Tuesday, September 07, 2004

"o Futuro Não Pode Ser Reservado Só a Alguns"

Por MARIA DO CARMO VIEIRA
Público, Quinta-feira, 02 de Setembro de 2004

"A verdadeira generosidade para com o futuro consiste em dar tudo no presente"

Albert Camus

Como professora sinto a responsabilidade de bem fazer e creio que todo o trabalho que implique diariamente uma relação humana assim o exige. Daí considerar tão sublime a frase de Camus, que antecede o texto, e que mantenho como referência na minha vida profissional.

Passamos, com efeito, a maior parte do ano na escola, muitas dezenas de horas com os nossos alunos, e temos diante de nós rostos que, à partida, confiam na nossa competência, desejando simultaneamente a nossa amizade. Ao contrário do que alguma pedagogia tem vindo a espalhar, desde há alguns anos, um professor não é o "amigalhaço", ou aquele que tem de manter um "eterno sorriso" e uma "eterna juventude", segundo uns, ou o que não deve logo de início "mostrar os dentes", segundo outros, ou ainda aquele que pouco mais sabe do que os alunos, inflamando o seu discurso de uma "linguagem jovem".

A este propósito relembro um encontro, dinamizado por professores destacados no Ministério da Educação, na escola onde lecciono, a Secundária Marquês de Pombal, no intuito de esclarecer o pessoal docente sobre a nova metodologia pedagógica para o ensino. Revejo com pormenor fotográfico os três colegas que aí se deslocaram para nos ensinar "a mudança". Era, então, Ministro da Educação o eng. Roberto Carneiro. A dada altura, um desses colegas disse: Imaginem, que estão numa sala de aula, que há um sol soberbo lá fora e um aluno, ao contemplar o dia, sugere que vão para o recreio jogar. O que deveria então fazer o professor? A resposta surgiu de imediato: o resistente à mudança dissuadiria o aluno de tal propósito, argumentando que a aula servia para estudar; o compreensivo e "arejado pedagogicamente" (não mais esquecerei esta expressão) aceitaria de bom grado a proposta, convidando a turma a participar desse "convívio tão necessário à aproximação professor-aluno".

Estupefacta, pensei em voz alta - "Mas está tudo maluco!", frase que os meus colegas da Escola e do Ministério acharam de muito "mau tom", mas estes últimos, sorrindo, declararam que "já estavam habituados a estas resistências à mudança". Entretanto, a este discurso pedagógico do professor "amigalhaço" juntou-se o discurso miserabilista, que lamenta os "coitados dos alunos", e que apenas vem favorecer e acentuar o fosso entre estratos sociais que, insuportavelmente, se dicotomiza em ricos e pobres. A situação agravou-se com a despudorada exposição dos "rankings" das Escolas, apresentados em pormenor nos jornais, que concorreu para uma estigmatização primária dos "bons" e dos "maus", quase a coincidir, respectivamente, com os ricos e com os pobres. Um perfeito espectáculo de crueldade e de humilhação para centenas de alunos. Que jornalista, no entanto, se interessou em saber que medidas foram tomadas pelo Ministério da Educação para, com eficiência, diminuir o insucesso escolar? Onde se fizeram ouvir as vozes de tantos professores preocupados com a infantilização do ensino?

Continuarei a ser resistente a mudanças destas e não aceitarei, no caso da disciplina de Português, substituir a Literatura, e a Arte em geral, por programas televisivos, publicidade, noticiários, dada a confrangedora pobreza do vocabulário utilizado, para além dos sucessivos e numerosos erros graves do ponto de vista gramatical. A listagem a exemplificar seria longa e causaria vergonha. Não substituirei, pois, a qualidade pela mediocridade e continuarei a criar e a intensificar nas aulas de Português uma saudável convivência com a Arte, nela privilegiando a Literatura, mas sempre em íntima ligação com a pintura e a música. Procurarei que aluno algum (adolescente ou adulto) desconheça a cultura mestiça que somos, no estudo da formação e do enriquecimento do léxico português, por exemplo, com relevância para a influência árabe; ou ignore a importância da simbologia judaica nas Cantigas de Amigo e a sua fonte bíblica, nomeadamente o "Cântico dos Cânticos" de Salomão, ou deixe de reflectir sobre a figura "veneranda" do Velho do Restelo (agora retirado do estudo de "Os Lusíadas"); ou desconheça ainda a "Carta do Achamento do Brasil de Pêro Vaz de Caminha"; ou confunda os autores e os séculos em que viveram, não sabendo distinguir, por exemplo, uma pintura medieval de uma renascentista. São alguns dos propósitos culturais que me proponho cumprir no decorrer das aulas, pelo facto de os considerar relevantes, não só para a formação cultural dos alunos, mas também para uma melhor compreensão dos autores programáticos e suas épocas.

Sei, por experiência, que esta atitude não será vã e que se multiplicarão alegrias decorrentes de gestos vários dos alunos, ao longo do ano, o que me bastará para resistir a uma mudança, que considero nociva e um atentado à inteligência e à sensibilidade. Relembro, no Ensino Nocturno, que agora lecciono, o aluno angolano, operário da construção civil, que comprou um Van Gogh da editora Taschen ("porque mais acessível"), depois de termos visto e analisado nas aulas várias pinturas suas; ou a aluna, empregada de secretaria, que me pediu emprestado o livro "Se Isto é um Homem" de Primo Levi, porque a comoveu o texto lido sobre "A partida para Auschwitz"; ou os alunos que também me pediram emprestado o Concerto nº 1 para piano e orquestra de Chopin e "As Quatro Estações" de Vivaldi; ou ainda toda uma turma a exigir conhecer mais sobre Aristides de Sousa Mendes e a sua atitude admirável de desobedecer ao Poder, para salvar milhares de judeus ameaçados pela deportação para os campos nazis.

Os exemplos seriam numerosos, mas creio que os acima descritos evidenciam o papel crucial da Escola no acesso de todos, sem excepção, à Cultura e ao Conhecimento, sendo em muitos casos essa a única via. Com Yehudi Menuhin continuaremos convictos a defender que "o futuro não pode ser reservado só a alguns".

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