Público
Quinta-feira, 16 de Setembro de 2004
"Só os cultos são livres", Epicteto
Os rankings das escolas e os eventuais exames que venham a ser introduzidos no 4.º e 6.º anos abrem o caminho à criação de uma elite', acusa." "'Estamos a recuar trinta anos'."
Ao contrário do que o leitor menos advertido poderá supor, estas declarações de crítica radical ao ex-ministro David Justino não foram proferidas pela doutora Ana Benavente ou por algum dos membros aparentemente vitalícios do Conselho Nacional de Educação.
Segundo o Expresso, que as registou (17 de Abril de 2004), anteciparam uma intervenção destinada a "arrasar a política de educação do governo" e foram proferidas por uma personalidade do... PSD, a senhora doutora Manuela Teixeira, nada mais nada menos do que, então, secretária-geral da Federação Nacional dos Sindicatos da Educação (certamente escolhida por sorteio...). E foi ainda mais clara: "Se fosse obrigada a escolher entre David Justino e Ana Benavente, optaria pela segunda."
Significativo é não se ter erguido uma única voz contra a enormidade daquela declaração de horror às elites, ao mérito. Declaração que teve, no entanto, a vantagem de revelar a natureza da ideologia e das teorias pedagógicas que, encharcando a escola, promoveram a mediocridade e a irresponsabilidade gerais. Posição que mostra também - como há muito venho a insistir - que essa ideologia e concepções unem significativamente os que vêm dominando os sectores da educação dos dois maiores partidos políticos do país, sendo transversal a esses dois partidos, portanto, o poder que as tem imposto. Percebe-se assim a continuidade do projecto político que conduziu à tragédia expressa em todos os indicadores escolares e sociais.
A independência dos Estados, hoje mais do que nunca, está ligada ao reconhecimento e à valorização da única matéria-prima de que todas as nações dispõem: a inteligência dos seus cidadãos. "Todos os conteúdos do desenvolvimento exigem agentes qualificados, um conjunto de valores éticos e comportamentos sociais que só podem emergir na liberdade e têm de ser cultivados na escola." (As citações são do filósofo A. C. Grayling.) A educação é sempre condição necessária do desenvolvimento. (1)
O desenvolvimento exige a formação de elites, intelectuais, profissionais, morais. Não existe contradição entre a formação de elites e um ensino geral, para todos, com a maior qualidade possível. Pelo contrário. Só um ensino de qualidade para todos permite a revelação e selecção de um estrato de elite digno desse nome, estudantes com capacidades, preparação e vontade que lhes permitam ter acesso a uma formação superior mais exigente.
"O ideal do espírito democrático é tratar todas as pessoas de forma justa", promover a igualdade de oportunidades e a equidade, as duas componentes da justiça social. "A perversão desse espírito é a tentativa de as tornar todas idênticas."
É em nome dessa perversão - um igualitarismo gerador de iniquidade e de desigualdades maiores - que a mediocridade geral tem sido programadamente imposta à escola, aos docentes, aos estudantes, aos pais, ao país.
Do que precisamos é de um ensino básico e secundário de qualidade em todas as suas vertentes. Um ensino que desperte, promova e leve tão longe quanto possível as capacidades de todos. Um ensino que, por isso mesmo, permitirá revelar e seleccionar os melhores, os mais dotados (que nunca serão de mais e que existem em Portugal na mesma proporção que em qualquer outro país), a quem deve ser oferecida a mais exigente formação superior possível. Elites que só o serão, afinal, se forem "picos" num panorama geral de elevada qualidade. Elites que assumam os lugares de maior exigência e responsabilidade, por ser vital para o bem comum e por ser justo.
O que é necessário é uma escola onde não continue a ser cultivada, como tem acontecido, a "atrofia da memória", mas que seja, pelo contrário, sede privilegiada de transmissão e aquisição de conhecimentos, sem a qual não é possível o exercício do pensamento, a emergência da consciência crítica, a constituição e o exercício da capacidade e das qualidades intelectuais que permitem novas aprendizagens. Uma escola, portanto, em que a idiotice do "aprender a aprender" não seja a justificação para não se ensinar nem aprender nada. Uma escola onde se promovam e exijam as atitudes intelectuais e cívicas que são condição da liberdade. Liberdade que não é um estado de natureza, mas um produto de cultura. Não há democracia digna desse nome sem cidadãos informados, capazes de reflectirem. É por isso que a ideologia e as pedagogias que têm dominado o sistema educativo põem em causa a democracia, ameaçam a liberdade.
Dois grandes professores, João Lobo Antunes e Sobrinho Simões, deram a um artigo seu no PÚBLICO um título constituído por um conjunto de palavras-chave que nós próprios não nos temos cansado de proferir e de escrever: "exigir, avaliar, distinguir, premiar"... seleccionar.
Selecção de mérito, de competência, de vontade e de carácter. Portugal precisa desesperadamente de profissionais qualificados em todos os sectores de actividade, de elites intelectuais e profissionais, mas também de elites de carácter, que prezem e defendam a verdade, que não cedam relativamente ao que é inadiável realizar. Não das "elites" de compadrio, de dinheiro sujo, de influência, de fidelidade aos "cartéis", que são as "elites" que emergem e se tornam dominantes quando não se formam e promovem as verdadeiras elites. É este o problema.
Diz-se significativamente que "em Portugal quem tem um olho é rei". Do que precisamos é de um ensino que dê a cada um a possibilidade de usar o melhor possível os olhos que tem e, por isso mesmo, permita identificar o maior número daqueles a quem deve ser oferecida uma educação superior - digna desse nome - que lhes permita ver muito mais longe. No interesse de todos. Editor da Gradiva
1) A. Barreto insiste no que me parece ser o equívoco gravoso da formulação "a educação não é motor do desenvolvimento". Conhece A.B. algum caso de desenvolvimento em que não surja, sob alguma forma, o factor educação? A excelência (a educação, portanto) foi e é, hoje mais do que nunca, condição necessária do desenvolvimento. Se não é o "motor" é seguramente o combustível. O exemplo dos países de Leste que A.B. refere é um exemplo errado, que dá a impressão, seguramente injusta, de um desconhecimento básico daquela realidade. A. Barreto separa o que é implicante - excelência, sistema político e económico, confiança.... A equação do desenvolvimento é não-linear.
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
No comments:
Post a Comment