Público
Quinta-feira, 06 de Janeiro de 2005
O terrorismo dos nossos dias está a dar origem a um retorno a uma identidade "ocidental", diluída desde os anos 50 do século passado. (As palavras serão usadas no seu sentido corrente, o que implica alguma simplificação que não prejudica a compreensão do que se pretende dizer.) Este processo tem a ver com as características do terrorismo contemporâneo, que junta várias componentes. Estas, em conjunto, actuam de modo novo, dando origem a um terrorismo cultural com uma forte motivação político-religiosa, o que lhe dá uma componente civilizacional transpolítica. Os inimigos a abater não são os agentes, os responsáveis por uma política, ou uma religião, não é uma Igreja, nem um Estado, não são militares, nem polícias, mas todos, os civis, os "outros" - nós.
A possibilidade desse terrorismo poder aceder a armas de destruição maciça dá-lhe uma dimensão apocalíptica, sem comparação com grupos terroristas do passado. Já não se trata de poder destruir uma "cidade", mas a humanidade, já não é apenas Jerusalém que é arrasada, ou Atenas colocada à mercê dos persas, ou Roma ocupada pelos godos - é a humanidade que pode soçobrar num apocalipse biológico ou nuclear. "Nós gostamos da morte", dizem os apoiantes da Al-Qaeda, "e por isso vamos vencer os que 'gostam da vida'". Guerra das civilizações no seu preciso, completo, global sentido, muito para além das definições de Samuel Huntington, porque travada fora dos Estados por indivíduos e grupos sem preocupações de ganhos de catequese, conquista ou território. Se puderem matar milhões, matam milhões.
O reforço da identidade "ocidental" (eu sei que a palavra é ambígua, mas serve como descrição para o sistema de tradições e valores oriundo da raiz greco-latina e cristã da história europeia e americana) é uma reacção a esta ameaça de destruição e pode voltar a ligar duas entidades que se tinham cindido quase completamente há cerca de 50 anos: a cultura e a civilização "ocidentais", na sua história e na sua dinâmica. O que é que significou este separar da cultura e da civilização? Significou isolar os elementos materiais da nossa tradição cultural e do nosso modo de vida dos seus elementos morais, do sistema de valores que ela gerou na sua longa história de quase 2500 anos. Podemos ir ver os Fra Angélico ou os Picasso aos museus, mas não podemos dizer que o nosso sistema político e as nossas leis são melhores para viver a nossa terrestre curta vida em felicidade. Esqueceu-se a noção de que, sob a égide da civilização associada a esse património cultural, os homens viviam melhor. "Melhor" passou a palavra proibida, comparar não se podia fazer, só se podia relativizar.
Na prática ignorou-se os valores adquiridos da tradição "ocidental", num complexo de culpa autocrítica que deitou fora o menino juntamente com a água do banho. Foi um processo lento que atravessou quase cem anos de história das ideias, desde meados do século XIX até ao pós-II Guerra Mundial. Não foi um processo sem contradições, em que muitas vezes se geravam efeitos antagónicos. Teve na sua génese alguns subprodutos do Iluminismo e da Revolução Francesa. Acelerou-se com o "internacionalismo" da Associação Internacional dos Trabalhadores, embora Marx fosse um apologista do papel civilizacional do capitalismo, para criar um efeito de "globalização" que abrisse caminho à revolução universal, não se lhe conhecendo especiais simpatias multiculturalistas. Do mesmo modo, o leninismo manteve uma ambivalência cultural entre as suas componentes "orientais" despóticas e a muito ocidental admiração pelo progresso técnico e científico, pela "electricidade" e pelo sistema Taylor.
É com a crise interior do marxismo, afectando o sistema mundial do poder soviético, que se abre caminho para uma visão dominantemente anticolonialista, nos anos de Krutchov. O aparecimento dos movimentos anticolonialistas, movimentos das elites educadas dos países coloniais e a sua progressiva generalização durante a segunda parte do século XX teve então um papel decisivo. Por ironia da história, quer o nazismo, em certas zonas de influência no Médio Oriente, quer a expansão japonesa e os movimentos de rebelião por ela instigados na área asiática do império britânico, deram origem a movimentos nacionalistas contestando a "hegemonia do homem branco". Os comunistas chineses, vietnamitas e indonésios, aliados a nacionalistas como Sukarno, conseguiram na Conferência de Bandung abrir um novo ciclo anticolonial e anti-imperialista que se veio revelar vitorioso em quase todas as antigas colónias europeias. A Europa perdeu as suas colónias e duvidou do seu papel histórico universalista.
