Thursday, September 16, 2004

A Construção do Saber, Por PEDRO STRECHT

Público
Quinta-feira, 16 de Setembro de 2004

Foi notícia recente a finalização da construção de casas para famílias carenciadas da região de Braga através da mão-de-obra de jovens ingleses, que em tempo de transição para o ensino superior, dedicam um ano sabático a trabalhar para uma associação que desenvolve em todo o mundo projectos neste campo.

A construção de lares para muitos que não têm habitações condignas é sempre motivo de felicitação, não fosse Portugal o país da União Europeia com a maior percentagem de pessoas pobres, numa realidade que não é difícil de constatar em todos os pontos das nossas cidades ou espaços urbanos. Por outro lado, não há organização possível de saúde mental das populações e das suas camadas mais jovens, sem que o mínimo de condições de vida esteja assegurado; uma casa, comida, roupa, escola e cuidados mínimos de saúde. E, sabemo-lo bem, isso nem sempre existe para muitos, que assim se organizam num padrão de funcionamento mental que não passa da mera sobrevivência.

No final dos anos, e durante os três anos seguintes, pude acompanhar de perto a reabilitação urbana do mais tristemente célebre bairro da capital, o Casal Ventoso. Como membro de uma equipa de intervenção psicossocial que intervinha centrada na população de uma escola de 1º ciclo e, posteriormente, do seu jardim de infância, pude aperceber-me do impacto que tal mudança foi tendo no funcionamento global daquelas famílias, crianças e adolescentes. Para quem permanecia esquecido e ignorado em anos de ineficácia de respostas, alguma coisa mudou e, mesmo sem a solução global de todos os problemas, era impossível negar as mudanças positivas então registadas.

Agora, no caso de Braga, como em muitos outros possíveis exemplos, é fundamental destacar a importância do trabalho voluntário de jovens, que cruzando fronteiras, emprestando o seu tempo e, com certeza, o seu entusiasmo, se dedicaram a uma importante causa humanitária. Também nós temos os nossos jovens que, por cá ou em muitos outros países de que é impossível não destacar os africanos de língua oficial portuguesa, o Brasil e, mais recentemente, Timor, emprestam anualmente um tempo das suas vidas para intervir, criar, construir. São sempre muitos, eventualmente mais do que algumas pessoas poderiam imaginar, e a coordenação dos seus esforços deve-se quase sempre a organizações não governamentais de carácter habitualmente nacional, mas também internacional.

Só que, nem sempre, esses rapazes e raparigas de boa-vontade são por isso recompensados nas suas carreiras académicas, uma vez que o nosso sistema de ensino não permite, entre outras coisas, a possibilidade da existência de um ano sabático na transição entre o 12º ano e a entrada na universidade. Bastaria para isso que, muito simplesmente, a média obtida na avaliação final desse ano fosse válida por mais um ano, permitindo assim uma justa margem de manobra para quem optasse por estas actividades. Em Inglaterra, país que para este caso serve bem de exemplo, quase 80 por cento dos jovens opta por viver este ano de forma descomprometida, organizando-se em experiências de vida que são facilmente enriquecedoras; optando por trabalhar para ganhar dinheiro, para depois, nos meses seguintes, viajar, ou por emprestar as suas capacidades a acções humanitárias ou outras, muitos vêem assim as suas vidas preenchidas de factos que aumentam a visão sobre si próprios e os outros, e lhes dão maior capacidade de autonomia, tolerância, conhecimento.

Mas, em Portugal, ousar preencher assim um ano é fazer o que seguramente muitos considerariam um tiro no escuro, um desperdício, uma loucura ou um capricho de aventura, uma perda de tempo, só para citar algumas visões possíveis de muitos pais, escolas e, pasme-se, de um bom número de rapazes e raparigas que, mediante a pressão escolar a que estão sujeitos, não têm já capacidade de se abstraírem de um sistema em que se movem e foram educados.

Contudo, é impossível negar que, mesmo perante todas estas condicionantes, um número cada vez maior afirma desejar experimentar e, se valesse a tal possibilidade de congelamento de notas por mais um ano, então uma enorme maioria arriscaria fazê-lo e, estou certo, disso não se arrependeria.

A muitos dos nossos jovens que anualmente entram para o ensino superior falta experiência de vida, autonomia crítica, capacidade de intervenção e debate, riqueza relacional. E, por contraste, o seu potencial para tudo isto é imenso, e a sua vontade e desejo de o realizar também. Num tempo em que o ensino se tornou em algo de persecutório e pressionante nos três últimos anos do secundário (a fixação nas notas, nas médias, no desempenho nos exames de 12º ano, são exemplos), e se reveste de características em que áreas como as ciências humanas ou sociais sofrem um notável apagamento em detrimento de outras essencialmente técnicas, seria extremamente útil abrir portas a outras formas de conhecimento, que não exclusivamente o dos livros, repetitivo e evacuativo, nomeadamente aquele que é feito na partilha da experiência real e construtiva. Porque a muitos dos nossos rapazes e raparigas não se lhes dá espaço de ser e de assim exercer o seu poder como uma das mais importantes forças de qualquer sociedade.

Muitas pessoas queixam-se de que os adolescentes que deixam o secundário para entrar no ensino superior são frequentemente imaturos, exercem uma forma de estudo e de aplicar o conhecimento muito limitada à mera repetição de conceitos memorizados e que, acima de tudo, não parecem ter uma experiência prática de vida que os enriqueça enquanto pessoas, primeiro, e como futuros profissionais, depois. Mas, afinal, a questão é também a seguinte: que se faz para lhes proporcionar essas oportunidades e a concretização real de muitos desses seus sonhos e desejos? Atabafados por um ritmo de ensino que não permite espaço para respirar e mergulhar, nem que seja por um tempo determinado nessa realidade da vida, esses rapazes e raparigas organizam-se apenas dentro do que lhe é possível ou permitido. E isso é, obviamente, pouco. Restam, por isso, aqueles que fazem do seu voluntarismo um acto de coragem e de abnegação e ousam prejudicar-se numa carreira académica para parar, partir e conhecer. Mas são esses que, um dia, serão com certeza recompensados, e mesmo que nem sempre tal aconteça de forma explícita nos seus currículos, acontecerá na riqueza das suas experiências emocionais, num espaço e num tempo marcado pelo gosto de dar e, assim, receber. Por isso, serão possivelmente profissionais mais próximos daquilo ou daqueles que os move, logo, melhores pessoas. No fundo, pessoas mais vividas, ricas, tolerantes, justas, criativas, numa palavra, mais sábias.

PEDOPSIQUIATRA

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