Tuesday, October 05, 2004

A Esquerda Contemporânea (2) Por EDUARDO PRADO COELHO

Público
Terça-feira, 05 de Outubro de 2004

O grande motivo de debate no congresso do PS foi a política de alianças. Depois de uma intervenção perversamente venenosa, segundo o estilo mais sofisticado de Jaime Gama, assistiu-se a uma triste "performance" de Sérgio Sousa Pinto, que parece capaz de tudo para se manter na proximidade do poder - e que instrumentaliza ideias com um cinismo imoderado. Poderíamos considerar que Sérgio Sousa Pinto tinha mudado de concepções políticas, o que é não apenas legítimo como por vezes desejável. Mas esta fúria de neófito justiceiro parece de mau augúrio. A ver vamos.

Sérgio Sousa Pinto, num momento arrebatado, tanto mais arrebatado quanto mostrava total falta de convicção, afirmou: "Não precisamos do Bloco de Esquerda. Não precisamos do PCP. O país não nos pede que façamos alianças à esquerda." Esta frase significa apenas: eu estou a falar em nome do país. Isto é, reencontramos o velho truque retórico de um discurso que se legitima "em nome de" - neste caso, em nome do país. Mas quem disse a Sérgio Sousa Pinto o que o país pede ao PS? Onde é que ele o descobriu? Quando é que foi iluminado pelos deuses da nação?

Vimos também uma entrevista na televisão de Jorge Coelho, depois de um daqueles discursos inflamados que suscitam nos que o ouvem um sorriso que corresponde a afirmar: cá temos nós o Jorge Coelho no seu melhor. Pois na televisão levou os malabarismos ao seu máximo: perguntaram-lhe com quem se coligaria o PS, caso não tivesse maioria absoluta. Ele poderia dizer (como fez Sócrates) que este não era o momento estratégico para colocar o problema. Mas Jorge Coelho preferiu o inverosímil: "O PS vai ter maioria absoluta, nem consigo imaginar que não tenha." "E se não tiver?", insistem; e ele responde: "Mas vai ter, só pode ter." Metia-se pelos olhos dentro que Jorge Coelho só queria afastar a resposta. E o álibi que utilizou é a zona cega desta estratégia de Sócrates. A verdadeira pergunta é: não tendo, como é mais do que provável, maioria absoluta, o PS vai viver de subterfúgios limianos, prefere aliar-se à direita do PP, ou prefere aliar-se à esquerda do BE ou do PCP?

Mas a questão dita "ideológica" não pode restringir-se a estas alternativas. Nem talvez seja suficiente dizer que o PS se distingue pela defesa de mais igualdade. Em primeiro lugar, porque o tema da igualdade raramente aparece nas intervenções. Em segundo lugar, porque a igualdade tem problemas teóricos complexos: igualdade ou equidade? Como conciliar igualdade com liberdade? Entre uma liberdade económica (a liberdade de troca) e uma igualdade social, religiosa, cultural, quais são as complementaridades e quais são as contradições?

Antes de tomarmos qualquer opção, precisamos de fazer um diagnóstico: quais são os princípios que permitem hoje distinguir a esquerda da direita? Porque a esquerda pensa que a esquerda moderna se confunde com a direita. E a esquerda moderna considera que a esquerda tradicional é uma obsoleta esquerda radical (indo mesmo ao ponto de, num momento de projecção fantasmática, achar que a esquerda supostamente moderna é uma defensora de mais Estado). É preciso ultrapassar este enredamento doentio e tentar dizer o que mudou em termos de sociedade (novas formas de pobreza, formas implacáveis de produção de subjectividades, generalização dos valores individualistas, efeitos positivos e negativos da globalização, limites da segurança social, questões da infância e da terceira idade, problemas da imigração, etc.) e o que tem de mudar em termos de Partido Socialista.

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