Tuesday, August 31, 2004

A Noite Que Começa no Dia

Por EDUARDO PRADO COELHO
Terça-feira, 31 de Agosto de 2004

Já em Paris eu tinha feito uma experiência semelhante: ir ao Ikea, uma nova concepção de venda de móveis e objectos para a casa. Tinha ficado com a ideia de que o que se poupava em termos de dinheiro tinha um custo em desgaste psicológico. Obtive em Portugal a confirmação. Por um lado, é óbvio que há um certo número de coisas em que se poupa dinheiro: umas valem a pena, outras menos.

Em muitas, para além do esforço em arranjar transporte para móveis de dimensões consideráveis, somos confrontados com a terrível experiência de termos de os montar segundo esquemáticas instruções cuja leitura nos induz numa catadupa de erros. Mas há uma lógica dos erros, porque, quando compramos um móvel mais ou menos igual seis meses depois, voltamos a cometer os mesmos disparates e a começar tudo do princípio, martelinho em punho, chave de fendas e parafusos que rodopiam pelo chão. Trata-se de uma operação delicada, que exige uma paciência oriental, mas que é compensada pela alegria de vermos uma secretária tomar forma e de contemplarmos com orgulho a estante que conseguimos erguer.

É claro que a experiência de economizar em cada objecto que adquirimos tem uma contrapartida: compramos mais objectos do que aquilo que pensávamos no início. "Olha aquilo que barato!", é uma frase que se ouve repetidas vezes entre marido e mulher (habitualmente por ordem inversa). Mas a verdade é que a estratégia de "marketing" de Ikea foi desde o início extremamente bem concebida. E pôr pessoas a dormir à porta na data de inauguração foi uma ideia de génio. Estas coisas funcionam e têm um pitoresco irresistível.

Um dos elementos desta estratégia consiste em criar um espaço de desorientação assegurada. A gente procura por onde entrar e é-nos dado um papelinho que deverá ser preenchido à medida que escolhemos os objectos de formato avantajado. A isto correspondem números de corredores e filas onde esses objectos se encontram - quando se encontram. Porque a minha escolha revelou-se infrutífera, uma vez que o objecto estava esgotado (suponho, porque não havia ninguém para me esclarecer). Entretanto, a gente vai rodando, passa três vezes pelo mesmo sítio, não consegue reencontrar o sítio onde já passou e onde viu algo que lhe interessava, e deixou de saber onde se situam os pontos cardeais. Sente um cansaço progressivo, aproveita a zona dos sofás para descansar um pouco, mas aparentemente não consegue parar.

O curioso desta situação tem também a ver com a noção do tempo. No elevador, uma filha dizia para a mãe que já eram nove horas. E a mãe dizia que pensava que não passava das seis. A noção das horas vai-se desvanecendo e a noite começa no interior do dia. Todos os contactos com a vida exterior foram cortados e entrámos no longo corredor do Ikea, que pouco a pouco se tornou a casa de todas as casas.

Professor universitário

Monday, August 30, 2004

Obscurantismo

João César das Neves
(DN, publicado segunda feira, dia 18 de novembro de 2003)

Quase 30 anos depois do 25 de Abril, é estranho ver em Portugal hoje alguém a clamar por uma liberdade fundamental.

A nossa sociedade está longe de ser perfeita, mas orgulhamo-nos justamente de termos garantidos todos os direitos cívicos.

Todos, menos um: não há liberdade educativa. O encontro do Fórum para a Liberdade de Educação, realizado este fim-de-semana em Lisboa, chamou dramaticamente a atenção para esta grave falha democrática do nosso sistema.

Mas o problema não é apenas de direitos.

A falta desta liberdade, como antes das outras, também se está a traduzir em sérios prejuízos para o desenvolvimento do País.

O desastre da educação é, sem dúvida, a mais preocupante das nossas dificuldades. Os testes internacionais mostram bem que aí Portugal não está na cauda da Europa. Está mesmo no meio de África.

Gerações de estudantes perdem o seu tempo nas escolas para saírem sem os conhecimentos mínimos. A maioria chega aos empregos e universidades com fortes vícios de raciocínio e lacunas graves de conhecimento e metodologia. Não sabem pensar, calcular, escrever; não conseguem trabalhar, analisar situações, resolver problemas. São antes especialistas em matérias abstrusas e minúcias pedagógicas. Os nossos estudantes são vítimas do obscurantismo.

A causa desta situação é simples e evidente: Portugal adoptou um sistema de ensino estalinista. Naturalmente que os resultados são soviéticos.

Vivemos num modelo de programa único, de pedagogia única, de exame único, de ensino único. Só não temos livro único porque é preciso mudar todos os anos para alimentar autores e editoras. Os professores adoram o conforto do funcionalismo. O ministério delicia-se com o poder do gigantismo. Os custos explodem. Os resultados estão à vista. Os mais desastrosos sentem-se nas línguas, sobretudo o Português, e na Matemática. Mas os mais patentes e prejudiciais registam-se no campo da moral.

A escola tem um papel essencial na formação humana dos seus estudantes. Isso é verdade em todos os graus de ensino, mas vital no básico. Neste tema, o modelo estalinista do Ministério da Educação embate contra a evidência: só é possível fazer educação moral dentro de um quadro cultural específico. Não existe uma ética geral e abstracta. Fora dos princípios genéricos (quase) consensuais, toda a aplicação da moral se faz dentro de uma atitude vivencial particular. Há uma ética cristã e uma ética muçulmana, uma ética marxista e uma ética liberal, uma ética positivista e uma ética burguesa.

Como nas viagens, o caminho é determinado pelo destino. Mas o Estado quer ser neutro, laico, imparcial.

Que fazer?

A solução passa por um método simples: a fraude.

O Estado assume explicitamente que a formação ética tem de ser específica e pede a colaboração da sociedade nessa leccionação.

Mas tem usado dois tipos de embuste na resposta a este problema. O primeiro, utilizado por exemplo na célebre disciplina de Educação Sexual, é o de impor um quadro cultural particular sob a aparência de neutralidade. O ministério adjudicou discretamente a leccionação dessas matérias à Associação para o Planeamento da Família. Esta, afirmando ensinar resultados científicos e informações rigorosas, está de facto a canalisar modelos de comportamento e opiniões muito particulares.

O programa previsto finge tratar de temas sanitários e regras higiénicas, mas é a condenação da castidade, da fidelidade, da temperança, da elevação do amor e a promoção declarada da promiscuidade, do adultério, da homossexualidade, do aborto.

A segunda fraude, ainda mais atrevida e infame, foi utilizada na questão da Educação Moral e Religiosa.

Aí, a instituição contactada às claras foi a Igreja Católica. Naturalmente, o ministério não pode impor a obrigatoriedade da versão católica.

Isso é liberdade de educação. Mas depois não consegue arranjar alternativas para os outros alunos do básico (de facto uma pequena minoria). Isto é falta de liberdade de educação.

Perante esta sua fragorosa incompetência, o ministério envereda pelo paroxismo do ridículo: retira a Educação Moral das horas normais de ensino. Com um desplante cândido, os nossos pedagogos assumem que a moral passa a ser optativa, que a ética não pertence ao programa lectivo, que os valores são actividade circum-escolar. Dizem isto sem pestanejar! Anunciam uma tal aleivosia sem corar de vergonha! Promulgam uma coisa destas sem serem castigados!

Estes são apenas dois exemplos entre mil. Por isso é tão importante que se compreenda que a luta por esta liberdade cultural é tão candente e decisiva como os antigos combates pela libertação política. Tal como então, uma clique de iluminados, em nome de um modelo arcaico, está hoje apostada no obscurantismo e no atraso do País.

É fundamental que saiam frutos de iniciativas como o Fórum para a Liberdade de Educação. A nossa democracia e o nosso desenvolvimento dependem disso.

naohaalmocosgratis@vizzavi.pt

Com um desplante cândido, os nossos pedagogos assumem que a moral passa a ser optativa, que a ética não pertence ao programa lectivo, que os valores são actividade circum-escolar. Dizem isto sem pestanejar!

O horror da educação

João César das Neves
DN, segunda feira, dia 20 de maio de 2004

Deve-se sempre chamar a atenção, sobretudo com novo governo, para o nosso horror educativo. Portugal tem muitos obstáculos ao desenvolvimento.

São tantos que por vezes se tem a sensação de que os progressos conseguidos são quase miraculosos.

Com a incompetência da regulamentação, a paralisia da burocracia, o peso dos impostos, o bloqueio do corporativismo, bem podemos desesperar. Depois, ninguém sabe bem como, o País até avança. Com dificuldade e distorções, mas avança. Só que isso nada tira à terrível responsabilidade dos que, de forma quase criminosa, destroem o desenvolvimento nacional.

Entre os obstáculos, não há nenhum mais destruidor e pernicioso que o sector educativo.

A Saúde derrapou nos custos, a Justiça entupiu, as Finanças enlouqueceram, mas a Educação, que tem mais influência ética, cultural, técnica e produtiva que todos, é o inverso do que devia ser.

Quem, sabendo das nossas necessidades socioeconómicas, olhe para o aparelho escolar fica com a sensação de que foi feito por um espírito malvado.

Tudo parece cientificamente estudado para funcionar mal, perversamente planeado para destruir o potencial da juventude e desviá-la para actividades inúteis ao desenvolvimento.

Pululam as denúncias e as reformas, mas as monstruosas aberrações continuam a acumular-se.

O problema começa logo na profusão de escolas superiores de educação. Dezenas de instituições lançam, todos os anos, no mercado uma multidão de candidatos a professores. O País tem uma necessidade desesperada de engenheiros, informáticos, técnicos de vários ofícios, mas em vez disso produz milhares de docentes.

É que ser professor é muito agradável. Eu até sei! Claro que aturar uma turma pode ser horrível, mas há compensações. O horário é leve e flexível e existem muitas férias, que ainda se aumentam com "paragens".

Além disso, os professores saem, para acções de formação, reuniões lectivas, etc.; e até podem, como os funcionários públicos, faltar quando querem, trocando por um dia de férias. Sem perder nada, de facto, porque as férias escolares são fixas.

Como a evolução demográfica há décadas reduz fortemente o número de jovens em idade escolar, existem já nos quadros públicos milhares de professores sem ensinar, simplesmente afastados de actividades úteis, privados de dar o seu contributo para o desenvolvimento. Este excesso constitui um enorme desperdício de pessoas válidas e inteligentes, um esbanjamento criminoso, num país com as nossas necessidades. O ministério, porém, apenas pensa em assegurar postos de trabalho, mesmo que seja para não fazer nada de aproveitável. A maneira mais fácil é multiplicar tarefas administrativas, simular actividades circum-escolares, multiplicar disciplinas especializadas. É isso que está a ser feito, há anos, mesmo que não se ensine nada de interesse.

Os programas dos 11.º e 12.º anos são disso prova evidente. Estão recheados de cadeiras que ensinam matérias delirantemente avançadas para esse grau de ensino. Quando chegarem à universidade, tudo terá de ser reaprendido e, se o aluno não for para lá, vai esquecer conhecimentos que, de facto, são supinamente desnecessários. Entretanto, os estudantes estão horrivelmente carenciados de capacidades elementares de português, matemática e outros domínios básicos. Mas andam a aprender psicossociologia da animação social, sistemas digitais e materiais e técnicas de expressão plástica, sem saber escrever ou calcular.

