Público, 26 de Setembro de 2004
A Crise das colocações de professores
David Justino: Surpreende-me ter pedido uma auditoria aos concursos e ainda não ter sido ouvido
Isabel Leiria
PÚBLICO, com Raquel Abecasis/Rádio Renascença)
O ex-ministro da Educação diz que todo o processo de colocação de professores foi delegado no seu secretário de Estado da Administração Educativa, Abílio Morgado, e na directora-geral dos Recursos Humanos. Assume a responsabilidade política, mas apenas pela concepção das novas regras. E estas mereceram o acordo genérico de todos.
Há esclarecimentos que já podiam e já deviam ter sido prestados pelo actual Governo e pelo Ministério da Educação, defende David Justino, o anterior titular da pasta da Educação e actual deputado do PSD. O ex-governante nega qualquer ligação à empresa Compta e sente que não teve a "lealdade" dos seus colegas de partido e do Governo. Por isso, decidiu que era altura de defender-se.
Que explicações tem a dar sobre o que se tem passado nos últimos meses com a colocação dos professores e sobre este atraso no início do ano lectivo, que há muitos anos não era visto em Portugal?
A primeira explicação que tenho a dar é sobre o porquê do meu silêncio. Quando saí do cargo de ministro [da Educação] entendi que, durante uns bons meses, devia inibir-me de tecer qualquer comentário relativamente à forma como a Educação está neste momento a ser conduzida. Não só para dar toda a margem de manobra à nova equipa, mas também porque entendo que a presença assídua de um ex-ministro na opinião pública não é boa para a equipa, para o Governo, ou para a Educação. Por isso tentei levar até às ultimas consequências esse meu silêncio. Depois da tomada de posse da actual ministra apresentei-me na Assembleia da República. Tenho também uma carreira académica e já comuniquei ao director da minha faculdade que iria retomar a investigação e as aulas.
Está a dar esta explicação inicial para que não fique a ideia que tenciona regressar a uma vida política mais activa do que aquela que tem neste momento?
Eu sou professor associado da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas [da Universidade Nova de Lisboa] e tenho um orgulho enorme em sê-lo. Isto não quer dizer que tenha considerado a minha experiência governativa tão má, tão má, que não resista a qualquer outra experiência. Agora, vamos ser objectivos. Depois do que se tem dito acho muito difícil poder vir a ter qualquer outra responsabilidade política. A minha preocupação é cumprir o meu mandato de deputado até ao final da legislatura e retomar a actividade académica.
Mas então por que é que decidiu quebrar o silêncio?
Por duas ou três razões. Em primeiro lugar, acho inadmissível que não haja perante a opinião pública o esclarecimento dos factos que são já susceptíveis de ser divulgados. E, acima de tudo, é um silencio que eu entendo que vai sempre em desfavor de quem deu a cara por este processo.
Quem é que devia ter dado esses esclarecimentos?
Podiam ter sido dados quer pelo Governo, quer pelo Ministério da Educação [ME]. Mas não foram e deixaram as pessoas numa autêntica confusão. Isso leva precisamente a que as pessoas especulem e, a partir daí, comecem a acontecer coisas inadmissíveis. Houve um jornal diário que chegou ao ponto de falar dos "Negócios da Educação" e associar-me em termos de imagem a uma empresa, que é a Compta, e a dois militantes do PSD, que eu nem sabia que pertenciam à Compta. Quando se chega a este nível é a honra pessoal que está em causa. Até já se fala que tenho participações na Compta. Não tenho nem na Compta nem em mais nenhuma empresa. Eu nunca falei com a Compta, nem nunca acompanhei o processo de adjudicação da programação do concurso de professores.
Quem é que acompanhou?
