As dores da direita (2) por José Manuel Fernandes
Público, 31 de Março de 2005
Como criar uma agenda contraciclo com o ambiente político, social, cultural e comunicacional dominante?
Vimos ontem como a herança do corporativismo salazarista, hostil à economia de mercado e à concorrência, e da revolução de 74/75, com a sua matriz socialista, se conjugam para, num país pobre e com pouca tradição empresarial, criar uma cultura política que, no domínio da economia, é iliberal. Pior: não é apenas uma sociedade que cultiva a solidariedade social assegurada por sistemas públicos, ou que prefere partilhar os rendimentos individuais em nome de uma maior igualdade - é uma sociedade que desconfia da iniciativa privada, é avessa ao risco e tem mais inveja dos ricos do que verdadeira piedade pelos pobres.
Este ambiente geral, esta forma de estar com muito de pré-moderno, de oposto aos valores burgueses que asseguraram o sucesso económico dos países mais dinâmicos, é muito desfavorável à afirmação de políticas liberais. Assim, se a velha direita é iliberal, os liberais de todas as sensibilidades - não só os de direita - sentem em Portugal verdadeiras dificuldades. Não é por acaso que, à direita, se fala mais depressa de democracia cristã ou até (por equívoca tradição) de social-democracia do que de liberalismo económico. Como não é por acaso que se receia separar águas e, no poder, se actua de forma ou titubeante ou incoerente: basta pensar no que os governos de Barroso e Santana não fizeram para estimular e regular a concorrência ou na forma como preferiram proteger os "negócios" que medram à sombra do Estado.
Os resultados já citados do referido inquérito sobre o posicionamento político - a Bússola política disponível no site do PÚBLICO - também mostram que os portugueses são mais depressa libertários do que autoritários (ou pelo menos assim se declaram).
Aí o paradoxo é outro, pois aquilo a que assistimos nas últimas décadas foi a uma profunda ruptura do quadro de valores dominantes. A rápida transição do autoritarismo para a democracia, por um lado, e de uma sociedade onde um terço da população vivia no campo para outra onde apenas um vigésimo viverá da agricultura criou um país que, mesmo sem ter vivido intensamente os sobressaltos da contracultura do anos 60, os integrou de forma quase instantânea, acriticamente e sem resistência.
Um dos sinais mais evidentes desta evolução é a radical alteração do peso e do papel da Igreja. Domingo passado, Vasco Pulido Valente admirava-se, recordando os últimos dois séculos de história, por os que pretendem refundar a direita não falarem da Igreja, quando esta foi sempre central nas clivagens entre a esquerda e a direita, do miguelismo ao jacobinismo republicano, do salazarismo ao PREC. É verdade que foi - mas já não é, ou não é da mesma maneira. Primeiro porque a Igreja implodiu enquanto força com peso e influência políticas determinantes - tanto encontramos padres a publicar anúncios radicais "de direita" como encontramos membros de órgãos muitos próximos da hierarquia (como a Comissão Justiça e Paz) a candidatarem-se às eleições pelos radicais "de esquerda". Depois, porque a doutrina da Igreja - cujos templos estão vazios - está a perder a batalha cultural, substituídos que estão a ser os seus valores pelos do "politicamente correcto". A Igreja ainda conta para realizar um bonito casamento - mas a religião nada pesa no momento da separação. Não é pela Igreja ou com a sua ajuda que a direita irá a algum lado.
O que lhe coloca o desafio de construir uma identidade em ruptura não só com o seu passado mas também em contraciclo com o ambiente político, social, cultural e comunicacional dominante.
(termina amanhã)
Thursday, March 31, 2005
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