Público
Domingo, 03 de Outubro de 2004
sabido que palavras a mais cansam. Que a repetição de imagens na televisão anestesia. Que os protestos excessivos acabam por ter o efeito contrário, o de tornar as pessoas insensíveis. E que a sucessão de manifestações de revolta cria uma espécie de imunidade das consciências e das emoções. Mesmo assim, o que se passou nestas últimas semanas, com a colocação de professores, consegue ainda hoje, pousada a poeira, provocar a estupefacção. Não me sai da memória aquela imagem do professor belga que, informado dos desastres portugueses, apenas podia articular uns espantados "É inconcebível", "É inimaginável"! O que na verdade se passou foi um dos pontos mais altos da degradação social em que vivemos. Aflige o desprezo a que são votados pais e famílias, alunos e professores, por um sistema administrativo refém de sindicatos, cativo de ministros e servo funcionários arrogantes, convencidos das suas construções intelectuais e políticas e obcecados com os seus privilégios.
Não sei, nem me interessa muito sabê-lo, se este foi o pior ano de todos. Foi certamente um dos piores. Mas não esqueço, nestes últimos trinta anos, outros desastres semelhantes. Como recordo também falhanços talvez menos caricatos na televisão e menos visíveis na praça das emoções públicas. Muitas vezes o desastre era mais discreto ou mais simples. Ou antes, apenas visível nas centenas de escolas a que faltavam professores até Dezembro ou Janeiro. Nos milhares de alunos, dispersos pelo país, com "furos" nos horários até muito tarde. E nas centenas de milhares de alunos só com aulas de manhã ou de tarde. Lembro-me de tudo. Por isso, a tão especial imbecilidade deste ano surge apenas como mais uma. Este género de competição que consiste em saber quem foi o pior, numa situação permanente e globalmente deficiente, constitui fonte de engano. Na verdade, para se ter chegado aqui, a responsabilidade é realmente do "sistema" e das luminárias que, no ministério e nos sindicatos, o inventaram e administraram durante décadas. O "sistema" está errado nos seus fundamentos. Repará-lo é inútil. Substitui-lo é urgente. Mas podemos ter a certeza de que, passado o tumulto, toda a gente se vai esforçar, preguiçosa e arrogantemente, por reparar o irreparável. Até um dia...
O mais grave de tudo isto é a aniquilação da escola como instituição responsável, dos pais como parceiros indispensáveis, das comunidades locais como primeiros interessados, dos professores como profissionais dignos e dos alunos como destinatários. Penoso é verificar a inexistência de uma autoridade na escola e ver que esta entidade é incapaz de, em Abril ou Maio, ter totalmente preparado o seu ano lectivo seguinte, incluindo o corpo docente, os manuais escolares, os horários fixos e estáveis e as obras de Verão planeadas. Doloroso é observar a miserável proletarização de professores que, durante dez ou vinte anos, andam de sítio em sítio, com efeitos nefastos para si e suas famílias, mas sobretudo para as escolas e as comunidades. Irritante é perceber, mais uma vez, que, ao longo do ano, problemas semelhantes se repetem com professores doentes ou faltosos não substituídos, com a impossibilidade de uma escola escolher os seus professores e assegurar a necessária estabilidade do quadro docente. Confrangedor é ainda perceber que, por entre destacamentos, requisições, transferências, regimes especiais e atestados médicos de conveniência, se instalou no sistema, aparentemente neutro e impoluto, a corrupção, o despotismo burocrático e o caos organizativo. É, finalmente, impressionante, verificar o ódio e a repulsa existentes, em Portugal, contra as instituições livres e responsáveis! E não se pense que as consequências deste estado de coisas se reflectem apenas ou sobretudo nas colocações de docentes e na desordem administrativa. Os verdadeiros resultados estão aí, uma vez mais, bem visíveis, nos resultados das escolas e respectiva classificação. A competição entre público e privado é uma questão secundária. Lamentável e grave são as médias das escolas e das disciplinas. Quase dois terços das escolas secundárias do país (num total de mais de 600) têm médias globais negativas (inferiores a 10 valores) no conjunto das oito principais disciplinas, incluindo Português, História, Matemática, Química, Biologia e Física! Alguém perceberá que são gerações inteiras perdidas? Que este panorama de catástrofe é irrecuperável antes de dezenas de anos? Como é possível que todo um país, das indiferentes burguesias aos distraídos professores e das inexistentes elites aos vorazes empregadores, não reaja contra este estado de coisas?
O país tem professores suficientes. Talvez até a mais. Os orçamentos de Estado, mais milhão menos milhão, chegam. Os edifícios também. Esses não são os problemas. Se alguém pretender encontrar soluções é aí que as deve procurar. Quando perceberão os responsáveis (ministros, funcionários, professores...) que necessitam de diversificar os modelos de gestão? Que as escolas devem ser dirigidas por um director nomeado e contratado por alguns anos? Que a escola deve ser responsável pela selecção e pelo recrutamento dos seus professores? Que cada escola deve anunciar, em Maio, o seu corpo docente, os seus horários e os seus manuais escolares? Que os professores devem ser contratados por vários anos e obter a estabilidade ao fim de um ou dois contratos? Que todos os alunos devem ter horários diurnos completos, de manhã e de tarde, incluindo tempo de estudo e actividades organizadas? Que as escolas devem ser entregues às autarquias, ficando o ministério com as responsabilidades do currículo nacional, da inspecção e do planeamento financeiro nacional?
E se, em vez de usar o computador ou de o fazer à mão, colocassem os professores com a cabeça? Talvez não fosse má ideia.
Sunday, October 03, 2004
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