Thursday, September 23, 2004

Um por Todos: o Jogo do "Faz-de-conta", CARTA AO DIRECTOR

Pùblico
Quinta-feira, 23 de Setembro de 2004

Sou professor numa escola de ensino básico que abriu portas no dia 16. Desde essa data tenho dado aulas, visto fazer parte do quadro da escola, pelo que os atropelos à profissão docente, que têm acontecido ultimamente, passam-me um pouco ao lado. Isso não quer dizer que não seja sensível ao problema de milhares de colegas, incluindo aqueles que conheço directamente e que, caso estranho, mostram um semblante optimista, apesar das atrocidades a que têm sido sujeitos. Não são eles os únicos afectados, mas nem é isso que aqui está agora em causa.

No tocante ao funcionamento da escola em que lecciono, tenho a dizer que tudo se passa num universo algo virtual, digno de um filme de ficção, dos mais arrojados. A nível de 2º ciclo, são quatro apenas os professores a leccionar e, no tocante ao 3º ciclo, sou apenas eu que estou em funções. Ou seja, há alguns professores (os do quadro de zona, colocados nesta escola, no ano passado) que têm um horário de substituições, devendo cumpri-lo relativamente aos professores que faltam. Mas quem falta? Os que, como eu, estão já ao serviço (e até nem faltam) ou aqueles que, sendo do quadro da escola, só se apresentaram no início do ano e nunca mais ninguém os viu, até porque fazem parte dos mais de 50 mil que estão por colocar em destacamentos? Isto é: olho para o livro de ponto e, por cada dia que passa, apenas eu assino e sumario as aulas, ficando um enorme vazio correspondente aos longos períodos em que os alunos se arrastam pelo recinto escolar, sem ordem de saída, como é de lei.

Mas também não é por eles que redijo estas laudas. Elas surgem a propósito da ficção criada em se insistir em abrir escolas, para criar números fictícios que credibilizem o Ministério da Educação e, indirectamente, o próprio Governo, ainda que à custa de tudo se passar em teoria e na forma do "faz-de-conta". Os alunos lá fazem o jeito de vir às minhas aulas e eu procuro fazer de conta que tudo acontece na maior das normalidades. (...)

Comecei por uns textos de diagnose, usando Herberto Hélder, Eduardo Lourenço e um senhor (Abílio Louro de Carvalho) que escreveu uma Carta ao Director do PÚBLICO, no dia 13 de Setembro. Textos que problematizam a sociedade, a nossa maneira de ver as coisas e a forma de nos interrogarmos sobre o real. Com Herberto, percebemos que o real não é exactamente aquilo que aparenta, porque "a lei da metamorfose" forma a "insídia do real" ("Teoria das Cores", in "Os Passos em Volta").

Eu creio que, como alguns alunos, não me reconheço, nem consigo rever-me no papel do um (eu) por todos (os outros professores). Sinto-me a personagem inventada, máscara de um delírio. É só quando paro para pensar (ou escrever coisas como esta) que deixo de me sentir alienado, porque me disponho a procurar a verdade.

Mas alguém quer que eu não pense e prossiga o jogo do "faz-de-conta". E eu não quero ser esses professores todos. Que diabo se faz numa escola assim, em que a nossa realidade não é de todo humana? Sou a pessoa que caminha e tropeça em si mesma, como num sonho. Depois de acordar, tenho de me identificar ("anagnórises"), mas não sei invocar o meu nome, porque, nesta realidade kafkiana, trocaram-nos os nomes todos e destituíram-nos de memória. O nome que tenho também foi inventado, para que não pudesse voltar a mim. Sou um, sou todos, não sou nenhum.

António Jacinto Pascoal

Professor

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