Uma das áreas com maior desenvolvimento nos últimos anos é a de Artes. Sendo uma das opções básicas e naturalmente atraente nessas idades, goza de grande incentivo por parte dos professores. Fugindo de matérias mais difíceis e confiada nas garantias dadas, uma parte muito significativa dos alunos portugueses escolhe esta orientação. Mas, para fazer o quê? Qual é o curso e, mais tarde, a profissão que vão encontrar os múltiplos estudantes de Artes? A principal saída da maioria desses jovens será a de serem professores liceais de Artes, criando mais iguais a si.

Noutras áreas, o problema é o inverso. Na medicina, por exemplo, a crise educativa embrulhou-se com a crise da Saúde. Controlado pela classe médica, a quem interessa a reduzida concorrência, há muito tempo que o sistema só permite o acesso nas faculdades de Medicina a alunos com médias astronómicas no secundário. A relação entre o grupo dos adolescentes "marrões" e o dos futuros adultos com vocação médica é evidentemente muito pequena, mas o sistema força essa conexão.

Assim estamos a construir um país onde uma enorme quantidade de excelentes médicos nunca o chegam a ser e entregamos a nossa saúde aos virtuosos dos testes liceais.

Há décadas que os responsáveis da Educação são a principal força destruidora do progresso português. Depois, ninguém sabe bem como, ainda há quem consiga, em Portugal, uma formação útil à sociedade. Mas também isso é quase miraculoso.

naohaalmocoagratis@vizzavi.pt

Sunday, August 29, 2004

Mutações (Carta ao Director)

Público, Terça-feira, 24 de Agosto de 2004

Tem-se falado dos resultados patéticos obtidos pela maioria dos estudantes portugueses no ensino secundário. Uma professora universitária traçou, nas páginas deste jornal, um retrato terrível do aluno-tipo da faculdade onde lecciona, uma espécie de dejecto intelectual, sem qualquer interesse pelas actividades académicas. Como sou professor do ensino secundário sei bem do que fala essa senhora. É notória a progressiva degradação da qualidade dos nossos estudantes a cada ano que passa. Escrevem mal, falam pior, compreendem o mundo que nos rodeia com notória dificuldade mas, nos assuntos que os interessam, seja futebol, marcas e modas, consumo, telemóveis, etc., são capazes de alcançar "performances" bem interessantes. Há uma motivação desviada, por assim dizer, que leva a um tremendo desperdício de potencialidades.

É um facto que as nossas escolas têm produzido gerações de ignorantes em larga escala. Afinal de contas os cidadãos são um espelho perfeito da sociedade em que vivem. Se os alunos são tão maus, os pais e encarregados de educação não deverão ser muito melhores. Se as escolas são tão fracas, os organismos responsáveis por elas devem ser muito mais frouxos. Em última análise, se os resultados académicos da esmagadora maioria dos nossos estudantes são ridículos isso só mostra a verdadeira face de Portugal.

Na verdade, a maioria da população não se preocupa verdadeiramente com este estado de coisas. Os jornais diários de maior tiragem são os desportivos. Os programas de televisão preferidos são os mais cretinos. Os teatros são ocupados por personagens vindas das telenovelas e produzem-se espectáculos "leves" e "divertidos". Quantos serão capazes de referir os nomes de três artistas plásticos portugueses contemporâneos? Os locais de passeio preferidos por toda a família para um fim-de-semana perfeito são os "shopping centers". E por aí fora. Será isto preocupante? Só para quem quiser chatear-se.

O mundo está a mudar, os cidadãos estão a mudar, as coisas serão necessariamente diferentes, mas há questões básicas essenciais que importa acautelar. Cultura e educação são campos demasiado importantes para serem deixados nas mãos de merceeiros, mas é isso que temos feito, e continuando a fazê-lo, nunca conseguiremos pagar a factura.

Resumindo, os nossos estudantes não têm obtido resultados nada brilhantes, antes pelo contrário, mas o problema não é só deles nem das escolas que frequentam, é bem mais profundo. A maioria dos portugueses tem uma fraca formação académica, mas o pior é que não encara a possibilidade de a melhorar nem sequer percebe por que há-de preocupar-se com isso. Pior que não conseguir, é não querer aprender.

Se queremos que alguma coisa mude dentro de 30 anos é preciso começar a trabalhar já hoje com os nossos filhos. Vai sendo tempo de tirar as bandeirinhas das janelas e levar este país a sério.

Rui Silvares Carvalho

Cova da Piedade

Mais Dinheiro para a Educação? (Carta de Eduarda Dionísio)

Público, Quinta-feira, 26 de Agosto de 2004

Li há uns dias um artigo da Fátima Bonifácio - que julgo que ainda era aluna, quando eu já era professora - que faz um diagnóstico do "estado dos alunos" que poderia a traços largos subscrever. Como ela, penso que a questão do dinheiro não é a principal, se não falarmos em que é utilizado e como... ("Mais dinheiro para a Educação?", 15/08/04).

Mas sobre a evolução desse "estado" - que não é assim tão recente... - as causas apontadas e a sugestão dos "remédios" é que me parecem ser mais perigosas do que à primeira vista parecem e são aqueles que não levarão nunca a qualquer melhoria, nem transformação.

Quatro notas:

1. O habitual método de comparar o que já foi (ou se imagina que já foi) e o que é (ou se julga que é - sempre a partir da própria experiência noutra situação) não costuma levar muito longe. Mesmo quando se enunciam as diferenças óbvias entre os tempos, não se leva em conta nem as diferenças entre as populações escolares de então e de agora (e eu-dinossauro ainda admito que existem classes sociais...), nem o diferente papel que o sistema político atribui às escolas na sociedade actual (e eu-dinossauro ainda acredito que há ideologia e que a escola, agora de outro modo, é um "veículo de manutenção e reprodução social da ideologia dominante"...)

2. O "jogo" e o hipotético "prazer" na escola como causa da ignorância e do não-pensar , em oposição ao "esforço" e ao "sacrifício" necessário ao "saber" (qual saber? que saber? para fazer o quê com esse saber?) e ao "pensamento" tem barbas. O que talvez não tenha barbas é o "sacrifício do esforço do jogo obrigatório". Longa história, mais "moderna"... Sobre estas aparentes e falsas oposições remeto para um texto de Mário Dionísio (de há meio século...) chamado "Enfado ou prazer: problema central do ensino" (que o Rui Canário, prof. de Ciências da Educação, retomou há bem pouco tempo), onde evidentemente o autor não defende o "enfado" e onde o "esforço" não se opõe obviamente a "prazer"...

3. Tem-me sido difícil imaginar, ao longo de décadas de professora do ensino secundário oficial (ainda por cima no "centro" da capital...), a maioria dos meus alunos como "centro" da vida dos pais que terão deixado de ter vida própria (em tantos casos, alguma vez a tiveram ou virão a tê-la?) para "contentar" os filhos, etc..., nem qualquer "respeito" pela sua "personalidade", nem "antigamente" nem agora. A acontecer, seria um fenómeno digno de nota na nossa sociedade... As questões são provavelmente outras e bem mais graves: os novos modos de "ascensão social", de "sucesso" e de "selecção", o império do mercado, etc., etc., etc...

4. A lembrar ainda: as alterações relativamente recentes nas escolas e no sistema escolar que têm feito diminuir as "excepções" (sempre excepções) daqueles poucos (professores e alunos) que, das mais diferentes maneiras, foram lutando contra ventos e marés, em épocas muito diversas, dentro das próprias escolas. Se se observa que os alunos estão nas escolas "para passar" e que estudam "para a nota", também se deve observar que poucos professores há que não dêem aulas para "terem bons resultados"... Ou seja: para os alunos "passarem" e terem a décima necessária para entrarem na universidade... e eles serem considerados por isso "bons professores". O trabalho burocrático (em nome da "pedagogia") dos professores aumentou, o medo das leis e dos "inspectores" também (há quem os "avalie"..., a população escolar diminui, etc...), a "desobediência civil" (que sem este nome foi fruto de coisas muito interessantes noutras altura) é-lhes inimaginável, e os "CV" (reais ou fabricados, listas de "acções" frequentadas, etc. e tal) passaram a existir para isto ou para aquilo...

Julgo-me no direito de escrever estas linhas (inúteis e porventura enfadonhas), uma vez que:

1. Dou aulas de Português desde 1969. Sem destacamentos nem equiparações. Únicas interrupções no trabalho lectivo: um ano sabático (suponho que as centenas de páginas de um trabalho de comparação dos programas de Português desde a I República até aos anos 90 em todos os graus de ensino e um pouco com os programas actuais de língua materna em França e em Inglaterra deve ter ido para o lixo...); de há três anos para cá, em resultado de uma doença (mas continuo "ao serviço"). Ou seja: tenho quatro anos de experiência de escolas "marcelistas", de uns anitos de PREC e de duas décadas de "actualidade", que começou nos anos 80.

2. Fui co-autora de muitas antologias de textos de Português (para vários graus) que introduziram nas aulas autores que até então não eram "escolares" (e alguns ficaram). Fui co-autora de programas de Francês para o ensino complementar (antes do 25 de Abril e tenho a alegria de ver que o "Silence de la Mer" do Vercors ainda se passeia pelos programas...). Fui co-autora dos primeiros programas de "Iniciação ao Jornalismo" (disciplina que já foi extinta) e de livros de textos (antes de haver "manuais"). Fui "assistente pedagógica" (orientadora de estágios...) e desisti quase logo a seguir ao 25 de Abril, porque achei que havia coisas mais interessantes para fazer.

3. Deixei de dar Francês quando o Inglês passou a ser "a" língua e os queijos, os perfumes, os vinhos e os cantores da moda ficaram no centro da matéria. Deixei de dar "Iniciação ao Jornalismo", quando a disciplina mudou de rumo e passou a ser ministrada por jornalistas (que se orientavam por "manuais"). Passei há uns anos para o ensino nocturno (e fui parar depois ao recorrente por unidades "capitalizáveis"!), quando alunos "do dia" me começaram a sugerir que "ditasse apontamentos"... e outros que não sabiam ainda escrever "normalmente" (quase no fim do curso secundário) tinham 19 valores em Jornalismo... Deixei o ensino nocturno, porque foi extinto - por desnecessário - na minha escola. Recusei-me sempre a ensinar 12º ano, porque seria "com enfado" que daria aquele programa, porque nunca "prepararia bem os alunos para exame" e porque com outros professores eles teriam mais hipóteses de entrarem na universidade (o que no meu tempo se fazia com um simples 10 e com "classe social" adequada, claro...)

4. Daqui a dias terei os 36 anos de serviço na "carreira", mas não me poderei reformar, porque não tenho ainda 60 anos... Espero que não passe entretanto para 65 anos a idade mínima da reforma como medida de saneamento da economia nacional... Talvez volte ainda a dar aulas, recomeçando a "estudar" programas, que as doenças que impedem de dar aulas só são válidas por dois anos...

