Público, Segunda-feira, 25 de Outubro de 2004
O director do Observatório de Políticas de Educação e Contextos Educativos da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias diz que tudo se pede aos professores, que têm não só de ensinar como ser mães e pais, psicólogos, assistentes sociais e polícias. Saber lidar com a diversidade de alunos que estão na escola é o grande desafio. Por Isabel Leiria
Professor aos 18 anos, fundador do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa e primeiro secretário-geral da Federação Nacional dos Professores, António Teodoro tem-se dedicado nos últimos anos à carreira universitária e à investigação em Ciências da Educação. Diz que a escola não pode continuar a "ensinar a muitos como se fossem um só".
PÚBLICO - Em virtude do que aconteceu este ano com a colocação de docentes, mas também com a instabilidade da carreira e as exigências da profissão, acha que os professores são uma classe desmotivada?
António Teodoro - Este concurso foi um verdadeiro desastre e representou um recuo de mais de 20 anos na sua funcionalidade. Mas o mal-estar da profissão docente, que é grande e está estudado, decorre de um conjunto muito complexo de situações. Estes acontecimentos apenas o agravam.
Quais são essas razões mais complexas?
Em primeiro lugar, tem a ver com a própria crise de sentido da escola e do trabalho docente. À escola e aos professores é pedido tudo. Não apenas que respondam às antigas atribuições - ensinar a matéria - mas a todas as outras que resultam do facto de na escola estarem agora todos os grupos sociais. Todos os problemas sociais tornaram-se problemas escolares.
Por exemplo, hoje em muitas regiões há problemas de escolarização com crianças de etnia cigana. Os ciganos estão em Portugal há centenas de anos, mas o problema é novo porque só agora as suas crianças apareceram nas aulas. A sua integração passou a ser um problema escolar.
A escola consegue responder a esses problemas?
Existem quatro grandes instituições socializadoras: a escola, a família, a Igreja e o trabalho. Acontece que todas elas estão com tantos ou mais problemas do que a escola e o professor tornou-se um pouco uma "criada para todo o serviço". Tem de ensinar e tem de ser assistente social, mãe ou pai perante situações de carência afectiva, sociólogo, psicólogo, polícia. Uma pessoa que tem muitas funções sente-se mal em todas elas.
É necessário alterar a formação dos docentes ou a escola deve integrar outros agentes sociais?
As duas coisas. Já não basta que os professores dominem a sua área científica. Mas as escolas têm também de integrar o que designamos por equipas educativas (onde está o assistente social, o psicólogo, o licenciado em ciências da educação), capazes de responder ao conjunto de problemas sociais com que são confrontadas.
Por exemplo, estão a chegar à escola os filhos das primeiras gerações de toxicodependentes, alguns atingidos pelo vírus da sida e em fase final da sua vida. Existem enormes tensões pelo facto de a Europa se estar a tornar profundamente multicultural. Tudo isto tem de ser resolvido com as tais equipas, que vão buscar competências a vários sectores.
Qual é a relação destes alunos com a escola?
A ligação dos jovens à escola também atravessa uma profunda crise de sentido. Há um grande grupo, cada vez mais alargado, que gosta da escola, mas que detesta as aulas, dizem na sua linguagem que "é bué de chato". Não são todos. Há jovens que gostam da Matemática e da Física, que querem ir para a faculdade. Com estes é fácil de trabalhar.
O problema são os outros que, com o alargamento da escolaridade obrigatória, têm de lá estar. Os professores não os podem pôr fora da escola e nem a sociedade aceitava isso, porque iam criar mais problemas sociais do que estando dentro da instituição.
Quem tem de mudar? A escola ou os alunos?
A escola não pode resolver tudo. Tem de haver um reassumir das responsabilidades, por parte das famílias e da sociedade. Não se pode dizer que a escola é a grande responsável por não se ler e depois estarmos numa sociedade que não valoriza a leitura e que dá valor à "Quinta das Celebridades". Pedir à escola que ande em contra-corrente não é possível.
O que deve ser feito?
A escola é uma instituição da modernidade, constituída segundo uma matriz que já não resulta: ensinar a muitos como se fossem um só. O desafio é este: como respeitar a diversidade? Eu tenho direito a ser igual quando a diferença me inferioriza, mas tenho direito a ser diferente quando a igualdade me descaracteriza.
Tem de ser uma instituição igualitária e, ao mesmo tempo, respeitar a diversidade. Foi treinada para dizer: tu tens de ir até ao cimo daquele monte e todos têm de seguir o mesmo caminho. A questão é como permitir que o aluno "gordinho" possa ir mais devagar, o "atleta" mais depressa. A escola lida mal com a diferença e hoje este é talvez o maior desafio.
Existem milhares de candidatos à docência que não conseguem colocação. O ingresso no ensino superior devia ser controlado?
É muito difícil nas sociedades de hoje fazer essa regulação, mas a verdade é que, num curtíssimo espaço de tempo, passámos da existência de professores não habilitados a trabalhar no ensino (anos 80), para 20 mil a 30 mil desempregados nesta área. E continuámos a trabalhar com as estruturas do tempo em que havia falta de professores. Considero verdadeiramente criminoso que haja licenciaturas só para ensinar uma disciplina. Há muito que devíamos ter adoptado um esquema que desse maior mobilidade aos alunos. Eu posso ter uma licenciatura em História, por exemplo, e a partir daí ir para arquivista, bilbiotecário ou professor. Se tirar só ensino de História não posso ir para mais nenhum lado.
A situação contrasta com o que acontece na maioria dos países europeus, onde há falta de professores.
Esses países fizeram a expansão do ensino secundário no pós-II Guerra Mundial. Contrataram milhares de professores que terminaram agora a sua vida profissional. Por outro lado, a profissão deixou de ser atractiva, obriga a um grande desgaste e muitos jovens acabam por desistir. Até porque encontram outras profissões mais bem remuneradas. Na Europa está a recorrer-se a docentes reformados e ao recrutamento no exterior, na Índia, por exemplo.
É previsível essa evolução em Portugal?
Provavelmente. A profissão de professor é extremamente gratificante quando vemos as crianças e os jovens a crescer, mas exige também um grande equilíbrio emocional e uma disponibilidade humana imensa. A crescente diversidade cultural e os choques e indisciplina que daí podem resultar tornam -na ainda mais difícil e é natural que muitos não sintam essa disponibilidade total.
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