Público
Sexta-feira, 01 de Outubro de 2004
"Esta gente cujo rosto
Por vezes luminoso, outras vezes tosco
Ora me lembra escravos, ora me lembra reis..."
Sophia de Mello Breyner Andresen
Choraram-se lágrimas hipócritas pela vitória esmagadora de José Sócrates no Partido Socialista. Choraram-nas as vestais do templo socialista, para quem Sócrates desvirtua a esquerda, os seus nobres valores e as suas sabidas realizações pelo bem comum. Choraram-nas à direita que, coitada, se sente agora órfã de esquerda e que comunga das dores "socialistas" por ver chegar à direcção do PS um homem que trocou "os valores" pelo "pragmatismo".
Em suma, Sócrates é acusado por um dos lados e temido pelo outro porque, sem cerimónias, se assumiu como candidato a tomar o poder e derrubar este Governo até 2006. E, ao que parece, o poder é pecado e a missão ingente de apear o Governo de Santana Lopes não é, em si mesma, tarefa digna e suficiente.
Tivessem sabido o que eu fui sabendo esta semana, sobre o assalto geral aos lugares do Estado e das empresas públicas por parte de um rol de incompetentes e oportunistas, amigos do ministro Fulano ou Beltrano, santanistas de sempre ou da 25ª hora, e entenderiam que nada é mais urgente do que o êxito da missão de Sócrates. Tivessem reparado em como as notícias que interessam ao Governo vão aparecendo colocadas estrategicamente em certos jornais, como os "ministros fortes" atacam os fracos e os 'lobbies' de apoio a cada ministro vão marcando o seu terreno através das agências de comunicação e imagem de que cada um dispõe, tivessem notado a arrogância snob da ministra da Educação face ao drama humano em que a incompetência do seu ministério colocou centenas de milhares de professores, alunos e pais, tivessem tomado conhecimento da preocupação do primeiro-ministro em encontrar um forte do Estado à beira-mar para os seus tempos livres, e perceberiam que a missão não consiste apenas em mudar de Governo mas em mudar de gente. Não é, sequer, a composição política do Governo que está em causa: é esta gente. Foi isso que Jorge Sampaio não compreendeu.
Ao contrário do que muitos escreveram, o que a direita mais pretendia era um secretário-geral do Partido Socialista que nem sequer se assumisse como candidato ao lugar de Santana Lopes. Que fizesse do regresso aos valores "históricos" do socialismo e da cedência à eterna tentação de atrelar o que resta do museu leninista do PCP uma tarefa mais urgente e mais nobre do que a de derrubar esta maioria e substituir um governo de negociantes da coisa pública por um governo de servidores da coisa pública. A direita teria adorado acordar no sábado passado com um PS dirigido por alguém que, com todas as boas intenções do mundo, afugentaria para as calendas de 2010 todo e cada um do tal milhão de eleitores flutuantes que decidem as maiorias e os governos.
Mas, se isso não fosse, por si só, bastante, há também a diferença entre o que se proclama e o que se realiza. Sócrates foi um dos raros socialistas convictamente contra o bloco central; foi membro dos Governos de Guterres, dos quais o primeiro foi um governo de realizações sociais concretas e positivas, e do qual não fugiu na hora do aperto, como algumas flatulantes importâncias que por aí se exibem; foi o primeiro secretário de Estado do Consumidor que ousou afrontar e pôr na ordem alguns poderes estabelecidos que se julgavam com direito de ditar as regras dos negócios de que eram parte; e foi um excelente ministro do Ambiente, com razão em tudo e sobretudo no projecto da co-incineração, derrotado, sem a mais pequena razão científica ou política, por Manuel Alegre.
Mas, seja qual for o ponto de vista pelo qual se olhe, sobra uma coisa incontestável: com José Sócrates, vai regressar a oposição socialista, que há mais de dois anos não existia e cuja ausência, aliás, constituiu a única razão compreensível para que Jorge Sampaio tenha aceite caucionar o golpe de Estado palaciano e partidário que nos deu em sorte Santana Lopes como primeiro-ministro e Durão Barroso em eufórica fuga às suas responsabilidades.
2. Ontem, o PÚBLICO noticiava que "a solução imaginativa" que Santana Lopes congeminou, como presidente da CML, para ajudar a resolver o problema de o Benfica construir um estádio novo sem dinheiro, já custou, até agora, perto de oito milhões de contos à EPUL (isto é, à Câmara de Lisboa), sem qualquer retorno. Durante mais de um ano, andei a escrever sobre este "negócio de interesse público", como lhe chamou Santana Lopes, e cujos pontos mais chocantes consistiram em a CML pagar ao Benfica seis milhões de contos por uns terrenos que eram da própria Câmara e que esta tinha doado para a construção de instalações desportivas que não haviam sido feitas, e ainda lhe dar, "cash", mais 2,5 milhões de contos, antecipados e a título de metade previsível dos lucros da venda de uma urbanização que a EPUL iria construir, inteiramente a expensas suas.