Eduarda Dionísio

professora do ensino secundário

Lisboa

Mais Dinheiro para a Educação? (Carta ao Director)

Mais Dinheiro para a Educação?
Público, Sexta-feira, 27 de Agosto de 2004

O excelente artigo de Fátima Bonifácio, publicado no PÚBLICO do dia 15 de Agosto passado, e os comentários que gerou são um sinal de esperança de que a grave "doença" de que padece o nosso sistema de ensino comece finalmente a ser encarada sem preconceitos e com realismo. É que curar uma doença exige, em primeiro lugar, um diagnóstico correcto dos sintomas; e só a partir de um diagnóstico correcto é possível determinar a terapêutica que pode levar à cura.

Mostra o artigo de Fátima Bonifácio que os sintomas são bem conhecidos de todos. O problema é que o diagnóstico é frequentemente errado e a terapêutica acaba por nada resolver ou até piorar a doença. Fátima Bonifácio tem razão quando diz que o fundamental do problema não está na falta de recursos económicos na educação. O fundamental - como apontam diversos comentários feitos ao artigo - está na falta de empenho dos alunos, na desresponsabilização dos pais e no desânimo dos professores.

É evidente que o comportamento de qualquer pessoa depende essencialmente das suas motivações e incentivos ou falta deles, ou seja, em sentido figurativo, da existência do "pau e da cenoura". Por isso, a pergunta relevante que nos permite determinar a terapêutica correcta é a seguinte: o que é que leva os alunos a não terem empenho e motivação para estudar, os pais a desresponsabilizarem-se pela educação dos filhos e os professores a sentirem-se frustrados e progressivamente desinteressados?

Note-se que há muitos incentivos (ou falta deles) exógenos às escolas que contribuem para a sua fraca qualidade, mas o que nos interessa referir neste momento são os que se relacionam directamente com o sistema educativo propriamente dito. Feito o diagnóstico, a terapêutica torna-se, então, evidente, se não estivermos sujeitos a preconceitos ou indisponíveis para aceitarmos a lógica da realidade. A saber:

- Para os alunos, com especial evidência no 3º ciclo e no secundário, há uma enorme inadequação entre o ensino ministrado e as suas necessidades e desejos. O caso mais grave do que é uma política altamente prejudicial para o nosso futuro pessoal e colectivo é o dos apoios financeiros ao alargamento dos cursos nas escolas secundárias (onde o abandono escolar é assustador), ao mesmo tempo que se amordaçam as escolas profissionais (onde o abandono é diminuto) e não lhes ser dado um estatuto de "serviço público de educação" exactamente igual às escolas secundárias, com os apoios correspondentes.

- Para os pais, o Estado incentiva a desresponsabilização ao dizer-lhes "para entregarem os filhos àquela escola, gostem ou não dela, pois não poderão escolher outra". É urgente "obrigar" os pais e os alunos a escolherem a escola ou até a optarem por uma nova escola de raiz quando a oferta existente não servir, sem prejuízo da necessária prioridade aos alunos da vizinhança e aos irmãos.

- Para os professores, as ausências de uma autonomia digna desse nome (pedagógica, curricular e de gestão), de uma avaliação das escolas focalizada nos "outputs" e não nos "inputs", e de liberdade de os professores poderem apresentar ofertas educativas alternativas, são verdadeiros atestados de menoridade passados pelo Estado.

Por outras palavras e em resumo: a terapêutica correcta é introduzir a concorrência (real e potencial) entre as escolas, obviamente debaixo da função reguladora do Estado. É que, quando estão em jogo recursos económicos, não há liberdade sem concorrência, nem concorrência sem liberdade, como tão bem explicava Mário Pinto no seu artigo "Mercado, Sim; Mercado, Não", publicado no PÚBLICO desse mesmo dia 16 de Agosto último. Tem sido este o combate civilizacional do Fórum para a Liberdade de Educação, por vezes ainda mal percebido, convidando-o a visitar www.liberdade-educacao.org.

Fernando Adão da Fonseca

Presidente do Fórum para a Liberdade de Educação

Lisboa

Antigamente, a Escola... (II)

Por JOÃO BÉNARD DA COSTA
Público, Sexta-feira, 27 de Agosto de 2004

A minha última crónica acabou algo abruptamente. A verdade é que não expliquei as razões que me levaram ao reitor do Camões. Prometi, logo a abrir, que o faria "mais adiante". Mas ia tão lançado que, quando cheguei ao tal "adiante", já não tinha tempo e, sobretudo, já não tinha espaço.

É o mal (ou o bem) das "conversas fiadas". Já experimentaram, no fim de uma noite delas, recapitular o percurso, contando os atalhos, os desvios e as encruzilhadas? Se fosse só misturar alhos com bugalhos, ainda nos podíamos agarrar às rimas, mesmo que nos tivéssemos agarrado onde não devíamos. Mas as livres associações são muito mais subtis, como sabemos desde os tempos do dr. Freud, do jogo dos cinco cantinhos e dos "cadáveres esquisitos". Se há quem seja perito em levar a água ao seu moinho, a maior parte já perdeu o moinho, quando a água lá chegou. E só não continuo para não me acontecer segunda vez a mesma coisa.

À primeira qualquer cai, à segunda cai quem quer.

2. A verdade é que a nascente que me levou ao reitor, ao Camões e aos meus 16 anos foi um excelente artigo de M. Fátima Bonifácio, chamado "Mais dinheiro para a educação?" (PÚBLICO, 15 de Agosto de 2004). A autora é das que não se deixam levar pelas ondas das paixões dos engenheiros Guterres e Sócrates. Como ela bem disse: "Reformas e dinheiro, de nada serviram." Tem carradas de razão.

Mas houve uma confissão que me deixou pensativo. É quando ela, recordando os 25 anos que leva de professora de História numa universidade de Lisboa, afirma: "Convenci-me ultimamente de que o panorama não melhoraria significativamente nem que os programas e os professores fossem todos excelentes."

Fiquei a matutar na convicção recente de M. Fátima Bonifácio. Terá ela razão ao dizer que professores "todos excelentes" e bons programas não fariam bulir nem uma folha no "panorama"?

Comecei a pensar no meu caso, quer como aluno, quer como professor. E assim me lembrei de um professor (reitor até, no caso) que mudou, plausivelmente, o curso da minha vida.

Fátima Bonifácio dir-me-á (ou dir-me-ia) que faço batota. A história que eu contei passou-se há mais de cinquenta anos e na escola do antigamente. É incomparável. Ela própria sublinha que "em tempos tive alunos que são hoje meus colegas e académicos brilhantes. Essa raça desapareceu". Tanto eu como ela - ela muito mais nova - faríamos parte de uma raça em vias de extinção. Provavelmente é mais lúcida do que eu e, além disso, é professora, coisa que eu deixei de ser há muitos anos. Mas, mesmo descontando a história do meu reitor (e dos meus tempos), continuei cogitativo.

3. Fátima Bonifácio não traça qualquer panorama idílico da escola de outras eras e tenho boas razões para pensar que não é essa a visão dela.

Mas, quando tanto se fala em professores de vinho e rosas, eu comecei a fazer as minhas contas e, ao longo dos meus oito anos de liceu (o que então se chamava ensino secundário), não contei mais do que seis professores a cuja memória me abrigue. Nomes? Venham eles: Maria Manuel Barroso, que foi minha professora de Português do 1º ao 3º anos e me ajudou a saber ler e escrever, além de, involuntariamente, me ter ajudado a saber que os bebés não vinham de Paris (não fui nada precoce nessa matéria); Oliveira Simões, que foi meu professor de Ciências Naturais nos 3º e 4º anos e que, além do quartzo, feldspato e diamante, me ensinou a não descer as escadas com as mãos nos bolsos; Carlos Miguel, que foi meu professor de História no 4º ano e me levou da Batalha de Hastings à Invencível Armada, com crescente fervor; Alberto Beirão, que foi meu professor de Matemática no primeiro 5º ano e, apesar da minha confrangedora ignorância na matéria, me fez pensar em mais do que na morte da bezerra nas aulas dele; Amália Borges, que no mesmo 5º ano me revelou que eu tinha sangue francês nas veias, aproveitando-o para me pôr a falar e a ler a única língua estrangeira em que me exprimo à vontade; Gaspar Machado que, nos 6º e 7º anos, em Literatura Portuguesa, me revelou Fernão Lopes e Bernardim, e me levou de "O céu, a terra, o vento sossegado" ao tempo em que "caem co'a calma as aves". Estes são os senhores e as senhoras em que os olhos ponho, quando "me desponho /e me quero afirmar se foi assi". O resto, mais ou menos ignorante, foi de fugir ou serviu para amenas cavaqueiras que, nos melhores casos, disfarçavam a pouca pachorra que tinham para preparar qualquer aula.

Na universidade, estive três meses em Direito. Confirmo a merecida reputação de Marcello Caetano, mas dos outros nada recordo. Arrepiei caminho e passei para Letras (Ciências Histórico-Filosóficas, assim se chamavam então). Delfim Santos, Vieira de Almeida, Mário Chicó, Virgínia Rau, são nomes a escrever com letra grande e "happy few" devem imenso a Ribeiro Soares, quando ele e esses "few" partilhavam gostos singulares. Mas dos outros (estava-me a esquecer e não devia de Ferreira de Almeida), sobretudo no que tocava à Filosofia, quem não saiba é melhor nunca ter experimentado. Era nossa convicção (nossa, dos alunos) que deviam a cátedra ao estado disto, pois que a qualquer sabedoria ou inteligência não a deviam certamente. O saudosismo actual é muita bondade nossa, ou muito má memória. Embora seja verdade que, na mesma Faculdade e nos mesmos anos, coexistiram com Nemésio e Lindley Cintra, com Orlando Ribeiro e com o Padre Manuel Antunes, que, infelizmente, não foram meus professores.

O caso do prof. Francisco Vieira de Almeida é bem paradigmático. Regia a cadeira de Lógica. Para ele, esta ou era lógica matemática ou era uma batata (ou uma batota). Perante alunos que, em 99 por cento dos casos, tinham ido para Letras por horror à matemática, de que ignoravam os mais rudimentares elementos (nessas aulas, a situação não era muito diferente da descrita por Maria de Fátima Bonifácio), que fazia ele? Não perorava sobre Lógica, mas conversava brilhantemente sobre os mais diversos assuntos. Quem se interessasse em segui-lo, não ficava a saber de matemática, mas descobria como era "ilógico" o mundo em que se movia e as coisas que se aprendiam. A gramática era, logicamente, um dos seus terrenos de eleição. Jamais esquecerei a história do rapazinho de 10 anos, convidado a dividir orações num texto que começava assim: "Rui e o irmão entraram para o velho calhambeque do pai." O miúdo obedeceu: "Raul e o irmão entraram para o velho calhambé", primeira oração. "O quê?", berrou a atónita professora. "Nunca se passa por cima dum 'que'", papagueou o miúdo, ufano. "Ah, meus senhores", exclamava deliciado Vieira de Almeida, "se eu fosse examinador, o rapaz tinha logo 20." Vieira de Almeida, ele, pelo menos quando lhe fui aluno, não dava mais do que 11 nem menos do que 10, fora casos excepcionalíssimos. Chumbar não valia para nada, 11 lá ajudava a perpetuar calhambeques.

