DN, Sexta-Feira,
20 de Agosto de 2004
Há 30 anos, em Portugal, o poder estava nas mãos dos que haviam lido Das Kapital; hoje mandam os que frequentaram a Kapital.
Há nisto tudo uma substancial diferença: os primeiros queriam transformar o País em nome de uma ideologia, os segundos hesitam em governá-lo, por total ausência dela.
Além disso, aqueles sofriam então inflamados num mundo de miragem, estes sorriem hoje bronzeados num mundo de imagem.
A política actual deu nisto, no reino do fait divers: o primeiro-ministro não se livra dele, nem tem outro mundo em que consiga viver.
Pedro Santana Lopes dificilmente encontra um jornalista que queira dele ouvir se tem uma ideia de Estado, encontra dezenas que queiram saber onde almoça e com quem janta.
A política-espectáculo impõe as suas regras.
Sem as luzes da ribalta política, Santana sabe que não existe, sem os bastidores do teatro da política, Lopes sabe que não subsiste. Por causa disso há um exército de assessores só para a imagem. Na lógica do entretém, a vedeta só se valoriza com um corpo de baile.
Num teatro de revista em que não haja coristas, o compère não tem graça. Essa é ciência do Parque-Mayer.
Já os romanos, hedonistas antigos e antecessores dos de hoje, sabiam que não havendo pão, houvesse ao menos circo.
Por falar em festas, o ano político vem aí, este ano sem as festas de abertura dos partidos que estão no poder. Faz sentido, porque, com a central de imagem e mais os assessores de imagem, estaremos em festejos o ano todo.
Claro que quando acabar o que resta do subsídio de férias, virá o regresso ao real, do bronzeado à palidez.
No Outono, menos festivos, regressaremos todos: aqueles, homens políticos, que escolheram isto; aqueles, homens sem cara, que apoiarão isto; aqueles, homens sem nome, que sofrerão por causa disto. Para enganar estes últimos, os assessores transformarão a imagem do impossível na imagem do inacreditável.
O primeiro-ministro sabe que basta que o País pense que não pode estar a suceder o que lhe aconteceu, para que o Governo se aguente: foi assim com ele, quando, parecendo-lhe irreal, chegou de súbito ao lugar que tem. Para já, entre sol e aguaceiros, vivemos o jogo de bola na praia do segredo de justiça.
É um jogo de vaivém.
O segredo de justiça, coitadinho, mais do que violado, estuprado ele tem sido, já deu para tudo.
Houve carreiras políticas fulgurantes à conta dele.
Por causa dele antigamente - bola! - iam políticos para a rua. Agora, através dele - bola! - vão para a rua magistrados.
O problema é que, como os outros jogos de bola na praia, irritantemente salpica todos de areia.
ja.barreiros@mail.telepac.pt
Friday, August 20, 2004
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