Wednesday, September 29, 2004

Intolerável! Por M. FÁTIMA BONIFÁCIO

Público
Quarta-feira, 29 de Setembro de 2004

nquanto a operação "Borndiep" provocava o alarido publicitário desejado para celebrizar as "Women on Waves" e justificar a captação de financiamentos indispensáveis à organização, soube-se que a 28 de Outubro vai ser julgada uma rapariga de 21 anos que cometeu um aborto quando tinha dezassete. A jovem recorreu a uma pílula abortiva que produziu o efeito desejado mas lhe causou sequelas que a obrigaram a recorrer aos serviços hospitalares. Houve depois um enfermeiro que a denunciou e ei-la que, quatro anos após o "delito", se vai sentar no banco dos réus. É intolerável que, volta não volta, haja mulheres que pagam com a violentação da sua memória e a devassa da sua intimidade pelas deficiências de uma lei que perpetua o aborto clandestino em Portugal - quando não pagam com a sua liberdade no caso em que tenham o azar de deparar com um juiz "insensível".

As associações ligadas à operação "Borndiep" afiançam que a mesma foi um sucesso por ter relançado um "amplo debate" sobre a despenalização do aborto. Houve debate, sim, mas incidiu quase só sobre a questão de saber se o Governo tinha ou não o direito, e se era ou não avisado, proibir o barco de atracar num porto português; e serviu sobretudo para fornecer novas munições à guerrilha política entre a Esquerda e a Direita, reactualizando uma "questão fracturante" em torno da qual se encarniçam para medirem forças, e só subsidiariamente para resolverem o problema. Compreendo a inevitável politização do tema, mas lamento que o mesmo se ache quase reduzido a arma de arremesso entre partidos.

Depois do último referendo, a Direita jurou a pés juntos que colocaria o máximo empenho em desenvolver o planeamento familiar e promover a educação sexual por forma a reduzir e tendencialmente eliminar o "flagelo". Nada fez. No Parlamento, Helena Roseta propôs a criação de uma comissão que estudasse a sério e a fundo a realidade do aborto em Portugal. Também nada aconteceu, e até hoje não ouvi o Bloco nem o PS ou o PC reclamar pelos resultados da investigação. Continuamos assim sem conhecer números fiáveis e ignoramos tudo sobre a distribuição do aborto por classe social ou etária e a sua incidência geográfica. Continuamos tão desinformados como estávamos há três anos. Nestas condições, o debate dificilmente se poderá elevar acima de uma troca de impressões.

Mas há "impressões" de que ninguém de boa fé duvida e que deveriam, acaso prevalecessem um elementar sentido de justiça e respeito pela autonomia das mulheres, ser suficientes para justificar a liberalização da lei existente e, por maioria de razão, despenalizar o aborto. Venderam-se no ano passado perto de 500.000 pílulas do dia seguinte. Diminuíu com isso o número de abortos "propriamente ditos"? Não sei. Mas sei, mediante uma mera extrapolação a partir do universo meu conhecido, que se continuam a fazer; e que o aborto é uma das experiências humanas em que se faz sentir de modo mais revoltante a desigualdade social. Quem tem dinheiro vai a Badajoz, a Madrid ou a Londres ou encontra mesmo dentro de portas parteiras eficientes que executam a tarefa sem dor, com higiene e segurança; se despachar o assunto de manhã, à tarde pode ir às compras ou trabalhar. Quem não tem dinheiro recorre ao "vão de escada" e sofre as sequelas. Se tiver a sorte de não serem fatais, ainda pode ter o azar de vir a ser denunciada por qualquer enfermeiro de serviço. É para as mulheres pobres que o aborto é sempre um drama e às vezes uma tragédia. As mulheres ricas podem passar por dilemas angustiantes, mas a estas dores de consciência somam-se, nas mulheres pobres, um horrível sofrimento físico e o risco da própria vida. É uma realidade intolerável. Um elementar sentido de justiça exige que se lhe ponha cobro.