4. Da minha experiência como professor, que durou cinco anos, entre 1959 e 1964 (experiências posteriores, como professor universitário arregimentado, não me servem, porque foram pescatos de ocasião em que eu me meti, para mal dos meus pecados, a 10 por cento), não me ficou ideia muito diferente sobre o nível geral dos então meus colegas. É certo que os havia excepcionais (do Camões, recordo eu Mário Dionísio, Vergílio Ferreira, Marina Pestana), mas os alciões não fazem verões, nem primaveras. Frio, frio, era o que havia à minha volta.

Só que estes raros exemplos me convenceram (como outros que doutra maneira me ensinaram) que, se todos os professores fossem como eles, a paixão dos engenheiros teria razões de ser. Posso ser muito parcial mas acredito que, se a formação de professores (tema dominante do pensamento de homens como, por exemplo, Delfim Santos) tivesse sido levada a sério e feita a sério, não se tinha chegado onde se chegou. Poesia? Preconceito? É bem possível e não vim aqui polemizar, caso em que esta crónica seria bem fruste. É que mesmo nas tais esporádicas "experiências" recentes (anos 90) eu nunca vi, diante de mim, as tais "máscaras de apatia". Ignorância, sim, imensa, acompanhada, em gerações mais recentes, pela arrogante ignorância dessa própria ignorância, o que é a mais explosiva mistura que imaginar se possa. Mas a apatia pode ser vencida e, daí ao resto, há um passo possível.

George Steiner contou, algures, o que lhe aconteceu numa universidade americana, onde deu um curso de Literatura Comparada no férvido ano de 68. Os colegas explicaram-lhe o que se estava a passar e tentaram dissuadi-lo. Primeira aula e um barulho dos diabos, com os mimos da moda. Steiner conseguiu o silêncio suficiente para que eles o ouvissem dizer isto: "Eu estou aqui para vos ensinar algo de que vocês não sabem nada e de que eu sei tudo. Proponho-me inverter a proposição a vosso favor." A acreditar nele, nunca curso nenhum lhe correu tão bem. Mas, como é evidente, o milagre só aconteceu porque ele sabia mesmo tudo e não estava a viciar o jogo. Se não soubesse, jamais o conseguiria. Como o não conseguiria se se pusesse a trabalhar "em grupos", a adular os néscios ou a fingir que eram eles quem o devia ensinar.

5. Aqui há uns anos, esteve em Portugal o prof. Mel Ainscow, da Universidade de Manchester, para cheirar um bocadinho dos perfumes reinantes.

Para lá de muitas outras, duas coisas o deixaram particularmente estupefacto: que as escolas ou os liceus não tivessem "um" director ou "um" reitor ("um" responsável em suma) e que o corpo docente andasse numa jigajoga, escola aqui, escola acolá, sem se fixar num único estabelecimento.

Como se sabe, foi "conquista de Abril" acabar com os reitores e substituí-los por um órgão colegial eleito "interpares", em que os eleitos são obviamente quem mais facilita a vida aos eleitores. Todos se protegem mutuamente. Também foi "conquista de Abril" a "rotatividade" do corpo docente.

Nunca nenhum ministro, nunca nenhum responsável, reparou nisto? É evidente que reparou. Mas não parou. Porque, se o fizesse, teria contra ele o omnipotente Sindicato dos Professores, com recurso fácil à arma suprema, chamada greve. Não há nada que os pais mais temam, e as autoridades também, que meninos à solta e sem o merecido descanso das aulas. De modo que nos santinhos (os professores) não se toca nem com uma flor. Ou tocam os alunos, mas isso até ajuda a tornar as aulas mais "participativas". Foi assim, e com os programas escritos em "pretoguês", aprendidos em "estruturalês" e em "linguês" que se chegou até ao que Maria de Fátima Bonifácio descreve.

E vai ser pior, muito pior. É só esperar mais uns aninhos, gastar muito mais dinheiro, fazer muitas mais reformas, ter muitas mais paixões, e esperar que Maria de Fátima Bonifácio e a geração dela passem também e sejam substituídas pelos alunos delas. "Encore un effort..."

P.S.: Nas próximas cinco semanas não há A CASA ENCANTADA. Vou de férias. Se Deus quiser, regresso a 8 de Outubro.

Escritor

Tuesday, August 24, 2004

O Cu da República

Publico, Segunda-feira, 23 de Agosto de 2004

A política e os políticos dão-nos cada vez mais razões para pensarmos que a democracia vai nua. A nobre "arte de governar a cidade" resvala a olhos vistos para uma pobre encenação burlesca, carregada de discursos requentados, engenharias financeiras obscuras e aparições públicas, seja na televisão, em revistas cor-de-rosa ou em festas do patético "jet-set" nacional, onde as camadas de base facial e o catálogo de sorrisos jogam um papel crucial em detrimento da riqueza de ideias e projectos, bem como da honestidade intelectual.

Prova esmagadora desta evidência é a recente contratação de uma especialista em relações públicas, que pertencia ao quadro de uma revista cor-de-rosa, para "tratar das questões de imagem de Pedro Santana Lopes", como noticiava o PÚBLICO na edição de 18-08-04. Parco de ideias e de vocabulário, de discurso monótono e monocórdico, Pedro Santana Lopes tem, bem vistas as coisas, motivos de sobra para esta requisição. Uma modulação emocional do discurso aqui e ali, uma tantas aparições por semana empregando os sorrisos X e Y, uma revisão profunda do guarda-fatos, um ajustamento postural em público, um "lifting" ou outro, cabelo pintado como nos velhos tempos e temos homem. Não teremos nunca é primeiro-ministro, o líder, a referência intelectual, moral e humana de que o país realmente necessita, mergulhado que está num coma profundo, agitado, apenas, por algumas convulsões reflexas durante o Euro 2004.

Todos sabemos que um homem não resolve os problemas de um país, mas pode fazer a diferença. Como? Convocando as pessoas certas para os lugares certos, não os amigos, os amigalhaços, as amantes e os amantes, o primo, o sobrinho e a tia. Criando sinergias e dinâmicas na equipa executiva que contamine positivamente todos os poderes, todas as pessoas, que não semeie a desmotivação, o descontentamento e a indignação. Dando sinais inequívocos de competência e honestidade, bem como dando exemplos de justiça e probidade.

Sou professor há vinte anos, tenho uma licenciatura e um mestrado, daqui a três anos atinjo o topo da carreira docente e aufiro actualmente de um vencimento líquido de 1683 euros (nada mau, confessaria uma grossa percentagem de portugueses). Marta Guimarães, que "terá a seu cargo as questões de imagem" do primeiro-ministro, "receberá quase 3000 euros líquidos", de acordo com o vosso jornal. Depois digam que não percebem as razões das altas taxas de abstenção, dos baixos índices de produtividade e dos míseros níveis de motivação no trabalho. É difícil calar a indignação; é duro travar o descontentamento; é uma tarefa ciclópica manter a motivação perante a precariedade ética dos exemplos que nos chegam de cima.

A República virou-nos o cu, como diria o bom e calado povo.

João da Costa Magalhães

Leça da Palmeira

Saturday, August 21, 2004

Todos Precisamos Sempre da Ciência, Hoje a Ciência Precisa de Nós

Todos Precisamos Sempre da Ciência, Hoje a Ciência Precisa de Nós
Por JOSÉ MARIANO GAGO
Público, Domingo, 15 de Agosto de 2004

situação da Ciência em Portugal é difícil. Serve este apelo para tentar, com a pouca força que sei ser a das ideias e dos argumentos, convencer e mobilizar, para que a situação melhore.

Há em todos os partidos políticos e fora deles pessoas responsáveis que querem o desenvolvimento do País. Peço-lhes apoio para uma política científica progressiva para Portugal. Este apelo não é contra ninguém e por isso espero sinceramente que possa suscitar a vontade honesta de entender os factos e os argumentos aqui brevemente expostos. O assunto é demasiado sério para outra qualquer atitude.

É necessário perceber que não exagero quando afirmo que a ciência em Portugal está em risco. O maior de todos os riscos: a partida dos mais novos, a desistência de muitos. Não pretendo assacar culpas, nem esclarecer por que razão pudemos regredir. Importa agora tentar corrigir, e fazer bem. Foram dois anos difíceis. Urge encerrá-los e virar a página.

Logo em 2002, a ciência não foi poupada a cortes orçamentais e a atrasos de pagamentos, nem a uma militância contra o que vinha de trás e a oposição de então aplaudia, pedindo tão só, é irónico lembrá-lo, mais meios: laboratórios associados, "Ciência Viva", reforma dos laboratórios de Estado, avaliação internacional independente, incentivos fiscais à actividade de investigação nas empresas, cooperação com organizações científicas internacionais.

Mas retirou-se autonomia financeira aos laboratórios públicos e parou-se a contratação de investigadores novos. Parte das contribuições devidas por Portugal a organismos científicos europeus deixou de ser paga, sem que se abrissem negociações para novas condições de pagamento. Dizem-me que este problema está a ser resolvido: ainda bem.

Foram atacados os laboratórios associados, quinze instituições científicas de base universitária de qualidade reconhecida internacionalmente, associadas ao Estado através de contratos de longo prazo. Alguns desses laboratórios viram-se sem financiamento durante ano e meio.

O orçamento de 2003 foi de baixa para a Ciência, como seria o de 2004. Mas anunciava-se prioridade à Ciência. Mais pobre, era-lhe dado o palco das ilusões modernas: "Já viu como está mais rica e mais bonita?"

A agência "Ciência Viva", organização não-governamental cujo trabalho pela promoção da cultura científica em Portugal é internacionalmente reconhecido, tem a responsabilidade do Pavilhão do Conhecimento, apoia a criação de Centros Ciência Viva em muitas regiões do País e promove um programa bem conseguido de acções de Verão para o grande público com envolvimento directo de centenas de cientistas (Astronomia, Biologia, Geologia, a partir deste ano Engenharia, no Verão). O seu esforço de promoção do ensino experimental das ciências nas escolas é bem conhecido. De 2002 para 2003 o orçamento do "Ciência Viva" foi amputado de 60 por cento. O ministro Lynce, todavia, soube emendar o erro inicial e repor para 2004 os níveis anteriores. Mas as verbas devidas não foram afinal transferidas, condenando o "Ciência Viva" a inaceitáveis dificuldades. Num raro exemplo de sectarismo leu-se mesmo "agência socialista perde poder"! Atacadas as Misericórdias escrever-se-á talvez: "agências monárquicas perdem poder", já que nascidas em distante reinado.

Entretanto, paralisava o financiamento público da ciência a pretexto de puritanismo processual.

Para denegrir um governo anterior há sempre quem se ofereça (também me vieram e ainda vêem oferecer material que fecho e ignoro). Logo se desencantaram "erros de procedimento na gestão de fundos" para a ciência: ora tais procedimentos tinham sido contratualizados entre Portugal e Bruxelas. Não havia erro algum. Mas aceitaram-se críticas erradas e uma burocracia má para a ciência e não se contestou eficazmente o que era, afinal, um ataque contra a ciência em Portugal. Neste verão de 2004, esperamos uma gestão de fundos que nos permita avançar e um poder político que lute pela simplificação administrativa, pela adequação das regras às actividades a financiar. Por que não pede o Governo ao Conselho dos Laboratórios Associados uma análise de gestão do POCTI (Programa Operacional para a Ciência e a Tecnologia) e apoio no contraditório com Bruxelas?

