, investigação e inovação? Será que terão sido tomados pelos vermelhos desempregados com o desmembramento das antigas economias socialistas?

Convém esclarecer que estas coisas da economia da educação entraram em Portugal nos inícios dos anos 60, por via do chamado projecto regional do Mediterrâneo. Este foi o primeiro grande projecto internacional do género e surgiu dum pedido do governo português à OCDE, que o aproveitou para pôr em prática os seus apetites de planeamento educativo. Também à época houve um conjunto de estudos apoiados pela Fundação Gulbenkian e coordenados por um dos pioneiros da economia da educação, o britânico John Vaizey, nos quais participou uma jovem economista, de seu nome Manuela Ferreira Leite (sim, essa mesmo!). Como se pode ver, uma trilateral de perigosos vermelhos: os ministros do professor Salazar, a Fundação Gulbenkian e a Dra. Ferreira Leite...

E que dizer de uma época em que o sistema de ensino se expande e a desigualdade de rendimento conhece um incremento? Este argumento também não é novo. Há mais de trinta anos, Lester Thurow e os principais economistas radicais americanos (que no contexto americano quer dizer bem vermelhinho...), têm afirmado algo semelhante. (Não deixa de ser irónico ver Barreto utilizar argumentos análogos àqueles que se propôs desmascarar...) Haverá, no entanto, que ter em atenção que, numa fase de expansão da educação, é de esperar que a distribuição desta variável seja mais desigual, logo, se o rendimento está mais desigualmente distribuído, quer dizer que a correlação entre as duas variáveis está a funcionar no sentido previsto. Ao aumentar o nível de formação duma sociedade, criamos condições para que alguns cheguem mais longe e por isso não é surpreendente que a distribuição de rendimento se torne mais desigual nessa fase de expansão. Em alternativa, aplica-se a "técnica Barreto": sempre que algo corre mal a culpa é da educação; se, no entanto, algo corre bem, isso já se deve a uma multiplicidade de factores e muito pouco à educação.

E que dizer do mercado de trabalho e da tendência inexorável para o crescimento do desemprego de licenciados? Será que Barreto ignora que os diplomados apresentam persistentemente as taxas de desemprego mais baixas do seu nível etário e têm em média muito menos dificuldade em encontrar um novo emprego? Isto num contexto de crescimento avassalador do sistema e apesar das conhecidas debilidades tecnológicas de parte do nosso tecido produtivo. Aliás, este argumento da educação para o desemprego tem antecedentes conhecidos, no caso americano, e mais uma vez são os já nossos conhecidos intelectuais (neo)marxistas. Como diria o saudoso Diácono Remédios, não havia necessidade!...

Nada disto desculpa o mal que se tem feito na educação em Portugal, mas não adianta arranjar uns bodes expiatórios fáceis. Eu gostaria que o sistema fosse mais exigente face aos alunos, professores, pais e políticos, e que houvesse menos burocracia, desorganização e instabilidade legislativa e governativa. No entanto, não tenho uma visão idílica de um passado que não existiu. Não posso (nem quero!) regressar a um passado em que só os intelectualmente muito bons e os abastados, mesmo que intelectualmente medíocres, conseguiam prosseguir os seus estudos. Mais dinheiro não é condição suficiente para melhor educação (há 30 anos que se sabe isto em economia da educação), mas convém que não haja dúvidas que, em educação, o barato costuma sair caro. Há problemas complicados na educação em Portugal, mas Barreto parece demasiado preocupado em ajustar as contas com o seu passado e o dos seus "compagnons de route" para ter o discernimento necessário para discuti-los seriamente. Quanto a isso, infelizmente não lhe posso valer.

Professor da Faculdade de Economia do Porto e Centro de Investigação de Políticas do Ensino Superior

Concursos de Professores...

Público
Quarta-feira, 22 de Setembro de 2004

e o resto

Muito se tem dito sobre o pior início de ano lectivo da última década e a respectiva balbúrdia na colocação de professores. Vem agora o Governo, através da habitual manipulação de alguns órgãos de comunicação, pretender lançar para a fogueira populista a cabeça de uns quantos funcionários, quais perigosos sabotadores ou, no mínimo, incompetentes executantes das sábias orientações superiores. É vergonhoso!

Provavelmente, quem desconheça a realidade em causa pode até acreditar nas imorais aleivosias governativas, mas quem, minimamente, saiba do que se está a falar não pode deixar de manifestar a mais viva indignação por esta forma suja de fazer política.

Os concursos, com um figurino igual ao actual, correram mal no ano passado. O escândalo só não foi, então, maior porque os responsáveis do Ministério da Educação (ME) recorreram a processos "muito estranhos" para contentar os prejudicados. O ministro David Justino e o seu secretário de Estado Abílio Morgado alteraram, para este ano, alguns procedimentos, e o resultado foi piorarem ainda mais a situação, com os efeitos que se estão a ver e que eram, mais coisa menos coisa, absolutamente previsíveis (...).

