A desculpa
Miguel Poiares Maduro
http://www.fd.unl.pt/web/faculdade/cdocente/2003-2004/0033/docente.htm
Quando visito um país estrangeiro procuro ler os jornais locais. Acho que é um misto de curiosidade (uma forma de combater a síndroma do turista: visitar sem ficar a conhecer) e de me fazer sentir em casa lá fora.
Imaginem o meu espanto quando, há poucas semanas, encontrando-me no Sri Lanka de férias, abro um jornal (The Island) ao pequeno-almoço e deparo com o seguinte título: Portugal e Sri Lanka: Tempo para um pedido de desculpas e reconciliação! Para aqueles que não sabem, importa começar por dizer que os portugueses foram os primeiros colonizadores europeus do Sri Lanka (entre 1505 e 1656, Ceilão nessa altura). Aparentemente, não deixámos boas recordações_ Nos livros de História do Sri Lanka somos retratados como os mais brutais dos povos colonizadores da ilha (a nós seguiram-se os holandeses e os britânicos). Nada de mais distante da imagem que temos de nós próprios enquanto povo colonizador. Eu à espera de ser recebido com retratos do Eusébio e fado cantado em cingalês ou tâmil e quase que me deparo com um cartaz a dizer: Portuguese go home!
Em geral, concebemos a nossa colonização como mais aberta e pacífica que a dos outros povos europeus. A nossa construção pública da História e da nossa identidade colectiva apresenta-nos como um povo colonizador amigo dos colonizados e o que melhor foi aceite e melhor se comportou para com os povos locais. Naquele título de jornal encontrei todo o contrário da nossa identidade colectiva enquanto povo colonizador. Confesso que já suspeitava que algo podia ser falso na construção da nossa História colonial. Na verdade, sei que aquilo que dizemos de nós e, por oposição, dos outros povos colonizadores, estes dizem ao contrário. Holandeses, britânicos e espanhóis também se crêem os colonizadores da bondade. Para eles, são os outros (como nós) os sanguinários.
Deste jogo de espelhos da identidade colectiva dos povos europeus resulta que existe muito de possivelmente falso na reconstrução da História colonial e na sua ligação à identidade colectiva nacional de cada povo europeu. Mas que a História tem tanto de construção como de descrição já eu sabia. E pouco me importa, nesta circunstância, saber que os outros também reinventam a sua História.
A identidade colectiva tem muito de emocional e mitológico. Aquilo que mantém um povo unido não pode ser objecto de constante renegociação e discussão sob pena de a própria existência enquanto povo ser questionada. Mas isto produz não apenas paradoxos históricos (é engraçado que Portugal e Espanha partilhem o mesmo herói fundador: Viriato_) mas uma inversão na lógica da identidade colectiva: ela existe não tanto em função da sua fidelidade ao nosso passado, mas sim em função da sua capacidade para garantir um futuro colectivo (para nos manter unidos enquanto povo). O risco inerente a esta construção da identidade colectiva é que a falta de reflexão crítica sobre a mesma nos leve não apenas a deturpar as nossas relações com os outros mas, igualmente, a cristalizar a nossa identidade no tempo. Neste sentido, parece-me existir no discurso público português uma enorme falta de sentido crítico face à nossa própria História. Em Portugal, a nossa História não se discute, ela é antes um ideal a que constantemente se faz apelo para criticar o presente e prometer o futuro.
Mas será que podemos fazer um juízo sobre a nossa História, em particular sobre a nossa História colonial? A História conta-se ou é julgada? Esta questão não é nova no quadro das relações entre potências coloniais e povos colonizados. Que sentido faz julgar hoje o que se passou há 500 anos? Será possível e legítimo avaliar à luz dos critérios morais actuais o comportamento de há 500 anos?
Por vezes, a responsabilidade do colonizador parece servir apenas para desresponsabilizar os actuais governantes das ex-colónias (uma espécie de tese do pecado original: a colonização seria responsável de todos os males e para sempre destinaria esses povos à miséria e sub-desenvolvimento). Neste caso, o que se procura não é um pedido de desculpas mas uma desculpa para as responsabilidades próprias. É outra forma de instrumentalizar a História.
Por outro lado, a responsabilidade histórica não prescreve. A justificação da História não deve servir para justificar e isentar de juízos todas as histórias na nossa História. Há episódios que nos enchem de orgulho e outros que, se calhar, nos envergonham. Reconhecermos ambos não é um juízo histórico mas uma responsabilidade presente. Será essa a desculpa que devemos ao Sri Lanka? Ao assumirmo-nos como povo, adoptamos uma identidade colectiva e por ela devemos sentir-nos responsáveis. Não temos que pedir desculpa pela nossa História mas temos de ter um sentido crítico perante ela.
Blogues
Prémio terapia de grupo O grupo de hard rock Metallica filmou em documentário o processo de desintoxicação alcoólica e de recuperação psicológica e (parece-me_) psiquiátrica dos seus membros ao mesmo tempo que produziam o seu novo álbum. Eis mais um exemplo de eliminação da fronteira entre realidade e ficção, entre espectador e participante. É um documentário autobiográfico? Um documentário musical? Um filme terapêutico? O objectivo é mostrar o processo de cura ou é o próprio documentário parte desse processo? Somos espectadores ou instrumentos da terapia? Quando a realidade é encenada e editada, ainda é realidade? Numa entrevista ao New York Times, o líder dos Metallica veio afirmar que afinal o terapeuta também tinha os seus problemas e que tinha procurado manter o grupo no processo terapêutico mesmo quando este já não seria necessário_ O problema de eliminar a fronteira entre a realidade e a ficção é que a ficção pode tomar conta da realidade!
na roça com os tachos O programa de culinária mais interessante dos últimos anos na televisão portuguesa vem de São Tomé e Príncipe, passa na RTPI e chama-se Na Roça com os Tachos. Um apresentador divertido e com o necessário sentido lúdico da cozinha e do contexto em que ela tem lugar passeia-se com os tachos às costas pelas roças são-tomenses preparando pratos de acordo com os produtos locais. É verdade que, por vezes, as inovações gastronómicas propostas suscitam algumas dúvidas mas este programa está a anos-luz do tédio que domina os programas gastronómicos da televisão portuguesa, onde um qualquer chefe ou dona(o) de casa enumera ingredientes e reproduz receitas com o mesmo interesse e entusiasmo com que se repete a tabuada na escola primária. E, já agora, se querem ver como se podem fazer programas de culinária bem interessantes e divertidos vejam os exemplos da BBC que passam no People & Arts. Os ingleses podem não saber cozinhar mas sabem fazer televisão!
A Short History of Nearly Everything Outra coisa em que, infelizmente, os ingleses nos superam largamente é num género literário praticamente abandonado em Portugal: a literatura de viagens. Um dos mestres é Bill Bryson, que recentemente se dedicou a escrever algo diferente: uma história científica do mundo. O sentido de humor e a honestidade e curiosidade intelectual de Bill Bryson transformam este livro numa notável e divertidíssima introdução à ciência. Alguém o devia traduzir imediatamente para português e torná-lo leitura obrigatória nas escolas secundárias: os alunos agradeceriam e a sua leitura iria fazer mais pela educação científica em Portugal do que qualquer reforma do sistema educativo!
Wednesday, August 18, 2004
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