Saturday, October 02, 2004

Lições para o Futuro Por SANTOS SILVA

Público
Sábado, 02 de Outubro de 2004

processo de colocação de professores não está terminado. Neste momento, contam-se pelas centenas os erros da última lista publicada: escolas que desapareceram, várias pessoas colocadas na mesma vaga, docentes enviados para níveis de ensino ou disciplinas para que não têm habilitações, professores do 1º ciclo a quem foram atribuídos horários incompletos, etc. O facto de a quantidade dos erros não atingir a proporção escandalosa do passado dia 21 e de todos ansiarmos pela normalização do início das aulas, não deverá fazer esquecer as injustiças agora cometidas e a obrigação de repará-las.

Acrescem mais dois problemas. Aparentemente, a nova solução informática terá limitado a recuperação de vagas a cada um dos subconjuntos de candidatos à mobilidade (por doença, por preferência conjugal ou por aproximação à residência). Se foi assim, a eficácia da solução teve como preço a violação de direitos dos candidatos e o desrespeito pelo critério da graduação profissional. O Ministério já deveria ter esclarecido plenamente este ponto.

O outro problema foi causado por mais uma imprevidência da equipa de David Justino. Ao passar o destacamento por doença para a primeira de todas as prioridades, o concurso abriu caminho à multiplicação de falsas declarações e atestados médicos, com enorme prejuízo para todos quantos, honestamente, se contiveram nos princípios e regras aplicáveis. Resultado óbvio: centenas de professores efectivos foram ultrapassados por falsos doentes e ficaram por destacar professores com reais e graves problemas de saúde.

É indispensável reparar todos estes erros e injustiças e ainda repor nos seus direitos aqueles que já foram penalizados por erros anteriores e deles têm recorrido. O que custará mais tempo e instabilidade, mais vagas supranumerárias, mais horários zero, mais deslocações de docentes de uma escola para outra. É, por isso, um insulto à inteligência dizer-se que ficou tudo resolvido na terça-feira passada e o processo está encerrado. E também não é totalmente verdade que uma pequena empresa informática tenha descoberto instantaneamente o ovo de Colombo que processou sem falhas 50 mil candidatos. A colocação de professores continua a fazer vítimas inocentes e a lista final deste ano contém um número de erros e omissões substancialmente superior ao que era normal. Uma e outra coisa exigem averiguação e responsabilização.

De qualquer modo, há lições que já podem ser tiradas para o futuro. E a primeira e mais importante é a que consiga integrar o desastre do concurso no caos mais geral que a direita semeou, em dois anos, no nosso sistema educativo. É que o ano lectivo não se ressente apenas daquele desastre. Ao mesmo tempo que ele ocorre, começa um novo currículo de ensino secundário que põe ainda mais em crise o ensino das ciências experimentais e que arranca sem qualquer trabalho prévio de informação aos docentes e famílias e orientação escolar dos alunos. Em 2005 haverá (haverá?) provas nacionais em certas disciplinas do 9º ano, mas nada se sabe sobre como se vão realizar e com que efeitos na progressão dos estudos. A administração educativa foi descapitalizada e está hoje incapaz de responder a qualquer solicitação das escolas. Consumiu-se toda a energia na tentativa de impor uma nova Lei de Bases que desafiava a própria Constituição e acabou logicamente por abortar.

Em suma, governou-se para o senso comum, desviando a atenção dos problemas reais do sistema, na ânsia de conseguir a chamada boa imprensa. É oportuno lembrá-lo hoje, que sai mais um "ranking": o Ministério continua a patrocinar essa espécie de campeonato nacional de notas, mas a avaliação das escolas jaz no mesmo cemitério para que a mandou David Justino (liquidando o processo de avaliação que encontrou já testado e praticado) e nenhum dos apoios prometidos às escolas pior colocadas no "ranking" foi concretizado!

Primeira lição, portanto: não é possível melhorar as coisas se não se fizer uma alteração radical de política, se não se reatarem os laços de confiança com as escolas, se não se abandonar a sobranceria, se não se chamar quem sabe e cuida da educação para as funções mais importantes do Ministério e da administração. Infelizmente, é de temer que tudo fique na mesma: a nova equipa política mostra a mesma arrogância da anterior e a mesma indiferença, para não dizer incompetência, pelo lado pedagógico, como se essa não fosse a razão de ser de todo o sistema, as escolas continuam entregues à sua sorte, e à administração continuam a chegar indivíduos que sabem tanto de educação como eu de aeronáutica.

Segunda lição: a consequência mais nefasta do processo de colocação não foi o atraso em várias semanas do arranque do ano lectivo, mas sim o enorme rombo provocado na organização e na imagem social da administração educativa e das escolas públicas. É, pois, aí que deve incidir o trabalho de recuperação. Que passa, incontornavelmente, pela condução sem falhas do próximo concurso. Como ele começa já em Janeiro, não são exequíveis alterações de fundo. Algumas correcções terão de fazer-se, designadamente para evitar a repetição do escândalo das falsas doenças. Mas o esforço principal tem de ser de natureza prática: acompanhar politicamente desde o início o próximo processo, ouvir bem as forças sindicais no seu decurso, construir sistemas técnicos fiáveis e com válvulas de segurança. Sei, senhora ministra, que dá trabalho, mas é para isso que supostamente foi empossada...

Terceira lição, a de efeitos menos imediatos, mas a mais decisiva para a solução, a prazo, do problema. Ao contrário do que sustentou o Governo Durão Barroso, não é centralizando e uniformizando ainda mais o processo de colocação dos docentes que se favorece a estabilidade. É, sim, aumentando gradual e progressivamente as margens de autonomia das escolas na gestão do seu pessoal (mormente através da possibilidade de contratação própria para certos grupos de disciplina ou certos cursos, e de recondução, em certas condições, dos docentes que lhe foram afectados). É incentivando aqueles que se dispõem a ceder no seu direito à mobilidade em troca de outro tipo de benefícios (concedendo, por exemplo, alguma prioridade aos que aceitarem uma colocação plurianual). É fazendo depender menos a graduação da simples soma das classificações da formação inicial (não calibradas entre si) e dos anos de serviço.

Esta é uma boa, mas complexa discussão, até porque lidamos com um caso clássico de conflito entre vários interesses legítimos. Mas é uma discussão que vale a pena ter, nos termos adequados: quer dizer, não com os que semeiam o caos na escola pública que desprezam, mas sim com os que pretendem promovê-la e melhorá-la.

PROFESSOR UNIVERSITÁRIO

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