Público
Domingo, 05 de Setembro de 2004
Foram anos de crença. E décadas de esperança. Durante muito tempo, a esquerda acreditou nas virtudes da educação do povo. Convenceu-se e convenceu muita gente, gerações atrás de gerações, que a educação era o instrumento essencial para mudar as sociedades, criar o "homem novo" ou, com menos pompa, libertar os oprimidos do capitalismo. Alfabetização obrigatória e universal, democratização do ensino, escola para todos, formação profissional para toda a gente, acesso aos estudos superiores, democratização da universidade e direito à universidade: estas foram, entre outras, algumas das suas palavras-chave que passaram para o vocabulário das sociedades contemporâneas. Para as suas crenças, a esquerda atraiu, sobretudo por má consciência e sentimento de culpa dos outros, pessoas e grupos sociais ditos do centro e da direita. A ideologia educativa da esquerda transformou-se, há muito, na ideologia dominante.
Os grandes valores da direita para a educação, raramente explícitos e sistematizados, têm hoje pouca saída, apesar de, aqui ou ali, parecerem ressuscitar e surgir de insuspeitas origens. São poucos os que hoje se atrevem a defender os grandes temas da direita para a educação: Deus, pátria e família, à cabeça; hierarquia e obediência; formação moral e religiosa dos jovens; a escola como extensão da família; escola empenhada nos valores "nacionais", morais e religiosos; primado dos estudos clássicos; e educação cultural e científica para as elites sociais, em contraste com a formação profissional para as classes populares. Nas suas versões mais modernas, a direita simpatiza com uma estratégia de formação de técnicos e de quadros em função e de acordo com as necessidades concretas da economia; defende uma concepção de permanente e feroz competição; e desenvolve políticas tendentes a mercantilizar a ciência e o estudo.
É verdade que alguns destes princípios foram adoptados (e adaptados) pelas esquerdas. Os republicanos, muitos socialistas e os comunistas também pretenderam, se é que ainda não pretendem, cultivar uma escola "empenhada", mas orientada, evidentemente, para a República, a democracia e o socialismo. Historicamente, tanto a direita como a esquerda condenam e lutam contra a "neutralidade da escola", só que com valores opostos. Todavia, apesar de algumas semelhanças, os valores da esquerda são, tradicionalmente, muito diferentes dos da direita.
Convém enumerar, simplificando, algumas dessas crenças. A educação permitiria lutar contra as desigualdades sociais, tornando mais fácil a mobilidade e a ascensão, mas sobretudo a igualdade. A educação seria uma exigência que precede o desenvolvimento. Noutras palavras, não haveria desenvolvimento sem educação prévia; ou então, mais simplesmente, a educação seria um factor de desenvolvimento. Com a educação, com uma "nova escola", seria possível eliminar os factores de "reprodução social" da ordem vigente e de domínio cultural e político das classes burguesas. As "novas" políticas de educação, populares e socialmente igualitárias, seriam condição necessária para promover e desenvolver a "inteligência social", para elevar o nível cultural das massas e para contribuir para a libertação das classes trabalhadoras, além de que seriam factor indispensável para desenvolver as forças produtivas. Para que tudo isto seja possível, necessário se torna que a educação seja a prioridade política absoluta, indiscutível, o que se traduz nas leis, nos orçamentos, nos vencimentos dos professores, nos investimentos públicos e nos recursos em pessoal. Em função desse objectivo, dever-se-ia gerar um "consenso nacional", interpartidário, duradouro, tão vasto quanto possível, a fim de evitar "guinadas" bruscas e mudanças de rumo políticas, tão prejudiciais para a harmonia escolar e educativa.