É urgente criar emprego científico novo. Mas pelo menos estabilizem-se de imediato os fluxos financeiros e cumpra-se sem delongas o contratado.

No final de 2003, alargava-se a oposição entre palavras e actos. Nas palavras: prioridade à investigação nas empresas. Nos actos: supressão do sistema de incentivos fiscais à actividade de I&D empresarial. Em Janeiro de 2004, criava-se um novo "sistema de crédito fiscal" com reduzidíssima aplicação para actividades de I&D. As nossas empresas mais inovadoras não lograram ainda inverter esta situação.

Já em 2004, tivemos o anúncio de Óbidos: o maior investimento de sempre na ciência. Infelizmente, sem realidade. O investimento para a Ciência previsto não vai crescer afinal quase nada: acrescenta-se por um lado o que se reduz por outro. Como reformar a estrutura da despesa pública para afectar mais recursos à ciência, à educação e à formação e à cultura, e menos a outras despesas? Esse é o problema a resolver.

São precisas mudanças. Pôr a gestão do POCTI ao serviço das necessidades reais, negociar eficazmente, corrigir regras e atitudes inadequadas e a "reprogramação" apressada do programa. Mandar parar de vez a perseguição contra o "Ciência Viva", os laboratórios associados, e tudo o que lembre a expansão científica de 1995 a 2002. Repor o regime de incentivos fiscais à I&D empresarial. Pagar as contribuições devidas aos organismos científicos internacionais.

Isto apenas, e é muito, mas é o mínimo, já nos permitiria respirar e congregarmos esforços para, ultrapassado este parêntesis infeliz, continuarmos a desenvolver, em conjunto e o melhor que soubermos, a ciência e a tecnologia em Portugal.

Ex-ministro da Ciência nos governos de António Guterres

Mais Dinheiro para a Educação?

Mais Dinheiro para a Educação?
Por M. FÁTIMA BONIFÁCIO
Público, Domingo, 15 de Agosto de 2004

engº. Sócrates renovou recentemente, à laia de manifesto da sua candidatura, a promessa de que com ele o país investirá a fundo na Educação (a isto se resumia o essencial da mensagem). Uma promessa que em Portugal tem sido feita, com intermitências, de há perto de duzentos anos a esta parte e que Guterres tentou erigir em desígnio digno de concitar uma "paixão" nacional. Injectou-se mais dinheiro no "sistema", promoveu-se a modernização pedagógica, reformularam-se os programas e refizeram-se os manuais. Reformas e dinheiro de nada serviram.

De há anos a esta parte, com assinalável regularidade, o país toma conhecimento de números que revelam o clamoroso fracasso da Escola. Ainda agora fomos escandalizados pela notícia de que metade dos alunos do secundário chumba nos exames nacionais do 12º ano. Desgraçadamente, este resultado encobre a péssima qualidade dos alunos que conseguem passar, chegam à Universidade quase analfabetos e saem de lá pouco melhor do que entraram. Há 25 anos que sou professora de História na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Há 25 anos que observo, de ano para ano, a degradação da qualidade dos estudantes, e há 25 anos que vão sendo piores as notas que me vejo obrigada a dar, apesar de a minha complacência e tolerância terem aumentado com a idade e a sensata tendência para a acomodação que ela gera.

Convenci-me ultimamente de que o panorama não melhoraria significativamente nem que os programas e os professores fossem todos excelentes. Não há assunto nem eloquência capazes de obrar o milagre de despertar a atenção e a curiosidade de uma massa estudantil inteiramente desinteressada em aprender e unicamente apostada em "passar". A grande maioria dos alunos limita-se a tirar apontamentos nas aulas de forma totalmente acéfala, e os disparates que escrevem nos testes revelam uma total incompreensão das matérias mais simples e uma total incapacidade de exporem com sequência e clareza as ideias mais elementares ou de narrarem com nexo os factos mais básicos. Não percebem o que ouvem e menos ainda o que lêem. De resto, salvo uma ou outra excepção honrosa, lêem pouco ou mesmo nada. Como suponho que fazem também os meus colegas, trato de me ajustar à circunstância. Isto significa baixar o nível das aulas até ao ponto em que poderíamos estar numa qualquer turma do secundário.

Não sei que "competências" estes alunos adquiriram no liceu, mas sei que não adquiriram o mínimo de conhecimentos que lhes permitiriam ascender a um patamar de aprendizagem superior. Ensinar História na Universidade tornou-se quase impossível, porque em vez disso é necessário familiarizar os alunos com as matérias, os factos, os nomes, as datas e as noções ou conceitos a partir dos quais poderiam então começar a aprender História e a discernir entre as várias maneiras de a escrever. Acresce que não sabem português: o vocabulário de que dispõem é de uma pobreza confrangedora, e os erros de ortografia e gramática são de molde a arrepiar. Sendo a história uma disciplina literária, não admira que o desastre seja quase geral, como aconteceria ao engenheiro que pretendesse construir uma ponte ou um prédio sem saber física ou matemática.

Confrontados com a sua ignorância, poderíamos supor que os alunos, chegados à Universidade, se esforçassem por supri-la através da aplicação redobrada ao trabalho. Não espanta que tal não aconteça: não têm curiosidade intelectual e por isso não têm interesse em aprender; e o liceu não lhes inculcou hábitos de disciplina nem de esforço.

O estudante universitário - como o do liceu - tem antes de mais direito ao seu lazer. Estudará, ou não, no tempo que sobrar. Pela Universidade arrasta-se hoje uma preguiça generalizada que torna a docência um exercício frustrante e deprimente. Invejo colegas que têm prazer em declamar perante auditórios que não estão interessados no que dizem nem captam metade do que ouvem; que raramente levantam uma dúvida pertinente; que quase nunca suscitam um problema interessante. A docilidade dos estudantes de hoje só espanta quem não saiba que ela é a máscara de uma apatia e ignorância que não lhes permitem interrogar e muito menos debater. Em tempos tive alunos que são hoje meus colegas e académicos brilhantes. Essa raça desapareceu.

Não se pense que exagero. Os estudantes chegam hoje em dia à Universidade sem quaisquer hábitos de disciplina e de trabalho. A simples ideia de que aprender custa esforço e sacrifício, de que fazer um curso superior é algo que absorve e ocupa a tempo inteiro, é impensável. Neste aspecto, como noutros, a Universidade é um mero prolongamento do Secundário: o prolongamento de um imenso recreio que, por seu turno, já prolongava o jardim infantil em que se converteu o Ensino Básico. Desde a mais tenra idade, as crianças são educadas e formadas na noção errónea, e nefasta, de que aprender pode e deve ser tão lúdico como jogar à bola na praia ou saltar à corda nos intervalos. Chegadas ao Liceu, deparam com a mesma filosofia pedagógica. As matérias têm que ser interessantes, apelativas, divertidas, ensinadas de maneira que se não dê por ela e aprendidas de maneira que não dê trabalho. As aulas têm que ser animadas, participadas, de modo que a atenção se prenda sem esforço. As avaliações não podem ser traumatizantes: são sempre imperfeitas e, portanto, muito, muito relativas, tão relativas que até mesmo um péssimo aluno pode sempre ser desculpado. Em suma: as crianças, os adolescentes e os jovens adultos não podem ser maçados e qualquer embate com as duras realidades da vida lhes deve ser poupado.

De facto, tudo começa com a cultura de adulação da criança que domina a sociedade ocidental contemporânea e que não passa, como tantas outras características dela, da degradante e ridícula pieguice em que culminou a "Sensibilidade" descoberta na segunda metade do século XVIII. Tudo o que diz respeito às crianças - o seu bem-estar, a sua saúde, a sua protecção, o seu lazer - suscita imediatamente a atenção desvelada de um público adulto que erigiu as crianças no centro do mundo e entende, pelo menos "teoricamente", que tudo se deve subordinar aos seus interesses e às suas presumidas necessidades. (Felizmente já temos um ministério da Criança.)

Nas famílias, as crianças tornaram-se geralmente pequenos déspotas inteiramente desprovidos de quaisquer hábitos de obediência ou elementar respeito pelos pais e os mais velhos, que no entanto tudo fazem e sacrificam para que os rebentos possam gozar de condições ideais para desenvolverem livremente as suas promissoras personalidades. De tão mimadas, as crianças crescem, desde o berço, com a justificada sensação de que na vida só há brincadeira e direitos e de que tudo lhes é devido. Se por acaso algumas revelam um temperamento mais difícil, não se aplicam os bárbaros remédios clássicos. Arranja-se-lhes acompanhamento psicológico a fim de tentar, sem traumas nem violências, torná-las mais cordatas sem contudo prejudicar nem levemente o seu "crescimento natural". A "personalidade" da criança é sagrada e todo o respeito por ela é pouco.

Depois do jardim-escola, onde as educadoras de infância as ajudam a brincar, chegam ao primeiro ciclo do Básico, onde os professores se esforçam por que as aulas se pareçam o mais possível com recreios. Segue-se o antigo liceu. Pela primeira vez vislumbram - mas não mais do que vislumbram - a necessidade de refrearem os seus ímpetos e de se conformarem com um mínimo de disciplina e aplicação. Os trabalhos de casa são vistos, pelos alunos e por muitos pais, como um fardo cruel para crianças ou adolescentes que já passaram várias horas na escola sujeitos a constrangimentos "stressantes". É tarde para se habituarem. Trabalhar é a última das prioridades para adolescentes confrontados com mil e uma solicitações divertidas que os distraem das suas obrigações, a que não dão importância.

Portugal é o país europeu com mais alunos com dificuldade em aguentar o alegado "stress" escolar. O esforço de estudar é demasiado duro; a concentração que se exige é esgotante... Quando chegam ao 12º ano, metade dos alunos chumba. A metade que consegue passar, chega à Universidade e não é capaz de ler um livro do princípio ao fim. Grande parte desiste dos cursos depois de se ter arrastado anos pelo bar, pelos corredores e pelas salas. Quase todos os que chegam ao fim saem da Universidade tão ignorantes como lá entraram. Continuam a não escrever português e sem conseguir interpretar um texto. Mas são os senhores doutores de que sairão os quadros do país e os futuros professores do liceu. Não há dinheiro que resolva o problema. Historiadora

Friday, August 20, 2004

Bola na praia, José António Barreiros

DN, Sexta-Feira,
20 de Agosto de 2004

Há 30 anos, em Portugal, o poder estava nas mãos dos que haviam lido Das Kapital; hoje mandam os que frequentaram a Kapital.

Há nisto tudo uma substancial diferença: os primeiros queriam transformar o País em nome de uma ideologia, os segundos hesitam em governá-lo, por total ausência dela.

Além disso, aqueles sofriam então inflamados num mundo de miragem, estes sorriem hoje bronzeados num mundo de imagem.

A política actual deu nisto, no reino do fait divers: o primeiro-ministro não se livra dele, nem tem outro mundo em que consiga viver.

Pedro Santana Lopes dificilmente encontra um jornalista que queira dele ouvir se tem uma ideia de Estado, encontra dezenas que queiram saber onde almoça e com quem janta.

A política-espectáculo impõe as suas regras.

Sem as luzes da ribalta política, Santana sabe que não existe, sem os bastidores do teatro da política, Lopes sabe que não subsiste. Por causa disso há um exército de assessores só para a imagem. Na lógica do entretém, a vedeta só se valoriza com um corpo de baile.