Foi uma competência delegada no secretário de Estado da Administração Educativa [Abílio Morgado] e na directora-geral dos Recursos Humanos da Educação [Joana Orvalho]. Só a partir de um determinado valor que, se não estou em erro, é de um milhão de euros, é que o contrato tem de ter a homologação do ministro. Não era o caso. As direcções gerais estão constantemente a fazer concursos. Este, não sei, mas presumo que teria de ser homologado pelo secretário de Estado, porque tinha competências delegadas para isso. Devo confessar que só soube que era a Compta depois da adjudicação. Ou seja, esta suspeição politico-partidário e de interesses eu não admito.
Vamos então começar pelo princípio do problema...
Mas há algo que eu também acho que é importante dizer. Hoje, [sexta-feira], o Governo, finalmente, achou por bem instituir uma comissão de inquérito para averiguar. Eu acho muito bem e estou disponível para responder perante essa comissão de inquérito. Aquilo que me surpreende é ter feito o pedido de auditoria à Inspecção-Geral das Finanças (IGF) a 25 de Maio e, ao fim deste tempo todo, ainda não ter sido ouvido. Há mais de uma semana, propus ao meu grupo parlamentar que fosse criada uma comissão parlamentar - de inquérito, eventual, permanente, não me interessava o formato. A primeira reacção de que me apercebi foi de que, relativamente a uma proposta de comissão de inquérito, o PSD não se mostrou muito aberto.
Foi consultado sobre isso?
Não. Apenas apresentei ao presidente do grupo parlamentar, Guilherme Silva, que foi de uma compreensão que tenho de destacar, uma carta dizendo que etava disponível. Disse-lhe: "Façam o que entenderem, mas resolvam isso depressa". A cada dia que passa, aquilo que se vai verificando em termos de opinião pública e produção jornalística, é um autêntico juizo em praça pública, em que quase me enterram vivo. Eu respeito e tenho uma relação de lealdadade para com os meus colegas de partido, para com o partido, Governo, Assembleia da República. Chega uma determinada altura em que, se a lealdade não é recíproca, eu tenho de me defender.
A revisão do modelo do concurso de professores foi uma das grandes apostas do seu mandato. Não se sente responsável por aquilo que se está a passar?
Claro, politicamente responsável. Nomeadamente no que diz respeito à concepção do próprio modelo de concurso.
Acha que se continuasse ministro teria optado por um modelo diferente?
Não. O modelo de concurso foi publicado em diploma de Janeiro de 2003 e, face à experiência concretizada nesse ano, entendeu-se fazer algumas rectificações. Eu tenho de fazer justiça ao doutor Abílio Morgado. Ele foi o grande obreiro do diploma. Seguiu escrupulosamente as orientações que eu tinha dado, designadamente, acabar com os "mini-concursos", tornar o processo mais transparente. Acima de tudo, a ideia era fazer do concurso um processo que permita que o início do ano lectivo não esteja, de há muitos anos para cá, condicionado sempre por dois factores: colocação de professores e segunda fase dos exames nacionais.
Este ano os professores também continuam por colocar...
Só estou a lembrar o que eram os concursos dos anos anteriores. Na fase regional, a colocação de professores era feita em meados de Outubro e mesmo durante Novembro. O problema dos exames foi resolvido. Os concurso não correram tão bem. Mas das nove organizações sindicais envolvidas no processo, oito assinaram o acordo com o ME. A nona, que era a Fenprof [Federação Nacional dos Professores], teve a honestidade de dizer que só não assinava porque uma velha reivindicação que tinha acordado com o anterior ministro Augusto Santos Silva - a vinculação extraordinária de seis mil docentes contratados - não tinha sido contemplada. O diploma foi aprovado em Conselho de Ministros, foi promulgado pelo Presidente da República e nenhuma força política requereu a discussão do diploma no Parlamento. Perante este quadro, é só o "pai" do diploma que fez o "filho"? Neste processo de produção legislativa há responsabilidades que são repartidas.
Se o modelo não está errado, então o que é que correu mal?
Eu não sei o que correu mal. Desde meados de Julho que deixei de ter contactos com o ME.
Mas foi em Maio que se verificaram os primeiros problemas...
