Wednesday, September 22, 2004

Desenvolvimento Científico e Dinâmica de Inovação - a Propósito do Choque Tecnológico Por A. TRIGO DE ABREU

Público
Quarta-feira, 22 de Setembro de 2004

Existe um largo consenso na sociedade portuguesa sobre os diagnósticos do processo de inovação e do crescimento económico, mas ele não se estende às estratégias políticas anunciadas no sentido de vencer o atraso que ainda separa Portugal dos seus parceiros europeus. Importa, assim, reflectir sobre os requisitos de qualquer estratégia neste domínio, com três aspectos que condicionam radicalmente o seu sucesso:

Uma estratégia de inovação exige consenso, persistência e continuidade. A continuidade é indispensável para vencer o atraso, rejeitando os milagres apressados que prometem este mundo e o outro, de hoje para amanhã. Exige também persistência na implementação concreta das políticas definidas, afirmando a necessidade de construir consensos políticos mínimos que assegurem a estabilidade das políticas públicas e a confiança dos cidadãos e das empresas.

As políticas de inovação são hoje necessariamente referidas às trocas mundiais de conhecimento e de tecnologia e aos fluxos internacionais de investimento. Uma estratégia nacional de inovação tem de ser necessariamente internacional. Neste sentido, as referências que se fazem aos sistemas nacionais de inovação correm o risco de ressuscitar os fantasmas nacionalistas da auto-suficiência que os tempos se encarregaram de dissipar.

Uma estratégia de inovação sustentada deve ainda ser ancorada na percepção social da importância da ciência e da tecnologia (C&T) para o progresso económico e social. Esta percepção envolve necessariamente uma familiaridade com os conceitos básicos da ciência e da tecnologia, e não só por parte da população escolar, sublinhando a necessidade de um apoio continuado à difusão da cultura científica.

Continuidade, internacionalização, apropriação social da C&T são elementos centrais de qualquer estratégia de inovação que queira ultrapassar os limites dos sucessivos compromissos com Portugal, que morrem no instante em que são anunciados ou dos choques fiscais ou tecnológicos cujos efeitos se desfazem como fumo à medida que o tempo passa.

Hoje, pretende-se opor o choque tecnológico ao choque fiscal de Barroso. Não se combate uma miragem com outra miragem. A proposta de um choque tecnológico como solução para os problemas de competitividade do país será uma boa jogada de marketing a curto prazo, mas é inverosímil. Por definição, um choque é uma mudança abrupta, uma espécie de "big bang". Ora, nenhum país teve, tem ou terá a possibilidade de conseguir um significativo salto qualitativo e quantitativo da sua base científica e tecnológica e da sua capacidade inovadora, por efeito de um qualquer choque. Quando se fala de política científica e tecnológica em relação com a inovação e o crescimento é preciso partir de conceitos sólidos e ideias bem arrumadas. Promessas à revelia desses elementos vitais só podem causar, primeiro, ilusão e, depois, frustração.

Uma visão moderna do processo de inovação requer um conjunto de políticas articuladas em alguns pontos prioritários que são essenciais para assegurar o fluxo de inovação no sistema económico e social e para impedir os seus bloqueamentos.

Dois indicadores são motivo de preocupação no domínio das qualificações dos portugueses, num tempo em que a competitividade das nações se mede pelo conjunto de competências detidas pelos seus cidadãos. As enormes taxas de abandono em todo o sistema de ensino constituem um desperdício de recursos públicos e de potencialidades individuais. E este abandono juvenil, em que cerca de metade da população juvenil não completa o ensino obrigatório, é ainda agravado pelo facto de termos das mais baixas percentagens da Europa de adultos que frequentam qualquer actividade de formação. Importa desenvolver uma política consolidada de ataque ao abandono escolar precoce e devolver uma nova oportunidade de qualificação às centenas de milhares de portugueses que um dia abandonaram a escola para não mais voltar. A contemporização com os atractivos imediatos de um mercado de trabalho não qualificado na economia doméstica ou subterrânea e a passividade perante o desperdício social não pode ser tolerada em nome da equidade social e do combate pela competitividade.

Se existe uma área onde o puro preconceito político e a atracção pela política dos interesses se aliaram para bloquear o surto de progresso visível do quinquénio 1996-2001, essa foi a da ciência e tecnologia. A diminuição dos financiamentos públicos às instituições de investigação e à formação avançada, o acumular de dívidas às grandes instituições científicas internacionais, a perpétua revisão cosmética dos mecanismos de apoio à inovação ou a conspiração contra o Ciência Viva são as marcas destes últimos dois anos.

É este trajecto que importa reverter, ampliando de forma sustentada o mercado de trabalho para os jovens cientistas, atacando os preconceitos corporativos que se opõem à escolha dos melhores em favor dos mais próximos, renovando os compromissos de médio e longo prazo com a rede de Laboratórios Associados, respondendo às novas necessidades de regulação informada do Estado, substituindo as apressadas modificações sobre a interface universidade-empresa pela construção de pontes estáveis e efectivas entre estes dois sectores. A inovação precisa do impulso decisivo do conhecimento científico, sem o preconceito provinciano de que o mercado nacional da inovação é o destino único e o aferidor universal da bondade das políticas e dos produtos científicos desenvolvidos em Portugal.

A inovação é um processo social transversal às sociedades e às administrações, conflitual e gerador de rupturas com forte impacte sobre a coesão social, é um processo que requer a convergência de políticas diversas. Os laços entre a política de inovação, a política económica e a política industrial são necessariamente muito estreitos e podemos perguntar-nos se as dificuldades da política de inovação em Portugal não residem fundamentalmente na desconexão, ou dissonância, entre estas políticas. Assegurar a sua convergência efectiva, em torno de objectivos de médio prazo, deve ser a primeira ambição de uma nova política nesta área.

A inovação, factor essencial da competitividade da economia portuguesa, não é compaginável com um regime de protecção de empresas através da manutenção de salários baixos e da prevalência da especulação em mercados protegidos. A inovação é também um processo selectivo de reestruturação industrial, com impactes fortes sobre a coesão social, que requerem uma rede de segurança ágil, embora desejavelmente temporária.

Os instrumentos de apoio à inovação que têm sido sucessivamente alterados nos últimos anos, na febre cosmética dos governos Barroso & Herdeiro, incorporam instrumentos, sobretudo financeiros, centrados em vários passos do processo de inovação. Também podem ser úteis os esforços de atracção de investimento directo estrangeiro ou de contrapartidas com alto conteúdo tecnológico, desde que não se confundam com as facilidades para a instalação de capital nómada, sempre pronto para a deslocalização ao menor pretexto, ou mesmo sem pretexto. Mas é preciso não ignorar as empresas e os empresários, que, sentindo a necessidade da mudança, têm dificuldades em visualizar e organizar essa mudança. Neste domínio, o apoio a parcerias estratégicas com instituições ou empresas estrangeiras de base tecnológica e o acesso a "conselheiros de inovação" podem trazer o impulso e a informação indispensáveis.

Ex-presidente do Instituto de Cooperação Cientifica e Tecnológica Internacional, apoiante de Manuel Alegre

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