Público, Quinta-feira, 26 de Agosto de 2004
Li há uns dias um artigo da Fátima Bonifácio - que julgo que ainda era aluna, quando eu já era professora - que faz um diagnóstico do "estado dos alunos" que poderia a traços largos subscrever. Como ela, penso que a questão do dinheiro não é a principal, se não falarmos em que é utilizado e como... ("Mais dinheiro para a Educação?", 15/08/04).
Mas sobre a evolução desse "estado" - que não é assim tão recente... - as causas apontadas e a sugestão dos "remédios" é que me parecem ser mais perigosas do que à primeira vista parecem e são aqueles que não levarão nunca a qualquer melhoria, nem transformação.
Quatro notas:
1. O habitual método de comparar o que já foi (ou se imagina que já foi) e o que é (ou se julga que é - sempre a partir da própria experiência noutra situação) não costuma levar muito longe. Mesmo quando se enunciam as diferenças óbvias entre os tempos, não se leva em conta nem as diferenças entre as populações escolares de então e de agora (e eu-dinossauro ainda admito que existem classes sociais...), nem o diferente papel que o sistema político atribui às escolas na sociedade actual (e eu-dinossauro ainda acredito que há ideologia e que a escola, agora de outro modo, é um "veículo de manutenção e reprodução social da ideologia dominante"...)
2. O "jogo" e o hipotético "prazer" na escola como causa da ignorância e do não-pensar , em oposição ao "esforço" e ao "sacrifício" necessário ao "saber" (qual saber? que saber? para fazer o quê com esse saber?) e ao "pensamento" tem barbas. O que talvez não tenha barbas é o "sacrifício do esforço do jogo obrigatório". Longa história, mais "moderna"... Sobre estas aparentes e falsas oposições remeto para um texto de Mário Dionísio (de há meio século...) chamado "Enfado ou prazer: problema central do ensino" (que o Rui Canário, prof. de Ciências da Educação, retomou há bem pouco tempo), onde evidentemente o autor não defende o "enfado" e onde o "esforço" não se opõe obviamente a "prazer"...
3. Tem-me sido difícil imaginar, ao longo de décadas de professora do ensino secundário oficial (ainda por cima no "centro" da capital...), a maioria dos meus alunos como "centro" da vida dos pais que terão deixado de ter vida própria (em tantos casos, alguma vez a tiveram ou virão a tê-la?) para "contentar" os filhos, etc..., nem qualquer "respeito" pela sua "personalidade", nem "antigamente" nem agora. A acontecer, seria um fenómeno digno de nota na nossa sociedade... As questões são provavelmente outras e bem mais graves: os novos modos de "ascensão social", de "sucesso" e de "selecção", o império do mercado, etc., etc., etc...
4. A lembrar ainda: as alterações relativamente recentes nas escolas e no sistema escolar que têm feito diminuir as "excepções" (sempre excepções) daqueles poucos (professores e alunos) que, das mais diferentes maneiras, foram lutando contra ventos e marés, em épocas muito diversas, dentro das próprias escolas. Se se observa que os alunos estão nas escolas "para passar" e que estudam "para a nota", também se deve observar que poucos professores há que não dêem aulas para "terem bons resultados"... Ou seja: para os alunos "passarem" e terem a décima necessária para entrarem na universidade... e eles serem considerados por isso "bons professores". O trabalho burocrático (em nome da "pedagogia") dos professores aumentou, o medo das leis e dos "inspectores" também (há quem os "avalie"..., a população escolar diminui, etc...), a "desobediência civil" (que sem este nome foi fruto de coisas muito interessantes noutras altura) é-lhes inimaginável, e os "CV" (reais ou fabricados, listas de "acções" frequentadas, etc. e tal) passaram a existir para isto ou para aquilo...
Julgo-me no direito de escrever estas linhas (inúteis e porventura enfadonhas), uma vez que:
1. Dou aulas de Português desde 1969. Sem destacamentos nem equiparações. Únicas interrupções no trabalho lectivo: um ano sabático (suponho que as centenas de páginas de um trabalho de comparação dos programas de Português desde a I República até aos anos 90 em todos os graus de ensino e um pouco com os programas actuais de língua materna em França e em Inglaterra deve ter ido para o lixo...); de há três anos para cá, em resultado de uma doença (mas continuo "ao serviço"). Ou seja: tenho quatro anos de experiência de escolas "marcelistas", de uns anitos de PREC e de duas décadas de "actualidade", que começou nos anos 80.
2. Fui co-autora de muitas antologias de textos de Português (para vários graus) que introduziram nas aulas autores que até então não eram "escolares" (e alguns ficaram). Fui co-autora de programas de Francês para o ensino complementar (antes do 25 de Abril e tenho a alegria de ver que o "Silence de la Mer" do Vercors ainda se passeia pelos programas...). Fui co-autora dos primeiros programas de "Iniciação ao Jornalismo" (disciplina que já foi extinta) e de livros de textos (antes de haver "manuais"). Fui "assistente pedagógica" (orientadora de estágios...) e desisti quase logo a seguir ao 25 de Abril, porque achei que havia coisas mais interessantes para fazer.
3. Deixei de dar Francês quando o Inglês passou a ser "a" língua e os queijos, os perfumes, os vinhos e os cantores da moda ficaram no centro da matéria. Deixei de dar "Iniciação ao Jornalismo", quando a disciplina mudou de rumo e passou a ser ministrada por jornalistas (que se orientavam por "manuais"). Passei há uns anos para o ensino nocturno (e fui parar depois ao recorrente por unidades "capitalizáveis"!), quando alunos "do dia" me começaram a sugerir que "ditasse apontamentos"... e outros que não sabiam ainda escrever "normalmente" (quase no fim do curso secundário) tinham 19 valores em Jornalismo... Deixei o ensino nocturno, porque foi extinto - por desnecessário - na minha escola. Recusei-me sempre a ensinar 12º ano, porque seria "com enfado" que daria aquele programa, porque nunca "prepararia bem os alunos para exame" e porque com outros professores eles teriam mais hipóteses de entrarem na universidade (o que no meu tempo se fazia com um simples 10 e com "classe social" adequada, claro...)
4. Daqui a dias terei os 36 anos de serviço na "carreira", mas não me poderei reformar, porque não tenho ainda 60 anos... Espero que não passe entretanto para 65 anos a idade mínima da reforma como medida de saneamento da economia nacional... Talvez volte ainda a dar aulas, recomeçando a "estudar" programas, que as doenças que impedem de dar aulas só são válidas por dois anos...
Eduarda Dionísio
professora do ensino secundário
Lisboa
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