O papel dos intelectuais ocidentais foi considerável em criar o clima favorável para uma consciência de culpa face à "civilização", um complexo que não abrangia apenas os aspectos historicamente cruéis da colonização, mas que ia mais longe e atribuía uma maldade essencial a todo o processo da história das nações europeias nos últimos dois séculos. As suas ideias, reverberando em muitos dirigentes nacionalistas do Terceiro Mundo, tornaram-se a vulgata de uma série de instituições internacionais que se foram construindo na base do relativismo global, ideologia oficiosa da ONU e da UNESCO. Considerava-se todo o património cultural e civilizacional da humanidade idêntico, independentemente do seu significado para além do folclore, ou da sua história concreta, acreditando-se no mito do "diálogo" das culturas. Uma cultura para ser igualitária e se abrir ao multiculturalismo não podia ter "adquiridos", em particular adquiridos civilizacionais que suscitassem comparação, hierarquia ou condenação. A aplicação destas ideias fazia-se essencialmente contra a tradição do "ocidente", no combate ao "europocentrismo" e ao "americanismo", nunca ninguém se perguntando se outras tradições culturais e civilizacionais pretendiam "dialogar" entre si, como se dizia nos colóquios da UNESCO. Ideias poderosas da nossa tradição civilizacional como o primado da lei, da democracia política e dos direitos humanos ganhavam uma interpretação multicultural e adjectivada e passavam a ser mera retórica vazia.
O "olimpianismo", a que já me referi noutro texto, imperou nas relações internacionais e com ele um cortejo de duplicidades, omissões e silêncios. As omissões sucediam-se umas às outras: não se falava da "sharia", para não ofender os muçulmanos, evitava-se falar da corrupção dos novos governos africanos, porque isso vilipendiava as "novas nações" e significava uma ingerência inadmissível dos antigos países colonizadores. É a linguagem com que a ONU defronta nos dias de hoje o genocídio de Darfur no Sudão, para não ofender a Liga Islâmica.
Havia uma versão ainda pior destes silêncios e omissões: falava-se de todas essas violências, mas a culpa era do colonialismo, do imperialismo. Havia tortura institucionalizada e castigos corporais em Moçambique? A culpa era da colonização portuguesa, que tinha tornado inevitáveis esses hábitos. Os chineses executavam em massa e com julgamentos fantoches? Havia que aceitar as excepções culturais e a soberania chinesa e não "impor" a democracia. Havia mutilações de membros, lapidações, chicotadas nos países que aplicavam a "sharia"? A culpa era dos regimes reaccionários clientes dos EUA por causa do petróleo. O antiamericanismo tornou-se progressivamente a forma desta recusa civilizacional. Os McDonalds e a Coca-Cola pagaram o preço de serem soluções universais de consumo barato e com sucesso, e ícones da economia e do espírito prático americano.
Embora todas estas tendências continuem o seu poderoso caminho no sistema comunicacional e universitário das democracias, pode perceber-se que já tiveram melhores dias. O terrorismo apocalíptico, com a sua ameaça global de destruição civilizacional, levou ao reforço da nossa identidade. Esse reforço existe nos EUA, onde muitas vezes é interpretado somente como uma emergência da "América dos valores" religiosa. Existe também na Europa, embora em menor grau. Infelizmente esse reforço também se dá através do recrudescimento do racismo e da xenofobia, soluções tipicamente europeias aos problemas de identidade ameaçada das massas populares. É um movimento ainda inicial e é difícil dizer para onde vai e como vai lá chegar, mas sem recosermos de novo a cultura, a história, o modo de vida, os sistemas políticos, a democracia, a liberdade, a tolerância, com um sentido civilizacional universalista, o futuro não será brilhante.
Historiador
Sunday, January 09, 2005
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