Num teatro de revista em que não haja coristas, o compère não tem graça. Essa é ciência do Parque-Mayer.

Já os romanos, hedonistas antigos e antecessores dos de hoje, sabiam que não havendo pão, houvesse ao menos circo.

Por falar em festas, o ano político vem aí, este ano sem as festas de abertura dos partidos que estão no poder. Faz sentido, porque, com a central de imagem e mais os assessores de imagem, estaremos em festejos o ano todo.

Claro que quando acabar o que resta do subsídio de férias, virá o regresso ao real, do bronzeado à palidez.

No Outono, menos festivos, regressaremos todos: aqueles, homens políticos, que escolheram isto; aqueles, homens sem cara, que apoiarão isto; aqueles, homens sem nome, que sofrerão por causa disto. Para enganar estes últimos, os assessores transformarão a imagem do impossível na imagem do inacreditável.

O primeiro-ministro sabe que basta que o País pense que não pode estar a suceder o que lhe aconteceu, para que o Governo se aguente: foi assim com ele, quando, parecendo-lhe irreal, chegou de súbito ao lugar que tem. Para já, entre sol e aguaceiros, vivemos o jogo de bola na praia do segredo de justiça.

É um jogo de vaivém.

O segredo de justiça, coitadinho, mais do que violado, estuprado ele tem sido, já deu para tudo.

Houve carreiras políticas fulgurantes à conta dele.

Por causa dele antigamente - bola! - iam políticos para a rua. Agora, através dele - bola! - vão para a rua magistrados.

O problema é que, como os outros jogos de bola na praia, irritantemente salpica todos de areia.

ja.barreiros@mail.telepac.pt

Um cenário, Vasco Pulido Valente

DN, Sexta-Feira,
20 de Agosto de 2004

Pedro Santana Lopes tem Morais Sarmento e uma «central de informação» a trabalhar para o governo e para si próprio; e certamente um assessor de imprensa; e agora uma funcionária da Lux para o promover a ele em exclusivo, provavelmente no glorioso mundo que se toma por «sociedade» e se compõe de anónimos muito conhecidos por razão nenhuma. Imitando o chefe, os ministros também querem assessores. A ministra da Cultura, Maria João Bustorff, parece que arranjou três; e António Mexia também. Dizem os jornais que a ministra da Educação e o ministro da Justiça reclamam dois. O novo regime começa a mostrar aquilo que é: uma agência publicitária, como foi a Câmara de Lisboa no tempo de Santana Lopes - nunca ninguém fez tão pouco e tão mal com tanto espalhafato. Tudo isto até certo ponto se compreende. Bagão Félix congelou as «despesas de funcionamento» e só deixa investir, em geral e em condições muito especiais, uma verdadeira insignificância. Vai haver por aí muito ministério sem vintém, parado e melancólico, a matar aplicadamente moscas. Neste aperto, os governos costumam inventar a «obra» que não fizeram. Um decreto, por exemplo, sai de graça, desde que não seja aplicado. Uma inspecção pela província (a pontes, museus, por aí fora) mostra amor do povo e grande zelo, e fica pelo preço do gasóleo (ou da gasolina). Ir à «Europa» ou a enterros, «reorganizar» serviços no papel ou comungar ardentemente com o futebol (ou a arte) são truques baratíssimos e caem sempre bem. Em princípio, toda a espécie de fantochada serve, se existirem assessores de imprensa e eles conseguirem a «cobertura» da coisa: na televisão, na rádio ou nos jornais. Portugal está a caminho de se tornar uma «aldeia Potemkin», um cenário de teatro sem nada atrás. Mas, francamente, quem esperava mais?

Antigamente, a Escola... (I)

Por JOÃO BÉNARD DA COSTA
Público, Sexta-feira, 20 de Agosto de 2004


Não, antigamente a escola não era risonha e franca, como no pré-histórico poema ("O Estudante Alsaciano") que, em versão portuguesa, aprendi com a minha Avó e galhardamente recitava - ao que me contaram - empoleirado num banco do Jardim da Estrela, para pasmo dos basbaques e vergonha da minha Mãe, que me surpreendeu, aos cinco anos, em tais preparos.

Nessa altura, ainda nem sequer sabia o que escola fosse. Quando soube, talvez usasse muitos adjectivos, mas não seguramente os que a associam ao riso e à franqueza. Mas descansem que não venho para ajustar contas nem para louvar o ensino de outras eras. Também não venho para execuções sumárias. Apenas me lembrei, por razões que mais adiante explicarei, que nunca disse de minha justiça sobre um personagem muito maltratado. Refiro-me ao dr. Sérvulo Correia, reitor do Liceu Camões entre o ano lectivo de 1950-51 e o de 74-75, a que não resistiu.

2 - 1950-51. Eu tinha de 15 para 16 anos e repetia a secção de ciências do 5º ano do liceu (actual 9º). Nesses tempos, até ao dito 5º ano (do 3º ao 5º, leiam do 7º ao 9º, e não vou prosseguir com actualizações), segundo a reforma de 1947 do ministro Pires de Lima (uma entre tantas), havia nove disciplinas, arrumadas entre letras e ciências. Letras: Português, Francês, Inglês e História. Ciências: Geografia, Ciências Naturais, Físico-Químicas, Matemática e Desenho. Se eu era bom aluno em letras, e por isso passei o exame do 5º ano com uma perna às costas e um 19 a História, péssimo era em ciências, sobretudo em Matemática e Desenho. Por isso chumbei e por isso fui condenado a repetir as cinco disciplinas das tais ciências.

Foi um ano negro, sem sombra de dúvida o ano mais negro da minha existência. Tinha grandes "buracos" nos horários (as horas em que os não-repetentes aprendiam letras) e vagueava entre casa e o liceu para repisar "matérias" que odiava. Lágrimas e suspiros? Pouco mais ou menos e não exagero muito. Se a palavra auto-estima já tivesse sido inventada, a minha andava muito por baixo, o que aos 16 anos não se recomenda.

O pior de tudo era o Desenho. Por dislexia congénita ou adquirida (havia a tese da fatalidade e a tese da preguiça ronhosa), eu nunca fui capaz de fazer um traço direito ou uma curva torta. Felizmente, os professores que tive do 1º ao 5º ano (o santo Mendes Costa e a beatíssima Maria Marinho, que, segundo as minhas contas, ainda é capaz de estar viva) sustentavam mais a tese do "coitadinho" do que a do "fiteiro" (tese paterna) e foram-me "passando", como nessa altura se dizia, mesmo se os meus "desenhos geométricos" se pareciam com bilhas "desenhadas à vista" e as bilhas com "geometria no espaço", não desfazendo na geometria e muito menos no espaço.

Tive a sorte (graças à citada reforma) de escapar ao exame do 3º ano, que, quando lá cheguei, retroactivou para o 2º. Mas do exame do 5º não escapei. Como já disse, não escapei mesmo.

Foi nesse ano, escolarmente bissexto, que Sérvulo Correia foi nomeado reitor do Camões. Vinha precedido pela fama de "animal feroz" (como diria o eng.º Sócrates) e não a deixou por mãos alheias. O liceu, habituado às cãs brancas e à bonomia de um simpático velhinho coxo, mudou do dia para a noite. Professores e alunos tremiam à passagem daquela cabeça, que, devido a uma acentuada dolicocefalia, logo lhe valeu o cognome de "cabeça de martelo". Eu tinha outras razões para tremer e, como ia pouco ao liceu, não me achei envolvido nas histórias dickensianas que se contavam.

Lá chegou a altura (ah, quando eu contar esse Verão de 51!) de fazer o segundo exame do 5º ano. Prova escrita, que dava direito a dispensar da oral, em caso de média de 16, e dava direito ao chumbo, se a média fosse inferior a 8,5. No ano anterior, ainda tinha chegado à oral. À segunda vez, nem isso. Uns dezitos e uns novezitos em quatro disciplinas não "taparam" o 2,8 (dois vírgula oito) em Desenho. Poupo-vos à descrição do meu estado de alma diante daquela pauta, em que a seguir ao meu nome estava encarnadamente escrito: "Reprovado". A simples ideia de imaginar (isso mesmo: "ideia de imaginar") que, no ano seguinte, tudo se passaria pela terceira vez punha-me a alma e o corpo em rebuçados desfeitos. À minha volta, colegas manifestavam-me a tradicional comiseração lusa: "Coitado do Bénard"; "Chumbou outra vez por causa do Desenho"; "Ele não tem culpa". Por aquelas horas, passou por ali o tal São Mendes Costa. Ao ver-me em tal estado, quis saber a razão. Logo lha disseram. Passaram mais horas (eu não me atrevia a voltar para casa e a enfrentar a família). Apareceu um contínuo, que, a mando do Senhor Reitor, me disse para ir ao gabinete dele. Lá fui, tão fora de esperar bem. Recebeu-me secamente e ordenou: "Vai para casa e diz ao teu pai que venha cá falar comigo."

O meu Pai, engripado e de cama, não foi. Pediu à minha Mãe para o fazer. Quando voltámos, o Senhor Reitor recebeu-nos logo. Não mandou sentar a Mãe. De pé, disse-lhe: "O professor de Desenho do seu filho informou-me da nota dele e da reprovação. Se ele é inapto, o encarregado de educação devia ter pedido dispensa dessa disciplina, como está previsto na lei. Agora, tudo é mais difícil. Mas ainda se pode tentar. O marido de V. Exa. deverá fazer um requerimento ao Senhor Ministro da Educação, solicitando a anulação da prova, o que lhe permitirá ter acesso ao exame oral. Não prometo nada - a decisão não me compete -, mas a informação que darei, com base no que o professor de Desenho me transmitiu, será favorável."

Transmitida a mensagem, o meu Pai mostrou-se muito céptico. Mas o prazo para recurso era curto e tentou. Fui levado a várias consultas médicas, onde ouvi o meu Pai fazer dele a tese do "coitadinho" (muito me espantou essa conversão, mas o amor de pai obriga a muito) enquanto eu me sumia pelo chão abaixo a cada novo exame, teórico e prático. Fez-se o requerimento.

Na dúvida do despacho, uma prima minha, bastante mais velha e que cursava Económico-Financeiras, deu-me explicações intensivas de Físico-Químicas e Matemática, num Julho ardente e inquietíssimo. Um belo dia, chegou a notícia. O ministro deferira o requerimento. Já em Agosto, "fui à oral". O mês de férias, que a minha prima sacrificou a cultivar-me minimamente em matérias em que eu era ignaro, fez o resto do milagre, bendita seja ela! Fui aprovado com 10 valores e deficiência a Matemática, o que era irrelevante para quem, obviamente, se destinava às letras. Dois anos depois, concluí o Liceu (no Pedro Nunes) com média final de 18.

