Sunday, January 09, 2005

Cultura e Civilização Por JOSÉ PACHECO PEREIRA

Público
Quinta-feira, 06 de Janeiro de 2005

O terrorismo dos nossos dias está a dar origem a um retorno a uma identidade "ocidental", diluída desde os anos 50 do século passado. (As palavras serão usadas no seu sentido corrente, o que implica alguma simplificação que não prejudica a compreensão do que se pretende dizer.) Este processo tem a ver com as características do terrorismo contemporâneo, que junta várias componentes. Estas, em conjunto, actuam de modo novo, dando origem a um terrorismo cultural com uma forte motivação político-religiosa, o que lhe dá uma componente civilizacional transpolítica. Os inimigos a abater não são os agentes, os responsáveis por uma política, ou uma religião, não é uma Igreja, nem um Estado, não são militares, nem polícias, mas todos, os civis, os "outros" - nós.


A possibilidade desse terrorismo poder aceder a armas de destruição maciça dá-lhe uma dimensão apocalíptica, sem comparação com grupos terroristas do passado. Já não se trata de poder destruir uma "cidade", mas a humanidade, já não é apenas Jerusalém que é arrasada, ou Atenas colocada à mercê dos persas, ou Roma ocupada pelos godos - é a humanidade que pode soçobrar num apocalipse biológico ou nuclear. "Nós gostamos da morte", dizem os apoiantes da Al-Qaeda, "e por isso vamos vencer os que 'gostam da vida'". Guerra das civilizações no seu preciso, completo, global sentido, muito para além das definições de Samuel Huntington, porque travada fora dos Estados por indivíduos e grupos sem preocupações de ganhos de catequese, conquista ou território. Se puderem matar milhões, matam milhões.


O reforço da identidade "ocidental" (eu sei que a palavra é ambígua, mas serve como descrição para o sistema de tradições e valores oriundo da raiz greco-latina e cristã da história europeia e americana) é uma reacção a esta ameaça de destruição e pode voltar a ligar duas entidades que se tinham cindido quase completamente há cerca de 50 anos: a cultura e a civilização "ocidentais", na sua história e na sua dinâmica. O que é que significou este separar da cultura e da civilização? Significou isolar os elementos materiais da nossa tradição cultural e do nosso modo de vida dos seus elementos morais, do sistema de valores que ela gerou na sua longa história de quase 2500 anos. Podemos ir ver os Fra Angélico ou os Picasso aos museus, mas não podemos dizer que o nosso sistema político e as nossas leis são melhores para viver a nossa terrestre curta vida em felicidade. Esqueceu-se a noção de que, sob a égide da civilização associada a esse património cultural, os homens viviam melhor. "Melhor" passou a palavra proibida, comparar não se podia fazer, só se podia relativizar.


Na prática ignorou-se os valores adquiridos da tradição "ocidental", num complexo de culpa autocrítica que deitou fora o menino juntamente com a água do banho. Foi um processo lento que atravessou quase cem anos de história das ideias, desde meados do século XIX até ao pós-II Guerra Mundial. Não foi um processo sem contradições, em que muitas vezes se geravam efeitos antagónicos. Teve na sua génese alguns subprodutos do Iluminismo e da Revolução Francesa. Acelerou-se com o "internacionalismo" da Associação Internacional dos Trabalhadores, embora Marx fosse um apologista do papel civilizacional do capitalismo, para criar um efeito de "globalização" que abrisse caminho à revolução universal, não se lhe conhecendo especiais simpatias multiculturalistas. Do mesmo modo, o leninismo manteve uma ambivalência cultural entre as suas componentes "orientais" despóticas e a muito ocidental admiração pelo progresso técnico e científico, pela "electricidade" e pelo sistema Taylor.


É com a crise interior do marxismo, afectando o sistema mundial do poder soviético, que se abre caminho para uma visão dominantemente anticolonialista, nos anos de Krutchov. O aparecimento dos movimentos anticolonialistas, movimentos das elites educadas dos países coloniais e a sua progressiva generalização durante a segunda parte do século XX teve então um papel decisivo. Por ironia da história, quer o nazismo, em certas zonas de influência no Médio Oriente, quer a expansão japonesa e os movimentos de rebelião por ela instigados na área asiática do império britânico, deram origem a movimentos nacionalistas contestando a "hegemonia do homem branco". Os comunistas chineses, vietnamitas e indonésios, aliados a nacionalistas como Sukarno, conseguiram na Conferência de Bandung abrir um novo ciclo anticolonial e anti-imperialista que se veio revelar vitorioso em quase todas as antigas colónias europeias. A Europa perdeu as suas colónias e duvidou do seu papel histórico universalista.