Esta semana também, ficou a saber-se que o sr. Stanley Ho vai arrancar com as obras do futuro Casino de Lisboa, em terrenos camarários e através de uma autorização extraordinária do Conselho de Ministros, como contrapartida de ele ajudar a financiar os futuros teatros do Parque Mayer - onde Santana Lopes não conseguiu apresentar uma ideia nem um projecto definitivo e de que nem sequer conseguiu que a CML detivesse a propriedade. Ou seja, o mais provável é nem sequer vir a haver Parque Mayer da câmara, mas haverá certamente casino do sr. Ho. E acabarão a vender-nos a ideia de que o casino, por si só, é um benefício para a cidade.
E, quanto ao túnel do Marquês, que fecha a trilogia inesquecível da obra realizada por Santana Lopes em Lisboa, nem vale a pena falar, porque a imagem do "futuro em marcha" está aí, diariamente a ser visto e sofrido por milhares de lisboetas.
Tudo isto só foi possível, recorde-se, por vontade popular. Foi a gente de Lisboa que quis experimentar Santana Lopes à frente dos destinos da sua cidade. Acreditaram que ele era o homem certo para a tarefa, que certamente levaria até ao fim, deixando Lisboa melhor do que a encontrara. Isso deve dar-nos que pensar. Isso e as incríveis circunstâncias em que João Soares conseguiu, depois da excelente obra que fez, a impossível proeza de perder a eleição. Só mesmo por delírio voluntarista é que ele conseguiu dizer agora aos militantes do PS que era "o melhor candidato para derrotar Santana Lopes em 2006".
3. Uma vez mais, os médicos de Bragança prestaram-se à indecente atitude de assinar falsos atestados de saúde para permitirem que professores ultrapassassem outros nas colocações, invocando a necessidade de prestarem assistência a familiares pretensamente doentes. Já há dois anos atrás os mesmos médicos de Bragança tinham inundado o Ministério da Educação com uma epidemia de atestados, jurando que quase todos os alunos do 12º ano do distrito estavam incapacitados de poderem concorrer à 1ª chamada dos exames. A investigação subsequente acabou, como é de costume, em nada. Agora, gostava de saber o que terá a dizer algum desses médicos ou desses professores batoteiros ao leitor José Alegre Mesquita, de Carrazeda de Ansiães, que ontem aqui escrevia que, por se ter recusado a seguir o mesmo expediente, terminara por, pela primeira vez em 24 anos de professor, ser colocado fora do seu local de residência, em benefício de um dos portadores de falsos atestados. Como bem perguntava o leitor, será que o Sindicato dos Professores e a Ordem dos Médicos vão manter o silêncio sobre esta vergonha? Que médicos são estes que não têm pudor de jurar em falso, sabendo que estão a prejudicar terceiros de boa-fé? Que professores são estes a quem não dói a consciência por ultrapassarem colegas que se recusaram, como eles, a usar da mentira e da deslealdade? Que valores vai esta gente ensinar em suas casas ou nas suas escolas?
4. Tal como Pacheco Pereira, também eu fiquei enojado e deprimido com as imagens dos populares de Figueira, exigindo justiça pelas suas mãos contra os supostos assassinos da pequena Joana, clamando pelo regresso da PIDE, e arrastando-se, dia após dia, numa exibição de voyeurismo e falsa indignação perante o olhar ávido das câmaras de televisão. Tal como o José Pacheco Pereira, também eu digo que por este "povo" não tenho nenhum respeito.
A miséria, as desigualdades, o analfabetismo, não explicam tudo e não legitimam nada. Não é o regresso da PIDE ou da ditadura que nos falta ou que iria melhorar o que quer que fosse. O que nos faz falta é a reconstrução de uma elite, que tenha valores, que seja capaz de se bater por eles e que dê o exemplo. Eis uma coisa que a esquerda, amarrada ao Corão marxista-leninista, nunca percebeu. E que a direita transformou no triunfo do dinheiro e da hipocrisia. A morte das elites sempre serviu a emergência dos medíocres. Hoje, serve o "tempo novo", em que triunfa o oportunismo, a boçalidade e a venalidade. Não é Deus que está morto, são os homens bons que já não moram aqui.
Jornalista
Saturday, October 02, 2004
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