3 - Na altura, abençoei o Prof. Mendes Costa, o Ministro e a Prima. Tinha toda a razão. Mas esqueci-me de abençoar o Reitor. Só alguns anos depois (quando eu próprio vivi, do outro lado, a época dos exames e o trabalho imenso que ela implicava para os examinadores) me dei conta do que o gesto dele teve de extraordinário. Em vez de juntar mais uma reprovação às estatísticas, com um aluno que nem sequer era aluno dele e que ele nem sequer conhecia, arrancou-me à autocomiseração e às lágrimas quentes, accionou os mecanismos legais que tanto os meus Pais como eu desconhecíamos, venceu o cepticismo paterno e anulou os efeitos devastadores de uma segunda reprovação consecutiva num adolescente em crise. Tivesse ele sido indiferente (como era legítimo e normal que fosse) e talvez o meu futuro fosse bem diferente.

Tive ocasião de lho dizer. Dez anos depois desse trágico 51, voltei ao Camões, como professor de História, Filosofia e Organização Política e Administrativa da Nação. Professor eventual, ou seja, fora do quadro. Ensinei nessa qualidade três anos lectivos.

Poucos meses depois de começar, dava uma aula de História e estava virado de costas para a porta aberta, ouvi um silêncio pesadíssimo e vi os alunos todos a levantar-se como se um alfinete lhes picasse o rabo. Entrara o Senhor Reitor. Não disse nem bons dias nem boas tardes. Avançou para a "minha" secretária, sentou-se, mandou sentar os alunos e disse-me: "Sr. Dr., faça favor de continuar a dar a aula." Eu continuei. Lembro-me que era sobre as origens do cristianismo (3º ano, pois). Quando tocou a sineta, mandou sair os alunos e disse-me para ficar. Não falarei de piropos, que é uma palavra que vai mal com ele. Mas raras vezes ouvi elogios tão expressivos. Daí para diante, tomou-me sob a sua protecção. Um dia, levou mesmo a afectividade mais longe e justificou a sua imagem. Não tinha - disse-me - qualquer prazer em fazer de "papão do liceu", mas entendia que aquele era o único modo de lidar com rapazes que os pais, na sua maioria, não seguiam e com professores genericamente incompetentes. Discuti com ele abertamente e ele ouviu-me com atenção. Lembro-me que acentuou duas vezes a expressão "formar os melhores".

Num desses anos, propus-lhe dar, em regime aberto, depois do horário normal, um curso de iniciação ao cinema, já nessa altura paixão minha. Não suponho que fosse cinéfilo ou sequer que fosse ao cinema. Mas sem hesitação me autorizou e seguiu, interessadíssimo, os resultados.

Doutra vez, pôs-me uma reserva: nas minhas aulas, tinha notado pouca participação dos alunos. Vinda de quem vinha, a observação espantou-me. Disse-lhe que era o meu estilo e que, além disso, na presença dele, o acentuava, pois que os ditos ficavam manifestamente muito pouco à vontade. Pareceu-me perceber, embora me notasse que, com a minha idade (eu tinha vinte e tal anos), devia estar mais aberto à "pedagogia moderna".

Em 1964, resolvi trocar o liceu por outra oferta de emprego, aparentemente mais tentadora. Falei com ele e só me encorajou. "Com as condições do ensino de hoje, uma pessoa como o Sr. Dr. deve seguir outros caminhos."

Já fora do liceu, tive ocasião de lhe escrever uma carta a contar a história do exame do 5º ano, que ele evidentemente esquecera. Respondeu-me emocionado: "A sua carta chegou num momento muito difícil da minha vida e foi um bálsamo."

Um ano depois, estava de novo a bater-lhe à porta. Muito mais aberto à "pedagogia moderna" (hoje, acho que escancaradamente aberto), propunha-lhe voltar para fazer experiências de pedagogia não-directiva, à Rogers. Acreditem ou não, disse-me logo que sim.

Só que nesse ano a PIDE mudou as regras para a admissão de eventuais. Até aí - o que me valera -, os contratos destes, contratos a prazo e sem garantia de quaisquer direitos, não iam ao visto prévio da polícia política. Nesse ano, passaram a ir. A informação era fortemente negativa. Chamou-me, comunicou-mo e disse-me que iria ele próprio à PIDE, para os tentar demover. Aí falhou. A experiência não-directiva vim a fazê-la no Colégio Moderno do Dr. Mário Soares. Deus escreve direito por linhas tortas.

4 - Nunca mais o vi.

Mas, de cada vez que leio, em memórias de ex-alunos dos anos 50, 60 e 70, o retrato de Sérvulo Correia como arquétipo do reitor policial ou do reitor fascista, que transformou o Camões numa prisão, penso no dever de contar esta história. Chegou a altura.

Por "razões que mais adiante explicarei"? Sem mais espaço, ficam para a próxima crónica. Se nunca aprendi a ser "não-directivo", também nunca aprendi a ser sintético.

Escritor

Wednesday, August 18, 2004

The true cost of meat

http://www.newscientist.com/opinion/opinterview.jsp?id=ns24601

New Scientist

The true cost of meat


Americans each chomp their way through an astounding 100 kilos of meat every year - that's a medium steak per person per day. This worries Robert Lawrence, because a meaty diet with so many calories in saturated fats squeezes out healthier fruits, vegetables and grains. But, as he told Liz Else, he's busy providing the academic ballast for a national campaign to save the country from itself. And fortunately for him, he's an optimist



What is the campaign called? Can you really change the way Americans eat?

It's called Meatless Monday - the name goes back to the first world war when it was used as a catchy phrase to help people live with rationing. In a way we're doing the same thing but it's a voluntary rationing at a time when the average citizen is "eating" 800 kilos of grain per year compared with 250 kilos in China. Our grain feeds animals, mainly beef, where 1 kilo of beef takes around 7 kilos of grain to produce. And yes, the food industry is enormous but I'm a great believer that the truth will ultimately out, and the more good data that we have the more likely it is that we will be able to persuade people either to change their behaviour or, even more importantly, to use their behaviour to change policy.

Why Mondays?

We liked the way it sounded! But also people often overdo things at the weekend so it makes a different start to the week.

How meatless is Meatless?

Basically, no red meat, pork or poultry. Fish - which is high in nutritional value - and "good fats" are fine.

What was the motivation?

Maybe it was because I had my first grandchild and started worrying about the future. I began to think a great deal more about what policy interventions we could develop that would integrate human health with the health of the ecosystem. After all, we've known for years about the important environmental effects, starting back with the London chimney sweeps in the 18th century who got scrotal cancer because they were being exposed to all the tars of the soot. But the environment as something that is intimately related to the health of the entire population hasn't been explored in this much depth. It particularly relates to ideas of food security, how we are using arable land and water, and how food production contributes to inequities in food security around the world as well as within our own society.

This is all highly political.

Oh, highly political. The agricultural industry and the food industry have a lot of political power.

Could it be as tough as taking on the tobacco industry?

Well, it's interesting that there is a group called the Center for Consumer Freedom in the US which is a front for the tobacco industry, the Cattlemen's Association, the Pork Producers' Association, the Dairy Producers' Association, the Egg Board and so on. They have declared several of us here at the School of Public Health "environmental extremists" because we are talking about the safety of the human food supply, going right back to the safety of the animal feed supply.

Are there environmental health problems associated with meat production?

Absolutely. One striking example is in our own back yard. We are looking at changes in the microbiologic flora and fauna of the surface water on the eastern shore of Maryland, where a billion chickens a year are raised. The chicken feed contains antibiotics and arsenic, which is used as a biocide. And the arsenic ends up in what we euphemistically call "chicken litter", chicken excrement. That is put back on the fields to grow soybeans and the corn to feed the chickens, but in such quantities that the arsenic is now leaching into the surface water.

A colleague was trying to see whether this enormous industrial agricultural production could explain the arsenic in drinking water on the eastern shore, and the appearance of antibiotic-resistant bacteria because of chronic exposure to low levels of antibiotics.

What are the risks of doing this kind of research?

There is a risk, particularly in the US, of science being used for political purposes. A few months ago, the Union of Concerned Scientists issued a statement that was signed by about 60 Nobel prizewinners, criticising the political manipulation of scientific data. And when you get into the environment in the US, of course, it brings out all the worst aspects of that.

What can you do?

The Center for a Livable Future, which is where we provide the academic background for Meatless Monday, focuses on the way diet, food production, environment and health are interrelated, with particular emphasis on the environmental and health impacts of industrial animal production. Animal rearing on an industrial scale adds to the air quality problem, for example, by releasing ammonia and other chemicals related to intensive agriculture. The centre is all about promoting policies to protect our health, our planet, and our ability to sustain life in the future.

Why did you pick meat? Why not fizzy drinks, dairy products, cakes or cookies?

One reason was that we could map onto the Healthy People 2010 initiative from our Department of Health and Human Services. Every 10 years, it comes up with a set of objectives - this time cutting saturated fat intake by 15 per cent. Now if you do the math, one day a week without saturated fat from animal sources is about 15 per cent.

And the other reason is that because of subsidies and other factors, we don't capture the externalities in the true cost of things. Meat is a particularly good example of where we don't capture the true costs - environmental degradation - and price that in.

But you're up against huge sums of money?

Yes, and it's not just the subsidies. Around $34 billion a year is spent by the food and beverage industry on marketing to the American population. By contrast, the social marketing budget of the National Cancer Institute for its big Five-a-Day campaign, promoting five servings of fruit and vegetables a day, was $2 million.

In such an unequal fight, leverage must be important...

That's right. So the idea of Meatless Monday is to get something that is catchy, that people will remember. What we've really learned from promoting health education is that frequent simple messages work much better than complicated ones. Or, sadly, than talking about the plight of the developing world.

But you're not going to get anywhere unless you join up with activists, are you?

Right. And we have joined up with a group in New York that is actually where the Meatless Monday campaign is based. We're providing the kind of scientific validation, and we have staff at the centre who vet the recipes on the Meatless website. And the site (www.meatlessmonday.com) has been specially designed to make it very accessible for everyone - bright and jazzy. We also work closely with the Global Resource Action Center for the Environment in New York, and they've been involved with doing a cartoon called The Meatrix.

Like The Matrix?

Yes, but it's making the point about industrial animal production in the US through a spoof of the film. It's won lots of awards - and does a great job of raising the issues in a way people can relate to.

This hints at the dark side of animal production...

Yes, it can get quite dark. We've got a couple of studies going on with the chicken industry following hurricane Floyd. In all of the big hog farms in North Carolina, their open septic pools were flooded out by the hurricane. Twenty-three of the 26 river systems in North Carolina were polluted with animal waste run-off from the hog industry. There are 11 million hogs in North Carolina and there are 7.5 million people, and each hog produces about five times the waste of one human.

Are things improving at all? How many animals are killed in the US?

We now have a population of 286 million, and we kill and consume 9 billion animals a year, 35 million head of cattle, 100 million hogs and 8 billion chickens and turkeys. In terms of total meat consumption, the average American male consumes twice what the US Department of Agriculture recommends, and the average American woman consumes about 1.6 times. Way above even the high meat-eating countries of Europe.

So what does meat do to you?

No matter how lean the cut of meat you still take in saturated fat, and the saturated fat content of the American diet is much, much higher than it should be. The cholesterol story and the saturated fat story have been around a long time, and the meat industry says that for 30 or 40 years they have been breeding leaner cattle. But when they talk about lean cuts of meat, they don't acknowledge the vast quantities of beef consumed that is in the form of hamburger, and that typically has about 50 per cent fat. In fact, they take the meat that is not used for steaks and chucks and things like that, the part that raises concerns about BSE. Some of that meat is actually quite lean, but then they take some of the trimmed fat, grind it up and add it back to the meat so that the beef patty in McDonalds or Wendy's or Burger King will retain some moisture and juices because a very lean patty ends up being pretty dry.