O papel dos intelectuais ocidentais foi considerável em criar o clima favorável para uma consciência de culpa face à "civilização", um complexo que não abrangia apenas os aspectos historicamente cruéis da colonização, mas que ia mais longe e atribuía uma maldade essencial a todo o processo da história das nações europeias nos últimos dois séculos. As suas ideias, reverberando em muitos dirigentes nacionalistas do Terceiro Mundo, tornaram-se a vulgata de uma série de instituições internacionais que se foram construindo na base do relativismo global, ideologia oficiosa da ONU e da UNESCO. Considerava-se todo o património cultural e civilizacional da humanidade idêntico, independentemente do seu significado para além do folclore, ou da sua história concreta, acreditando-se no mito do "diálogo" das culturas. Uma cultura para ser igualitária e se abrir ao multiculturalismo não podia ter "adquiridos", em particular adquiridos civilizacionais que suscitassem comparação, hierarquia ou condenação. A aplicação destas ideias fazia-se essencialmente contra a tradição do "ocidente", no combate ao "europocentrismo" e ao "americanismo", nunca ninguém se perguntando se outras tradições culturais e civilizacionais pretendiam "dialogar" entre si, como se dizia nos colóquios da UNESCO. Ideias poderosas da nossa tradição civilizacional como o primado da lei, da democracia política e dos direitos humanos ganhavam uma interpretação multicultural e adjectivada e passavam a ser mera retórica vazia.


O "olimpianismo", a que já me referi noutro texto, imperou nas relações internacionais e com ele um cortejo de duplicidades, omissões e silêncios. As omissões sucediam-se umas às outras: não se falava da "sharia", para não ofender os muçulmanos, evitava-se falar da corrupção dos novos governos africanos, porque isso vilipendiava as "novas nações" e significava uma ingerência inadmissível dos antigos países colonizadores. É a linguagem com que a ONU defronta nos dias de hoje o genocídio de Darfur no Sudão, para não ofender a Liga Islâmica.


Havia uma versão ainda pior destes silêncios e omissões: falava-se de todas essas violências, mas a culpa era do colonialismo, do imperialismo. Havia tortura institucionalizada e castigos corporais em Moçambique? A culpa era da colonização portuguesa, que tinha tornado inevitáveis esses hábitos. Os chineses executavam em massa e com julgamentos fantoches? Havia que aceitar as excepções culturais e a soberania chinesa e não "impor" a democracia. Havia mutilações de membros, lapidações, chicotadas nos países que aplicavam a "sharia"? A culpa era dos regimes reaccionários clientes dos EUA por causa do petróleo. O antiamericanismo tornou-se progressivamente a forma desta recusa civilizacional. Os McDonalds e a Coca-Cola pagaram o preço de serem soluções universais de consumo barato e com sucesso, e ícones da economia e do espírito prático americano.


Embora todas estas tendências continuem o seu poderoso caminho no sistema comunicacional e universitário das democracias, pode perceber-se que já tiveram melhores dias. O terrorismo apocalíptico, com a sua ameaça global de destruição civilizacional, levou ao reforço da nossa identidade. Esse reforço existe nos EUA, onde muitas vezes é interpretado somente como uma emergência da "América dos valores" religiosa. Existe também na Europa, embora em menor grau. Infelizmente esse reforço também se dá através do recrudescimento do racismo e da xenofobia, soluções tipicamente europeias aos problemas de identidade ameaçada das massas populares. É um movimento ainda inicial e é difícil dizer para onde vai e como vai lá chegar, mas sem recosermos de novo a cultura, a história, o modo de vida, os sistemas políticos, a democracia, a liberdade, a tolerância, com um sentido civilizacional universalista, o futuro não será brilhante.


