Tuesday, October 05, 2004

O Fim da "Quadra Natalícia" Por TERESA DE SOUSA

Público
Terça-feira, 05 de Outubro de 2004

1. Na semana passada, num seminário organizado pelo Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI) e pela Fundação Luso-Americana (FLAD) em torno da crise transatlântica, um dos intervenientes, João Marques de Almeida, resumindo os actuais dilemas europeus, afirmou que o problema da Europa era viver todo o ano "em plena quadra natalícia". O que o orador quis dizer - e que foi dito por outros participantes - foi que a retórica europeia sobre uma ordem internacional multipolar em oposição ao mundo unipolar em que vivemos (mais do que ao unilateralismo da administração americana, que é outra coisa diferente) esbarra com a sua persistente incapacidade para enfrentar os problemas mundiais, velhos e novos, e a nova realidade internacional em que tem de viver.

Sabemos que esses desafios são muitos.

Mais de 70 por cento dos europeus afirmam que a Europa deve ser uma superpotência capaz de ombrear com a América, mas exactamente a mesma percentagem não está disposta a gastar nem mais um cêntimo com a defesa.

Querem preservar a sua riqueza e o seu modelo social, indiferentes a realidades como o envelhecimento acelerado da sua população ou a entrada nos mercados internacionais de potências como a China ou a Índia.

Pregam a abertura ao mundo árabe e islâmico mas as suas políticas em relação ao Magrebe e ao Médio Oriente são no mínimo incipientes e, na prática, pouco relevantes.

Querem aliviar a fome no mundo e ajudar a combater a pobreza, defendendo que está aí, em boa medida, a causa dos conflitos, mas não querem desmantelar a PAC, que asfixia mais do que qualquer outra coisa as possibilidades de desenvolvimento dos países pobres.

Pregam a democracia e os direitos humanos e apresentam-se ao mundo como as referências morais do Ocidente mas defendem, com um assinalável realismo, a manutenção do "status quo" no Médio Oriente à falta de melhor alternativa para as ditaduras do que o fundamentalismo islâmico. E não se importam de obsequiar qualquer déspota africano desde que pertença à respectiva esfera de influência.

Preferem viver, regressando à expressão feliz de Marques de Almeida, em permanente "quadra natalícia", aliás diariamente alimentada pelo discurso da maioria dos responsáveis políticos.

Pode a Europa continuar a viver neste "dolce fare niente"? Não pode. Sobretudo, se quer mesmo preservar o que há de essencial no seu modelo de justiça, de paz e de integração. Pela simples razão de que, mesmo que não queira, o mundo lhe bate à porta e entra sem pedir licença. Sob a forma de perda de competitividade das suas empresas. Com o envelhecimento acelerado da sua população. Através dos problemas de integração dos seus imigrantes e pelas sucessivas vagas de refugiados de todas as misérias que desaguam nas suas margens. Disso se encarrega o caudal de violência insuportável de todos os actuais e potenciais "Darfur", aos quais apenas presta uma atenção intermitente e comedida. Com o terrorismo islâmico, que não faz distinções entre bons e maus ocidentais. Pelo risco real de um choque de civilizações que não se afasta com belos discursos mas com uma capacidade de acção internacional que exige não apenas princípios mas recursos e políticas.

2. Tomemos a questão turca que, talvez como nenhuma outra, simbolize a fragilidade moral e política da Europa.

O "Economist" chamava-lhe uma história de "suspense". Talvez seja, no sentido em que a Europa escolheu, também aqui, a via de olhar para o lado até que o problema lhe rebentasse na cara. Mas o seu desfecho já não constitui dúvida para ninguém.

Na quarta-feira, a Comissão vai aprovar o seu último "relatório de progresso" que, apesar de mitigado, reconhece os esforços significativos de Ancara para responder a todas as exigências da União.

Apesar das tergiversações de alguns governos, os líderes europeus não vão ousar barrar o início das negociações de adesão. Sabem que não têm outra alternativa. Que a sua política dos pequenos passos criou uma engrenagem imparável que apenas pode conduzir a essa decisão. Iludem-se, uma vez mais, ao apostar em que as negociações se arrastarão por tempo indeterminado, adiando de novo o problema.

Suprema ironia, a condição islâmica da Turquia acabou por transformar-se no seu maior trunfo. Fechar a porta na cara a um candidato de longa data que se tem esforçado por cumprir todas as exigências da União podia ser possível se não se tratasse de um país islâmico. Os efeitos dessa recusa seriam devastadores no mundo islâmico, reduziriam a nada toda a retórica europeia sobre o diálogo entre civilizações, religiões e culturas, teriam um efeito negativo nas minorias islâmicas que vivem na Europa e que a Europa precisa de assimilar.

Mas dizer que sim tem um preço igualmente muito alto. Porque desviaram a cara do problema, os governos europeus têm agora pela frente a hostilidade da maioria dos europeus à ideia da integração turca. Não a poderão combater com panos quentes nem tentando de novo retirar a questão da agenda europeia.

3. É certo que a Europa tem vindo a responder, melhor ou pior, às novas circunstâncias internacionais. Alargou-se à dimensão do continente, expandindo a democracia, a estabilidade e a perspectiva de prosperidade até às suas fronteiras. Deu passos no sentido da afirmação da sua identidade política, com novos instrumentos de acção externa e de defesa comum. Está nos Balcãs e está no Afeganistão.

Falta-lhe adquirir uma dimensão estratégica: definir os seus interesses e o seu lugar no mundo e dotar-se dos meios e dos instrumentos necessários para os defender.

Isso implica, como disse o chefe da diplomacia alemã, Joschka Fischer, fazer algumas escolhas importantes. Como, por exemplo, privilegiar o alargamento, incluindo a própria Turquia, em lugar de sonhar com um "núcleo duro" europeu que pudesse continuar paulatinamente a seguir o guião dos velhos federalistas para uns "pequenos Estados Unidos da Europa" - quando a Europa era "ocidental" (no sentido geográfico e não político do termo), homogénea e protegida e o interesse nacional americano se defendia na fronteira de Berlim.

"Antes, eu fazia parte das pessoas que eram 51 por cento a favor da adesão da Turquia mas com 49 por cento de dúvidas. Mudou a minha posição na sequência do 11 de Setembro. Desde aí, tornou-se cada vez mais claro para mim que a integração europeia também tem uma dimensão estratégica." Palavras de Fischer, porventura um dos mais lúcidos políticos europeus, ao "Berliner Zeitung".

A integração turca é uma questão estratégica para a Europa. À qual a Europa tem de responder positivamente, assumindo ao mesmo tempo a sua nova dimensão estratégica. Algo intermédio entre o sonho de um super-Estado europeu e uma superpotência mundial. Com a determinação, os recursos e a capacidade política suficientes para influenciar decisivamente o curso dos acontecimentos mundiais a seu favor. A alternativa é o declínio.

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