Público
Terça-feira, 05 de Outubro de 2004
Lembram-se da discussão sobre o grau de alcoolemia permitido aos condutores? Lembram-se da campanha dos produtores de vinho (e não só) para lutar contra aquilo que consideravam um ataque aos vitivinicultores, um insulto aos enólogos e uma afronta a um milhão de portugueses e ao próprio Baco? Era inútil tentar explicar que a lei não pretendia impedir ninguém de despejar dois litros de vinho pela goela abaixo a cada refeição, caso o desejasse, mas apenas proibir de conduzir quem o fizesse. Em rigor a questão não seria pois "agora já nem nos deixam beber", como o "lobby" vínico indignadamente pretendia, mas sim "agora já nem nos deixam conduzir". Mas ninguém parecia interessado em ver a questão pelo ângulo da restrição da condução, já que o direito a sentar-se ao volante é, para muitas pessoas, algo mais inalienável do que o direito ao voto.
Uma reacção parecida espreita quem tente contestar junto de um funcionário público a "tolerância de ponto" que o Governo entendeu decretar. A questão não é se um funcionário público pode ou não fazer uma ponte de vez em quando, mas sim se precisa que lhe ofereçam um dia de descanso suplementar para esse fim. É absolutamente razoável que um trabalhador queira aproveitar um feriado a uma terça-feira para gozar um fim-de-semana prolongado - se a organização do seu trabalho o permitir. Mas nesse caso que faça o que é razoável: gaste um dia das suas férias para fazer a ponte. O que teria como vantagem (considerando que nem todos poderão ou quererão fazê-lo) que os serviços poderiam continuar a funcionar. O que é completamente descabido é que, na actual situação do país, o Governo decida que os funcionários públicos (e, por arrastamento, muitos outros trabalhadores, em sectores que imitam a prática do Estado ou dele dependem para a sua actividade quotidiana) possam reduzir os seus dias de trabalho e paralisem por um dia toda a função pública (com mais eficácia que uma greve). Será que na educação, na administração fiscal, na justiça ou na saúde o Governo considera que os resultados são tão bons que o país se pode permitir este bónus?
A "tolerância de ponto" é uma dessas expressões de "newspeak" que faz as delícias dos políticos. A expressão reserva a melhor imagem para quem decide (fonte de tolerância), transferindo o eventual ónus para quem escolhe beneficiar ou não dessa tolerância e gozar ou não um feriado extra. É evidente, porém, que uma das principais razões para decretar esta "tolerância de ponto" reside na confusão que ainda reina nas escolas, a braços com professores por colocar. O caos escolar poderá ser camuflado por mais dois dias, mas isso não torna a decisão mais aceitável. Para melhor desviar as atenções, o Governo fez mesmo questão de dizer que as escolas podiam abrir as suas portas, se assim quisessem (desresponsabilizando-se hipocritamente de mais este adiamento no início das aulas), mas é indiferente que as escolas abram os portões, quando os professores não aparecem, gozando o privilégio que lhes foi concedido pelo próprio Governo. (Na realidade, é pior ainda, já que isso obriga os alunos a deslocar-se à escola, em vão, e não lhes permite nem ter aulas nem gozar a "ponte".)
O que é triste é que, mais uma vez, os sindicatos de professores tenham entendido saltar no ar para apanhar esta cenoura, em vez de denunciar a medida como o que ela é: mais um gesto populista, que pode ser agradável por um dia, mas é má para o país, para a função pública, para as escolas e para os alunos. Se os funcionários públicos queriam dar de si mesmos uma imagem de responsabilidade e de empenhamento cívico, perderam uma excelente oportunidade.
É sabido que a direita neoliberal se preocupa pouco com o desempenho do Estado, pois a ineficiência do sector é um excelente pretexto para privatizar serviços (saúde, segurança social, educação) ou para reduzir o seu âmbito com base no alto custo. Mas ver sindicatos pretensamente de esquerda a alinhar nestas manobras dá-nos a medida do desconcerto reinante.
Tuesday, October 05, 2004
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
No comments:
Post a Comment