Historiador

Friday, January 07, 2005

Educação e sistema educativo jogo de contradições Por Margarida Marrucho Mota Amador

Educação e sistema educativo jogo de contradições Por Margarida Marrucho Mota Amador
Directora Pedagógica Colégio Sagrado Coração de Maria/Lisboa

DN, 7 Janeiro 2004



Para muitos, a educação é uma paixão. Já ouvimos esta frase na boca de muitos dos nossos políticos de ontem e de hoje. Mas porque será que não dizem antes «Ensinar é uma paixão?» Talvez porque ensinar é muito mais redutor e finito, enquanto educar pressupõe uma alteração de comportamentos e ideais, que só um trabalho continuado e perfeitamente delineado pode produzir. É através da educação que se mudam as sociedades, é o trabalho que produz frutos mais duradouros, que passam de geração em geração.

Para que esta missão se torne uma realidade é precisa uma visão alargada do mundo e definir muito claramente os objectivos a atingir a curto, a médio e a longo prazo. O que querem os nossos governantes (e candidatos a governantes) para o nosso país? Será que conseguimos vislumbrar? Será que nesta era da comunicação conseguimos perceber o porquê de algumas alterações curriculares recentes? Efectivamente causa alguma perplexidade

a) A abolição das planificações por objectivos e o reinado das competências;

b) A introdução de áreas curriculares não disciplinares, sendo elas área de projecto, estudo acompanhado e formação cívica, sem nenhuma orientação curricular oficial, concorrendo desenfreadamente as editoras por fazer livros atractivos que possam ser adoptados por docentes com pouca formação para ocuparem esses tempos lectivos que lhes são destinados;

c) A criação da disciplina de Técnicas de Informação e Comunicação como um fim em si e não como uma ferramenta a ser constantemente actualizada e ao dispor de todos.

Será que conseguimos compreender isto? Mas, afinal, o que querem de nós, profissionais da educação, que, sem qualquer falsa modéstia, temos o pensamento dos nossos futuros governantes nas mãos?

Chegou a hora de clarificar e traçar caminhos. De que servem as competências sem conteúdos? E como avaliar competências? Como pode a mesma competência ser utilizada em saberes diferentes? E, aqui, será avaliada de maneiras diferentes? De que servem as áreas de projecto sem interdisciplinaridade? De que serve o Estudo Acompanhado, se cada aluno tem o seu ritmo? Será que nada é deixado para o trabalho individual?

Autonomia e responsabilidade. O que é isso? Fala-se muito de autonomia dos alunos, dos docentes, das escolas.... Será que ainda não perceberam que autonomia não é apenas fazer por sua conta, mas antes de mais fazer bem feito por sua conta e que essa é a causa de maior responsabilidade? Mas então porquê o Estudo Acompanhado?

Pedir a docentes sem formação específica que orientem o estudo de cada aluno de uma turma, cada um com um ritmo diferente, com necessidades diferentes e que requerem avaliações diferentes, é certamente tarefa para super-homens. E ainda nos pedem para sermos justos! Mas será isto possível? E a Formação Cívica? Será que todos sabemos o que se passa naquela que deveria ser a área mais importante do currículo? Sem contarmos com os módulos sobre regras de trânsito ou a Constituição da República. Não deveria ser aqui que se discutiriam muitas das regras a adoptar para a vida?

Ainda a propósito da autonomia, como podem as escolas querer conquistar a sua autonomia, quando esta se constrói com as pessoas que as habitam todos os dias, alunos, docentes e não docentes, em que os segundos passam todo um ano lectivo a pensar onde irão estar no próximo ano, e se vale a pena ou não misturar o seu projecto de vida com o daquelas crianças e adultos? Esta angústia é mais premente no ensino público, mas também afecta as escolas privadas. De que forma? Por exemplo, quando se contrata um professor, que não foi colocado no ensino público e que dado o seu número nas listas, não o espera ser durante aquele ano, e repentinamente é colocado, a 350 quilómetros de distância. O referido professor ou aceita a colocação ou no próximo ano não poderá concorrer. Como no ensino privado não tem garantias de ficar a leccionar para o próximo ano, o melhor é aceitar mesmo a nova colocação na escola pública. A escola privada, que quer a estabilidade do corpo docente, lá tenta procurar um outro docente que não tenha concorrido sequer, para não lhe acontecer de novo a mesma situação! São os efeitos colaterais da guerra das colocações de professores!

E por falar em colocação de professores, não deveriam ser as escolas a escolher os seus professores, para melhor concretizar o seu projecto educativo?