O facto é que, nestes últimos dois anos, os decisores do ME (infelizmente com alguma compreensão dos sindicatos) quiseram centralizar num único concurso e num período muito curto tudo aquilo que era feito em diferentes momentos e ao longo de um tempo dilatado. Para que assim fosse, o concurso ter-se-ia de realizar o mais tarde possível, por forma a garantir que nele seria incluído o maior número de lugares. Para compreender o disparate desta pretensão, basta ter a dimensão do que é que significa juntar numa única operação o que antes era feito em sete ou oito e movimentando, de uma só vez, largas dezenas de milhares de professores com imensas situações profissionais e uma complexíssima variedade de factores a serem ponderados para ordenamento e colocação.

Pode até ter havido, também, alguma falha humana ou tecnológica, mas quando se planifica uma iniciativa desta envergadura é indispensável prever esse elemento.

Então como chegámos aqui? Era bom que se estudasse a matéria com seriedade e rigor antes de procurar "culpados". Mas, porque sei do que estou a falar, defendo ser evidente que o principal erro está na concepção deste modelo de concurso. Com maiores ou menores sustos, ele nunca funcionará. Se os ministros e secretários de Estado conhecessem a evolução dos mecanismos de mobilidade dos professores nos últimos 25 anos, alguns estudos que estão publicados (recomendo p. ex. um trabalho do professor João Formosinho) e a realidade concreta da problemática em causa, nunca teriam avançado com este passo centralista e burocratizador que, desde o início, estava condenado ao fracasso.

Acresce que houve também culpas evidentes em toda a orientação deste processo. Não importa "crucificar" pessoas, mas é irrefutável que o secretário de Estado da Administração Educativa conduziu este processo da pior maneira e o ministro da Educação deu-lhe total cobertura política.

Saiba, ao menos, Abílio Morgado perceber que a forma autista, persecutória e arrogante como dirigiu a Educação (verdadeiramente foi ele o "patrão" da 5 de Outubro nos últimos dois anos) não só conduziu ao colapso dos concursos como ao total "destrambelhamento" de todo o Ministério da Educação. Neste momento, os pais e os alunos só não sentem muito mais a gravidade da situação porque, apesar de tudo, os conselhos executivos e os professores vão assegurando, o melhor que podem, o funcionamento das escolas.

A incapacidade em supervisionar o processo de colocações é a mesma que fez com que o ME tenha agora uma ridícula e ineficaz lei orgânica, que, em dois anos, nem sequer houve capacidade para implementar, que a Inspecção-Geral se tenha transformado num mero corpo arbitrariamente repressivo, que todos os serviços do ministério estejam sem quaisquer dirigentes legalmente nomeados, que tenham sido impiedosamente remetidos para "os excedentes" centenas de quadros (até uma actual ministra faz parte do lote dos "excedentários"), que tenham "colapsado" todos os "dossiers" que constituíam bandeiras da política governativa e que o ME esteja, de facto, em total paralisia.

Queira o "supremo arquitecto do universo" que Abílio Morgado, num momento de humilde lucidez, perceba quanto errou e como lhe fica mal ter deixado de herança a insidiosa e aviltante suspeição de uma qualquer "sabotagem" sobre os concursos.

A verdade é que, em dois anos, conseguiram destruir muito, fazer nada e enganar imenso. As consequências vão os portugueses pagá-las, ainda por muito tempo,pois o estado em que deixaram a educação é, verdadeiramente, uma "calamidade nacional".

Mas a culpa primeira nem é de Abílio Morgado nem de David Justino, mas antes de quem põe à frente do Ministério da Educação pessoas que sobre o ensino só sabem umas banalidades de "senso comum" e da administração pública nada entendem. E, quanto a isso, Santana Lopes segue os mesmos passos de Durão Barroso, para mal de todos nós.

A. Lima

Lisboa

Desespero com concurso

de professores

É inadmissível o que se passa com os concursos de professores. Se não são capazes, desistam e peçam a ajuda de profissionais e empresas idóneas! Como professor, desespero com a espera para programar a minha vida familiar. Como pai, não consigo responder às dúvidas dos meus filhos que me perguntam quando vão ter professores. Como cidadão português, envergonho-me da triste figura que transmitimos para toda a sociedade e o estrangeiro.

Considero urgente e imperiosas as respostas. Quem e o que é que falhou? Como é possível que um concurso de seriação profissional devesse estar concluído em Março e só fosse divulgado em Setembro ainda cheio de erros? Quais as verdadeiras razões dos adiamentos sucessivos das listas de colocação? Como é possível mandar iniciar um ano lectivo sem haver preparação da comunidade educativa e sem metade dos docentes? Que motivação para professores, alunos e encarregados de educação se não houver respostas... É o mínimo que se pede aos decisores da 5 de Outubro!

José Alegre Mesquita

Carrazeda de Ansiães