As primeiras listas provisórias que foram divulgadas então foram um desastre completo. Eu tive a ombridade de ir à Assembleia da República dizer que os erros eram imperdoáveis.
Uma questão prévia: como foi possível divulgar listas tão erradas que tiveram de ser anuladas?
Eu aceito a crítica, mas tenho de dizer que foram divulgadas sem a minha autorização, sem o meu conhecimento.
Não fizeram testes antes?
Eu acho que sim. Mas eu não estou na 24 de Julho [DGRHE], não sou director-geral, sou ministro e parto do princípio que, quer por parte da doutora Joana Orvalho, quer por parte do doutor Abílio Morgado esses testes foram feitos. No dia 24 de Maio, na comissão parlamentar, eu disse que se viessem a ser apuradas responsabilidade directas eu pediria a minha demissão. Não é por acaso que no dia seguinte, a directora-geral me envia uma carta em que assume a inteira responsabilidade pelos erros cometidos e pede a demissão. Tenho uma cópia, em que é dito o seguinte: "Considerando as repercussões que a acção técnica desta direcção-geral causou em matéria das listas provisórias do concurso dos docentes e educadores, pela qual, enquanto directora-geral, sou a inteira responsável, venho solicitar de vossa excelência a cessação das minhas funções, que exerço em regime de gestão desde 2002".
Por que é que não aceitou o pedido de demissão?
Eu falei com a doutora Joana Orvalho e disse-lhe: "É fácil aceitar o seu pedido de demissão e a senhora sai. Agora, eu fico com um problema por resolver." A directora-geral, como expressão de brio profissional que quero destacar, disse que estava disponível para continuar até resolver o problema. Decidiu-se então refazer o programa informático do zero.
Faltou Coordenação Entre Quem Sabe de Concursos e Quem Sabe de Programação
David Justino diz que o único dado objectivo que tem é a carta de demissão da directora-geral, em que é assumida a responsabilidade pelos erros
Nunca colocou em causa a escolha da empresa que venceu o concurso?
Não, porque tinha informações, quer da directora-geral, quer do secretário de Estado da Administração Educativa, que os técnicos da empresa demonstravam competência no que estavam a fazer. O pecado original estava no chamado "briefing", ou seja, o interface entre quem concebe e sabe de concursos e entre quem sabe de programação e executa falhou. Não há nenhum programa que possa ter êxito se esta articulação não existir.
E foi um processo que acompanhou a partir daí?
Não, porque todo este processo é uma delegação de competências no secretário de Estado da Administração Educativa. Que desempenhou um trabalho excepcional.
Perante os resultados que temos, como é que se pode dizer que foi feito um trabalho "excepcional"?
Foi por isso que pedi uma auditoria e é por isso que acho que deve haver uma comissão de inquérito. Só assim, em vez de se estar a estabelecer suspeições de responsabilidade, podemos saber, de uma vez por todas, o que competia a cada um e que, eventualmente, não foi cumprido. Até agora, o único dado objectivo que tenho é a carta da doutora Joana Orvalho, em que afirma ser a inteira responsável por isto. Na altura, eu tinha de ponderar o seguinte: mudo a equipa, mudo a empresa ou vou tentar resolver o problema. Optei por aquilo que era mais importante: resolver o problema. Para todos os efeitos, a lista ordenada que acabou por sair, e que é a base a partir da qual se faz a afectação dos professores às escolas, tem qualidade, reconhecida pelos sindicatos.
Mas depois de sucessivos adiamentos e de terem sido apresentadas 36 mil reclamações sobre as listas provisórias...
A partir da publicação das segundas listas provisórias, entra-se no período de reclamações e deixo de ter qualquer controlo porque saio do ME. Mas tenho de pedir desculpa a todos aqueles que foram fortemente prejudicados por este processo. Agora não me façam pedir desculpa por aquilo que não fiz.
Nuno Ferreira Santos/PÚBLICO
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