Além destes grandes princípios, as esquerdas souberam também desenvolver teorias sofisticadas de pedagogia e de organização escolar. Para realizar a "nova escola", seria necessário pôr em prática vários princípios instrumentais e diversos métodos. Por exemplo, promover a democracia na escola, seja através da participação dos jovens na gestão, seja adoptando o princípio eleitoral para a designação de responsabilidades. Afastar, tanto quanto possível, mas sem nunca o dizer abertamente, os pais, as famílias e os munícipes da vida da escola, dado que as inspirações mais reaccionárias têm origem nesses grupos sociais. Orientar os estudos e a aprendizagem para "a vida prática", as culturas locais e regionais e as exigências do emprego, a fim de tornar a escola acessível às classes populares, dando-lhes assim mais instrumentos de defesa e promoção. Reduzir significativamente os estudos clássicos e humanistas, assim como o tempo gasto com o património erudito, privilegiando, em substituição, uma "literacia funcional" e uma formação prática realista que aumente a igualdade de oportunidades. Baixar as exigências e as regras de disciplina a fim de atrair os jovens das classes mais desfavorecidas que tantas vezes ficam à margem dos estudos "livrescos" e demasiadamente eruditos ou científicos. Tornar o estudo mais fácil, atraente e democrático, a fim de evitar marginalizar os filhos das classes não burguesas, através de novos critérios pedagógicos, que incluem a subalternização dos exames (seriam factores de "stress"), a eliminação dos "chumbos" (que criariam traumas irrecuperáveis), a condenação da memorização (das tabuadas, de textos, de classificações, de datas, de nomes, de factos) e a abolição dos "trabalhos de casa" (dado que em casa só as classes favorecidas têm meios e ambiente para os levar a cabo). Substituir o "dever de estudar" pelo "prazer de aprender", revalorizando os aspectos lúdicos da escola e eliminando as noções de sacrifício e esforço. Alargar e facilitar o acesso de todos aos níveis secundários e superiores, diminuindo as exigências de mérito, torneando as provas de acesso, eliminando o "numerus clausus", reduzindo o papel dos exames, introduzindo a repescagem, as segundas chamadas, as segundas épocas, as épocas especiais, os recursos e as revisões de provas.
Estes e outros princípios, estas e outras regras, tiveram um inacreditável sucesso nas sociedades ocidentais durante muitas décadas. Desde o fim da segunda guerra, sem dúvida, mas a expansão destas modas já vinham de antes. A tal ponto que a ideologia extravasou as fronteiras das esquerdas e conquistou o centro político e mesmo muitas áreas da direita menos tradicional. Estas correntes de pensamento fizeram a unidade entre laicos e religiosos; entre políticos e tecnocratas; entre as classes médias e as classes trabalhadoras. O papel determinante, nesta caminhada vitoriosa, foi claramente o dos professores, suas associações e seus sindicatos, que fizeram sua e desenvolveram esta poderosa ideologia. Nada disso teria sido possível, evidentemente, sem a demagogia política ao serviço da democracia de massas e respectiva cultura. Se, em Portugal, olharmos para as políticas educativas praticadas desde finais dos anos sessenta até hoje, verificaremos, ressalvadas raras excepções, uma extraordinária continuidade visível tanto nas leis e nas políticas, como nas orientações e nas reformas, assim como nas estruturas e no pessoal dirigente. E não nos deixemos enganar com a sucessão de reformas e a instabilidade educativa tão frequentemente apontadas com dedo acusador: é verdade que a gestão do sistema tem sido errática, dada a oscilações, mas não é menos certo que, com mais ou menos cor, mais ou menos ruído, os princípios e as orientações essenciais se têm estranhamente mantido. Se repararmos bem, há um grupo de duas ou três dezenas de técnicos, especialistas, professores e políticos que, desde os anos sessenta e até hoje, participou em todas as reformas educativas levadas a cabo por todos os partidos nos vários governos que se sucederam.
Amanhã: A grande ilusão
N.R: Estas reflexões de António Barreto não substituem a sua habitual crónica Retrato da Semana, que regressará ao contacto dos leitores no próximo mês de Outubro
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