Isto para já não falar na lenta asfixia de algumas escolas que sobrevivem devido aos contratos simples e de desenvolvimento. Como podemos lutar por um sistema educativo livre e ao dispor de todos os cidadãos, em que às escolas subsidiadas pelo Estado lhes são retirados alunos para as escolas públicas mais próximas, mesmo que estas sejam a umas dezenas de quilómetros de distância do local de residência dos alunos? Será que os encarregados de educação não poderão de uma vez por todas aderir ao projecto educativo da escola que mais conveniente lhes parecer para os seus filhos? É esta a nossa liberdade de educação? Porque não pode o Estado subsidiar famílias de baixos recursos económicos em escolas que não sejam suas, em vez de os querer a todo o custo nas suas escolas? Será o mais justo? Será um bom exemplo educativo de liberdade?

Será que não deviam os nossos governantes (e candidatos a governantes) tentar perceber porque são as escolas particulares cada vez mais procuradas, e contraditoriamente existindo uma situação económica difícil para grande número de famílias? Como vão os encarregados de educação pagar as mensalidades? Mas, afinal, o que procuram os pais, quando escolhem uma escola privada para os seus filhos? Segurança, ocupação dos tempos lectivos e não lectivos e um projecto educativo que garanta a integral educação dos seus filhos. Os muitos pais que fazem o impossível para poderem dar aos seus filhos o mínimo de estabilidade deveriam constituir uma fonte de preocupação e interesse por parte do Estado.

Como poderá o Estado subsidiar as famílias e assim dar corpo à certeza de uma educação de qualidade para todos? Sim, porque a maioria dos encarregados de educação do nosso país preocupa-se com uma educação de qualidade e não com uma qualquer ocupação diária num sítio a que alguns chamam escola.

E depois disto tudo ainda nos falam de rankings! Todos os que fazemos da educação o nosso dia-a-dia percebemos, há muito tempo, que não existe melhor ranking do que ver os nossos alunos com o seu futuro encaminhado, seja na faculdade, no politécnico ou no técnico- -profissional. Que as pequenas grandes vitórias que alcançam para eles próprios são ganhos para a própria escola, que o acompanhamento do seu crescimento físico, emocional, psicológico e de personalidade é motivo de orgulho e satisfação para todos os que trabalham com eles e que por eles se entregam todos os dias. Nenhum destes itens é mensurável quantitativamente em notas de exame. Para quantas escolas por este país fora não são mais importantes os valores humanos e os progressos como cidadãos em detrimento de classificações de exames?

Iniciamos neste ano lectivo a revisão curricular do ensino secundário, continuamos na expectativa da morte à nascença ou da vida longa para os exames de 9.º ano, agora que se aproximam eleições e, consequentemente, as regras do jogo poderão mudar em breve. Mas será aceitável alterar as regras do jogo depois dele ter começado? Não mereceria todo o sistema educativo alguma paz, estabilidade e acalmia? Não chegará já de mudanças? Será que alguém consegue viver em permanente mudança?

Por muitas reformas ou revisões curriculares que sejam propostas e pedidas, elas só se concretizam se os professores as tomarem como suas e as puserem em prática efectivamente e afectivamente e não só formalmente, ou será que já se esqueceram da área-escola?

Parece-me que antes de chegarmos à revisão curricular já em curso no ensino secundário, devia o ensino básico ser objecto de especial atenção, pois é através dele que sedimentamos certezas, convicções, autonomia, responsabilidade e personalidades fortes, determinadas e em- preendedoras, compreendendo e aceitando as imperfeições daqueles que os rodeiam e, consequentemente, ambicionando uma sociedade que favoreça o desenvolvimento em prol da natureza humana.

É no ensino básico que a preocupação em conseguirmos educar cidadãos de pensamento livre e críticos intervenientes e construtivos ganha especial importância numa so- ciedade de informação e não de formação e onde o que preocupa um número significativo de pais é manter os seus filhos ocupados e satisfeitos, sem darem conta da necessidade imperiosa do tempo livre para a formação da personalidade das crianças e jovens, quando o simples e contínuo acto de pensar toma o lugar de toda e qualquer actividade? E a preparação para lidar com as frustrações e perdas futuras, que constituem as pequenas negações e contradições diárias? Estarão as nossas crianças preparadas para lidar com pequenos contratempos, ou à primeira negação lá vêm a depressão, o psicólogo, o psiquiatra e as drogas? A aceitação do mundo como imperfeito, que precisa do nosso trabalho e investimento, levará à criação de jovens trabalhadores e empreendedores, com objectivos determinados, utilizando as competências necessárias para fazer a sociedade evoluir.