That sounds rather contradictory!

You have them talking out of both sides of their mouth. On the one hand the industry says: "But you can have a 3-ounce portion of lean beef and it has fewer calories, fewer fat calories than lots of other things." But if you go to an American restaurant, and they came out with the 3-oz serving, it would be about the size of a deck of playing cards. The customer would say: "Is that all I'm getting?" A typical serving is 12, 14 or 16 oz. Enormous.

But that can't be good?

Our agriculture system produces 3900 calories for every man, woman and child in the US every day, and since we only need about 2400 calories on average, what are you going to do with that excess? Well, you're going to super-size everything, and people either throw it away so there's tremendous waste or they consume it and gain waist!

Where do you shop?

My wife and I go to Whole Food and Trader Joe's in the north of Baltimore, which are good but they are more expensive. And one of the things that is a real equality issue in the US is that poor neighbourhoods like the one our school is in don't have any supermarkets at all. They rely on these little corner stores that don't have any perishables, just canned and packaged food. To get decent produce, a poor person living in east Baltimore would have to take the bus and change twice to get to another part of the city.

They'd have to be very motivated. Maybe if they knew about the other health effects of eating meat?

Well, maybe. Another big problem with eating a lot of animal fats is the organic pollutants that travel in the fatty layer of tissues. So dioxins, PCBs and pesticides end up in the food supply. About 30 per cent of animal feed for hogs and beef is recycled animal fat. And then there are endocrine disrupters, hormones and growth promoters used in the beef industry and increasingly in some of the other animal products. We need a lot more data, but what is emerging suggests that these endocrine disrupters play a role in everything from lowering the age of menarche to explaining the continued increase in breast cancer compared with other cancers.

What about food poisoning?

We have about 75 million cases of food-borne diarrhoeal disease in the US each year. And 75 million cases out of 286 million Americans is quite a lot.

Do these problems with meat-eating show up anywhere else?

Leaving aside the epidemic of obesity, Americans were once the tallest and leanest people in the world and now we are collectively getting shorter too.

Shorter?

There's a lot of speculation but part of it must be lower nutritional values. This is not unlike what happened in the past. Take my uncle, who grew up in the Rhondda Valley in south Wales and was barely 5 feet tall. He was a conscientious objector in the first world war and served in the ambulance corps. The average enlisted man in the British army was four inches shorter than the average officer. My father was the tallest in his family at 5 foot 3 inches, and my older brother is the same height as me - 6 foot - so in high school we had to endure all these jokes about the tall milkman because they would see my brother and me with our parents!

But now Americans are getting shorter?

We may be in the midst of stepping back, of seeing collectively some of the real manifestations of a degraded American diet.

What's it like trying to get the message across to government officials?

I recently chaired a panel at the Institute of Medicine on dioxin in the food supply. It was sponsored, as most of the National Academy of Science's Institute of Medicine things are, by the US Department of Agriculture; the Food and Drug Administration; the Environmental Protection Agency, and the Agency for Toxic Substances and Disease Registry of the Centers for Disease Control. And when we met seven or eight of the people from these agencies and told them what we were going to say in advance of the press conference, the EPA and the ATSDR people were fine, the FDA was a bit more concerned but USDA was really unhappy.

Why?

They have this totally untenable situation where part of their job is to make recommendations to the American people about diet and the other is to promote the US agricultural sector. They were very, very concerned that we were going to make some recommendations that would create huge political problems for them.

Did you?

One of the things we said was that school lunches needed to be dramatically altered to reduce the animal fat served to school-aged children because that is where the dioxins and other chemicals are accumulating - and nothing has happened yet.

How much meat do you eat?

I would say on average in a typical week we would end up having fish once and then chicken about once in two weeks and I can't even remember the last time that beef or pork was prepared.

CURIOUS MINDS: HOW A CHILD BECOMES A SCIENTIST

http://www.edge.org/books/curious_index.html

A desculpa, Miguel Poiares Maduro, DN 040818

A desculpa
Miguel Poiares Maduro


http://www.fd.unl.pt/web/faculdade/cdocente/2003-2004/0033/docente.htm

Quando visito um país estrangeiro procuro ler os jornais locais. Acho que é um misto de curiosidade (uma forma de combater a síndroma do turista: visitar sem ficar a conhecer) e de me fazer sentir em casa lá fora.

Imaginem o meu espanto quando, há poucas semanas, encontrando-me no Sri Lanka de férias, abro um jornal (The Island) ao pequeno-almoço e deparo com o seguinte título: Portugal e Sri Lanka: Tempo para um pedido de desculpas e reconciliação! Para aqueles que não sabem, importa começar por dizer que os portugueses foram os primeiros colonizadores europeus do Sri Lanka (entre 1505 e 1656, Ceilão nessa altura). Aparentemente, não deixámos boas recordações_ Nos livros de História do Sri Lanka somos retratados como os mais brutais dos povos colonizadores da ilha (a nós seguiram-se os holandeses e os britânicos). Nada de mais distante da imagem que temos de nós próprios enquanto povo colonizador. Eu à espera de ser recebido com retratos do Eusébio e fado cantado em cingalês ou tâmil e quase que me deparo com um cartaz a dizer: Portuguese go home!

Em geral, concebemos a nossa colonização como mais aberta e pacífica que a dos outros povos europeus. A nossa construção pública da História e da nossa identidade colectiva apresenta-nos como um povo colonizador amigo dos colonizados e o que melhor foi aceite e melhor se comportou para com os povos locais. Naquele título de jornal encontrei todo o contrário da nossa identidade colectiva enquanto povo colonizador. Confesso que já suspeitava que algo podia ser falso na construção da nossa História colonial. Na verdade, sei que aquilo que dizemos de nós e, por oposição, dos outros povos colonizadores, estes dizem ao contrário. Holandeses, britânicos e espanhóis também se crêem os colonizadores da bondade. Para eles, são os outros (como nós) os sanguinários.

Deste jogo de espelhos da identidade colectiva dos povos europeus resulta que existe muito de possivelmente falso na reconstrução da História colonial e na sua ligação à identidade colectiva nacional de cada povo europeu. Mas que a História tem tanto de construção como de descrição já eu sabia. E pouco me importa, nesta circunstância, saber que os outros também reinventam a sua História.

A identidade colectiva tem muito de emocional e mitológico. Aquilo que mantém um povo unido não pode ser objecto de constante renegociação e discussão sob pena de a própria existência enquanto povo ser questionada. Mas isto produz não apenas paradoxos históricos (é engraçado que Portugal e Espanha partilhem o mesmo herói fundador: Viriato_) mas uma inversão na lógica da identidade colectiva: ela existe não tanto em função da sua fidelidade ao nosso passado, mas sim em função da sua capacidade para garantir um futuro colectivo (para nos manter unidos enquanto povo). O risco inerente a esta construção da identidade colectiva é que a falta de reflexão crítica sobre a mesma nos leve não apenas a deturpar as nossas relações com os outros mas, igualmente, a cristalizar a nossa identidade no tempo. Neste sentido, parece-me existir no discurso público português uma enorme falta de sentido crítico face à nossa própria História. Em Portugal, a nossa História não se discute, ela é antes um ideal a que constantemente se faz apelo para criticar o presente e prometer o futuro.

Mas será que podemos fazer um juízo sobre a nossa História, em particular sobre a nossa História colonial? A História conta-se ou é julgada? Esta questão não é nova no quadro das relações entre potências coloniais e povos colonizados. Que sentido faz julgar hoje o que se passou há 500 anos? Será possível e legítimo avaliar à luz dos critérios morais actuais o comportamento de há 500 anos?

Por vezes, a responsabilidade do colonizador parece servir apenas para desresponsabilizar os actuais governantes das ex-colónias (uma espécie de tese do pecado original: a colonização seria responsável de todos os males e para sempre destinaria esses povos à miséria e sub-desenvolvimento). Neste caso, o que se procura não é um pedido de desculpas mas uma desculpa para as responsabilidades próprias. É outra forma de instrumentalizar a História.

Por outro lado, a responsabilidade histórica não prescreve. A justificação da História não deve servir para justificar e isentar de juízos todas as histórias na nossa História. Há episódios que nos enchem de orgulho e outros que, se calhar, nos envergonham. Reconhecermos ambos não é um juízo histórico mas uma responsabilidade presente. Será essa a desculpa que devemos ao Sri Lanka? Ao assumirmo-nos como povo, adoptamos uma identidade colectiva e por ela devemos sentir-nos responsáveis. Não temos que pedir desculpa pela nossa História mas temos de ter um sentido crítico perante ela.

Blogues

Prémio terapia de grupo O grupo de hard rock Metallica filmou em documentário o processo de desintoxicação alcoólica e de recuperação psicológica e (parece-me_) psiquiátrica dos seus membros ao mesmo tempo que produziam o seu novo álbum. Eis mais um exemplo de eliminação da fronteira entre realidade e ficção, entre espectador e participante. É um documentário autobiográfico? Um documentário musical? Um filme terapêutico? O objectivo é mostrar o processo de cura ou é o próprio documentário parte desse processo? Somos espectadores ou instrumentos da terapia? Quando a realidade é encenada e editada, ainda é realidade? Numa entrevista ao New York Times, o líder dos Metallica veio afirmar que afinal o terapeuta também tinha os seus problemas e que tinha procurado manter o grupo no processo terapêutico mesmo quando este já não seria necessário_ O problema de eliminar a fronteira entre a realidade e a ficção é que a ficção pode tomar conta da realidade!

na roça com os tachos O programa de culinária mais interessante dos últimos anos na televisão portuguesa vem de São Tomé e Príncipe, passa na RTPI e chama-se Na Roça com os Tachos. Um apresentador divertido e com o necessário sentido lúdico da cozinha e do contexto em que ela tem lugar passeia-se com os tachos às costas pelas roças são-tomenses preparando pratos de acordo com os produtos locais. É verdade que, por vezes, as inovações gastronómicas propostas suscitam algumas dúvidas mas este programa está a anos-luz do tédio que domina os programas gastronómicos da televisão portuguesa, onde um qualquer chefe ou dona(o) de casa enumera ingredientes e reproduz receitas com o mesmo interesse e entusiasmo com que se repete a tabuada na escola primária. E, já agora, se querem ver como se podem fazer programas de culinária bem interessantes e divertidos vejam os exemplos da BBC que passam no People & Arts. Os ingleses podem não saber cozinhar mas sabem fazer televisão!

A Short History of Nearly Everything Outra coisa em que, infelizmente, os ingleses nos superam largamente é num género literário praticamente abandonado em Portugal: a literatura de viagens. Um dos mestres é Bill Bryson, que recentemente se dedicou a escrever algo diferente: uma história científica do mundo. O sentido de humor e a honestidade e curiosidade intelectual de Bill Bryson transformam este livro numa notável e divertidíssima introdução à ciência. Alguém o devia traduzir imediatamente para português e torná-lo leitura obrigatória nas escolas secundárias: os alunos agradeceriam e a sua leitura iria fazer mais pela educação científica em Portugal do que qualquer reforma do sistema educativo!