Parte 3 por Fernando Ilharco
Público 21 de Março 2005
Quando Arafat morreu em Paris, Mourinho estava no Chelsea, a América em Bagdad. A Turquia às portas da Europa e a Nokia na China
Os ingleses já sabiam mas quando Abramovich, o russo milionário que não fala, no coração de uma das zonas mais selectas da capital britânica, comprou o Chelsea Football Club, eles tiveram a certeza: Londres já não era inglesa. Obviamente, não sendo de qualquer outro país ou Estado, tal como outras grandes cidades europeias, americanas ou asiáticas, Londres é hoje mais do que um espaço urbano, é um certo tipo de tempo, de mundo e de evento impossível de prever nos passados que passaram há não mais do que vinte ou trinta anos. Londres, tal como Nova Iorque ou Barcelona, é o mundo todo, ora festejando o presente ora querendo festejar, ou simplesmente olhar, o futuro; e trabalha, inventa e aguenta. Em Londres há mendigos deitados nas esquinas do metro, lendo livros até adormecerem ao frio. Londres é a terra onde Khadafi disse que se devia começar se se quisesse acabar à bomba com os terroristas da Al-Qaeda. Em Londres, onde coabitam mais de cem nacionalidades, onde a economia cresce há quase vinte anos, um português prepara-se para vencer o campeonato de futebol da terra-mãe do maior desporto de todos os tempos. No centro desta Europa da inovação e do dinheiro, uma equipa de um russo, liderada por um português, com jogadores de mais de dez países, colocou um estádio inteiro a cantar música tradicional de além dos Urais. Ao ritmo dos cossacos, no "Eu amo Abramovich!", ouvia-se o comentário de Nietzsche: "a vitória é o melhor remédio!" E isto nos écrãs das televisões portuguesas.
Ouvia-se mais; ouvia-se que num estádio cabem milhões de vidas, que em Londres, em Barcelona ou em Lisboa cabem todos os sonhos da vida de um homem. O futebol contemporâneo, na televisão de écrãs cada vez maiores, filmado de cima para baixo como se se tratasse da visão de um helicóptero, é o que é para nós, europeus, sendo isso e mais na Palestina, no Iraque, no Vietname, na Colômbia ou no Zimbabué. Se lhe juntarmos os videoclips da MTV, os Óscares de Hollywood, os anúncios dos telemóveis, dos automóveis e dos hotéis de luxo por todo o mundo temos uma das mais poderosas frentes informacionais e culturais globais. Nem o Iraque, nem as ruas de Beirute, nem os novos milionários chineses ou o terrorismo global são indiferentes a isto. No Marquês de Pombal, num carro japonês com matrícula francesa, um africano fala em inglês num Nokia finlandês. E ainda a história não chegou a metade, falta a China e o Médio Oriente.
Nos escassos anos deste novo século o mundo voltou a mudar, muito. O que era há muito era esperado por uns e temido por outros está em vias de acontecer. Pode parecer-nos estranho, escrevia-se salvo erro, na Harpers do mês passado, mas para quem vive em Xangai, Tóquio ou Hong Kong, nada é mais óbvio do que o mundo, hoje, não rodar à volta da Europa nem sequer da América. No Oriente, a China mutante, emergindo como uma Singapura gigante - para utilizar as palavras que Castells utilizou a semana passada em Lisboa -, com a economia a crescer 10 por cento ao ano, é o centro do novo furacão. É mais do que o centro, pois na China está 1/4 da população mundial. Em Pequim está também o departamento de investigação mais avançado da Nokia, a mais poderosa empresa do país mais competitivo do mundo actualmente, a Finlândia. Na China, no mercado mundial de maior crescimento, a Nokia investiga, entre outros desafios, a integração infra-estrutural, técnica e de protocolos, entre a Internet e a mobilidade dos telefones. Ninguém hoje no mundo da inovação e do futuro pode dar-se ao luxo de não estar na China. A China acordou e está aí a chegar. Hoje nos restaurantes e nas lojas de todas as coisas, amanhã nos computadores, nos automóveis, nas roupas, no design, nas administrações das empresas, nos laboratórios da investigação, nas universidades, etc. Hoje mesmo, quando se fala do coração da inovação fala-se já da China e dos chineses, cujo peso em Silicon Valley, a par do dos indianos, é dos mais relevantes quando comparado com o das outras nacionalidades, mesmo da americana.
Demasiado no presente, na Internet e na televisão global, bem como Heidegger nos idos anos 50 apontou a essência da tecnologia como revelação do mundo, os écrãs mostram as praias por todo o planeta, o Nasdaq, as roupas, as casas, os museus, o futebol, os iPods, os ténis com rodinhas, os tempos e os estilos das vidas possíveis neste mundo. Demasiado no presente, na Internet, nas guerras na televisão, nos escândalos e na publicidade por todo o lado, quase não nos damos conta da forma como neste novo século a vida no mundo está outra vez a mudar. A queda do muro de Berlim, a Guerra do Golfo e a Internet são história, isto é, passado, isto é, contexto. O centro do mundo, a energia mais vital, transformadora e modeladora do futuro, está hoje a estender-se ao Oriente, e ao Médio Oriente possivelmente também. Com a Turquia a aproximar-se da Europa, com os dois anos da intervenção norte-americana, com centenas de milhões de antenas parabólicas, com o milagre do progresso todos os dias nos videoclips pop e nos anúncios das empresas globais, todo o Médio Oriente está em mudança. "Tudo está a mudar no mundo árabe," ouvia-se a semana passada nas ruas de Beirute. Tudo, talvez seja exagerado, mas algo de importante pode bem estar a tomar um novo caminho. No Iraque, entre bombas e tiros, o tempo corre nas ruas e o comércio cresce, os carros aumentam e as eleições parecem estar a abrir um novo e possível futuro. No Líbano, com o processo de paz entre a Palestina e Israel finalmente a avançar, arrisca-se uma nova abertura à democracia e no Egipto novas eleições vão acontecer em breve. Muito boa e má gente sabe isto. O mundo árabe enfrenta o seu desafio final: o progresso, sim ou não e a que preço?
A Europa está também a mudar. A população está a tornar-se diferente e em dez ou vinte anos, o continente europeu pode ver-se como uma gigantesca plataforma cosmopolita. Muitos problemas demográficos e de emprego possivelmente vão ser resolvidos da forma em hoje o estão a ser, com imigrantes, do Brasil, do Leste, da África e da Ásia. Esta nova população europeia repete muitas corridas ao ouro da História e repete corrida nenhuma. A municipalidade de Barcelona realizou recentemente um inquérito ao nível de educação dos imigrantes e descobriu que em média havia mais universitários entre eles do que entre a população nativa da Catalunha, 27 contra 17 por cento, referiu Castells. Algo do género pode também passar-se em Portugal, onde são conhecidas as histórias de médicos, advogados e professores do Leste europeu, entre nós, a trabalharem na construção civil ou a servirem em cafés e restaurantes.
Quando Arafat morreu em Paris, Mourinho estava no Chelsea, a Turquia às portas da Europa, a América em Bagdad e a Nokia na China.
ilharco@gmail.com
Monday, March 21, 2005
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