Não entendeu assim a maioria da população portuguesa em referendo. Por razões de princípio, não acho que o assunto deva ser referendado, por mais que agitem o espantalho da "fractura" e invoquem o valor da coesão moral da sociedade portuguesa. Mas a respeito do referendo sempre gostaria de dizer que tenho a "impressão" de que votaram contra muitas mulheres que fizeram a experiência de abortar. Quem conheça os "vãos de escada" conhece o ambiente de solidariedade ferozmente feminina que lá reina. As mulheres podem, se quiserem, abortar em absoluto segredo, resguardadas da curiosidade da terra ou do bairro, e sem que o marido, o amante, o irmão, a sogra, o pai ou a mãe venham jamais a saber. A legalização do aborto destruiria este precioso sigilo. Nos "vão de escada", o aborto é uma coisa privada das mulheres, que preferem carregar sozinhas com a culpa, o remorso e as hemorragias. É possível que esta mentalidade primitiva tenha começado a mudar, mas tenho a "impressão" de que até há poucos anos era assim. A respeito do referendo tenho ainda a "impressão" de que muitos homens respiram de alívio quando as parceiras abortam, mas que votam contra porque recusam às suas mulheres essa liberdade.

Não aceito que a minha vida, no que ela tem de mais pessoal e privado, seja determinada pela opinião maioritária dos eleitores portugueses. Ninguém nem nada me obrigaria a ter um filho que eu não quisesse. Não estou a pensar em problemas económicos, que felizmente nunca tive, nem em razões de saúde, que também me não faltou. Acontece que ter um filho - a única decisão absolutamente irreversível que tomei em toda a vida - exige, tanto ou mais do que meios económicos, uma disponibilidade total para amar e uma capacidade incondicional para aceitar responsabilidades e sacrifícios incluindo, alegremente, o da própria vida. Nesta matéria não admito os homens em pé de igualdade. Em 90 por cento dos casos, a responsabilidade por um filho recai pela maior parte sobre a mãe. São as mães que quase sempre ficam com os filhos quando o casal se separa; observo que a grande maioria dos pais satisfaz o seu instinto paternal com um ou dois fins-de-semana por mês, oito ou quinze dias de férias por ano e uma mensalidade insuficiente. Por outras palavras: a maternidade compromete a vida de uma mulher. E um tal compromisso não lhe pode ser imposto pela "vontade geral".

Nem lhe pode ser imposto como expiação de um "pecado" ou como alternativa obrigatória a um alegado infanticídio, como pretendem os movimentos chamados "pró-vida". Ninguém me convenceu até hoje de que um embrião com meia dúzia ou uma dúzia de semanas é um ser humano; será vida, como qualquer matéria orgânica é vida, mas em minha opinião não é vida humana. Em minha opinião, sim: a questão não é científica - por muito que os médicos "pró-vida" apregoem o contrário -, é religiosa ou filosófica. A doutrina da Igreja, de resto, tem variado ao longo dos tempos. Há 40 anos, quando governava o muito católico Salazar, os fetos de abortos espontâneos com menos de 500 gramas não tinham direito a certidão de óbito... Hoje, a Igreja sustenta que assim que um óvulo é fecundado estamos em presença de vida humana - em potência. Mais: que um óvulo e um espermatozóide, mesmo antes de colidirem, já configuram vida humana em potência. É por via desta dedução, aliás lógica, que a Igreja proíbe a contracepção e recomenda a abstinência. Como disse Albino Aroso ("Independente", 10-9-04), "os anti-aborto sempre contrariaram o planeamento familiar".

Acho muito bem que os católicos obedeçam à Igreja e adoptem "os métodos naturais", e até acharia ainda mais coerente que ligassem o sexo exclusivamente à procriação. Nada nem ninguém os impede. Mas já me parece intolerável que num estado laico e numa sociedade democrática pretendam estabelecer preceitos de vida para quem não partilha da sua fé, recorrendo ainda por cima a um terrorismo ideológico que não apenas inibe qualquer debate racional e sereno sobre o assunto, como cria artificial e insidiosamente um ambiente social desfavorável ao alargamento do planeamento familiar e à educação sexual. Assimilar o aborto a um infanticídio equivale a bloquear toda a discussão e conduz à negação hipócrita de uma realidade a que toda a gente, no entanto, chama uma "chaga social". Essa chaga suportam-na as mulheres, e dentro destas sofrem sobretudo, de longe, as mais pobres. Mas aqui parece que já não chega a consciência católica dos movimentos pró-vida.

Historiadora