A segunda geração, por José Manuel Fernandes
Público, 25 de Março de 2005
O que se passou nestas semanas na Amadora é apenas sintoma de um problema maior que ainda não chegou
Uma reportagem editada quarta-feira no PÚBLICO, sobre um bairro de barracas do concelho da Amadora - o Casal de Santa Filomena -, traçava um retrato impressionante de um gueto onde nem a polícia se atreve a entrar. Só há três horas minimamente seguras por dia: entre as sete e as dez da manhã. Desde as sete porque já há luz, antes das dez porque a partir de então os jovens do bairro começam a acordar e a sair para as ruas e becos. Quando ainda são pouco mais do que miúdos assaltam para roubar um telemóvel ou uns sapatilhas. Quando chegam aos 18 anos entram no tráfico de droga e, dizem, tornam-se "mais discretos". Aos 20 podem já fazer parte de um dos grupos violentos que utilizam verdadeiros arsenais de armas proibidas.
Será que isto sucede por nesses bairros viverem quase só famílias de origem africana? Não, até porque as malhas dos gangs juvenis ou das quadrilhas mais adultas também agarram muitos jovens com outras origens. E sim, porque existe, ou começa a existir, um problema real com as segundas gerações da imigração que veio das antigas colónias.
Os pais, quando deixaram as suas terras, vinham determinados a trabalhar, a poupar e a arrecadar. Ainda hoje, como também se podia ler na reportagem, se levantam cedo para rumar aos seus empregos, tantas vezes duros e mal pagos - quase sempre duros e mal pagos. Só que eles têm a recordação do que deixaram para trás, e tal como os nossos emigrantes na França dos anos 60, os dos bidonvilles, esgalgam-se a trabalhar até para poderem ajudar quem ficou longe.
Os filhos já não têm essas referências. Aquilo que vêem para onde quer que olhem é uma sociedade de consumo onde circulam bens a que nunca terão acesso se seguirem as pisadas dos pais. Ir trabalhar para as obras, vender peixe nos mercados, trabalhar de noite como segurança ou de madrugada nas limpezas nunca lhes dará acesso às casas, aos carros e às televisões que vêem por todo o lado. E eles sabem que dificilmente encontrarão outros empregos. Muitos, senão a maioria, deixaram cedo a escola, em que não viam utilidade e onde tinham dificuldade em evoluir, para entrarem na vadiagem juvenil.
Sabem como gostariam de viver e sabem que, por meios normais, nunca terão dinheiro para viver assim. A tentação de seguir o exemplo dos que, um pouco mais velhos, já visitam o bairro em grandes carrões é com frequência irresistível.
Este padrão de marginalidade, estas histórias de uma difícil integração da segunda geração das comunidades imigrantes nem sequer é um exclusivo português ou dos que chegam da África negra. A França conheceu e conhece problemas muito semelhantes com os seus magrebinos. Mesmo quando estes vivem em subúrbios de sólidos blocos de apartamentos, e não nas vielas infectas de lugares como o Casal de Santa Filomena.
Claro que estes destinos não são uma fatalidade. Claro que há também as boas histórias de integração. Claro que mesmo na temida Cova da Moura também existe uma obra social capaz de produzir milagres de inserção e estímulo à aprendizagem, como é o Moinho da Juventude. Claro que há muito por fazer para tentar evitar a concentração destas comunidades em guetos onde não se entra e de que nem se querem ouvir as histórias.
Mas não nos iludamos: o que se passou nas últimas semanas na Amadora é apenas o sintoma de um problema maior que ainda não chegou - o problema que pode chegar quando, por exemplo, a natural reconversão do nosso modelo de desenvolvimento deixar de criar tantos empregos "nas obras" e, naqueles bairros, aos filhos ociosos se juntarem cada vez mais pais desempregados.
José Manuel Fernandes
Friday, March 25, 2005
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