Wednesday, February 09, 2005

Sem Contraditório! Por M. FÁTIMA BONIFÁCIO

Quarta-feira, 09 de Fevereiro de 2005

Em 1976, por ocasião das primeiras eleições legislativas, tinha um carpinteiro que andava lá por casa a fazer umas estantes. Como estamos todos lembrados, ganhou o PS. No dia seguinte, perguntei-lhe se estava satisfeito com os resultados eleitorais. Respondeu-me: "Olhe, sra. doutora, deitei PS, e acertei!". Compreendi então como funcionava o mecanismo que tanto faz Santana Lopes temer pelos resultados do próximo dia 20 de Fevereiro. Nessa época, não havia sondagens e as pessoas tinham de se deitar a adivinhar quem ganharia, para acertar no vencedor. Esta completa inversão da lógica eleitoral ainda hoje vigora. Porquê? Porque, alegadamente, as pessoas gostam de ganhar e tenderiam, por isso, a por o seu voto no candidato que supõem antecipadamente vencedor. Foi esta convicção que deixou Santana Lopes furioso com as recentes sondagens e lhe deu mais uma oportunidade para exibir o seu incurável destempero.


No dia seguinte à publicação de duas sondagens que lhe davam uns humilhantes 27 ou 28 por cento dos votos, Santana denunciou logo, com o ar de vítima a que nos habituou, que estava em curso uma "mega-fraude" para sabotar a sua campanha eleitoral e o privar da sua merecida vitória. E ameaçou que, depois do dia 20 de Fevereiro, se ganhasse as eleições, as empresas de sondagens teriam de se haver com ele. Nada ficaria como dantes. Não especificou exacta e concretamente o que faria, mas qualquer ouvinte ou telespectador imaginou logo que haveria auditorias ou até processos judiciais. Em qualquer caso, e infelizmente, o "contraditório" teria que ficar para mais tarde. Uma vez mais, a verdadeira opinião pública - que as viciadas sondagens não reflectiam - estava a ser manipulada por agentes que beneficiavam da impunidade resultante de não haver "contraditório". Prometeu, para altura oportuna, dar-lhes a lição que os ensinasse, no futuro, a não prejudicar a sua gloriosa carreira política lançando a dúvida sobre o grau de estima em que era tido pelos seus queridos "portugueses e portuguesas".


Os donos ou directores das empresas de sondagens reagiram às disparatadas acusações do ainda primeiro-ministro com equanimidade ou ironia. Um deles, em maré de benevolência, admitiu até que se tratara de um excesso justificado pelo calor do comício e pelo nervosismo que os resultados das sondagens compreensivelmente provocavam em quem joga o seu futuro político no próximo acto eleitoral. A reacção de Santana seria, assim, digamos que excepcional e em divergência com as fundas e naturais inclinações do seu ser. Nada de menos verdade. Desde logo, já tivéramos um prenúncio do ataque contra as sondagens em recentes declarações de Miguel Relvas que, fazendo - numa versão mais branda, convenho - o mesmo papel que Gomes da Silva fizera no caso Marcelo, veio a terreiro dizer que havia uma deplorável promiscuidade entre a política e as empresas de sondagens. Quanto à destemperada reacção de Santana, não revela nada de novo e pelo contrário confirma a sua tendência para tentar silenciar aqueles que, com as suas críticas, possam ou podem de facto contribuir para ensombrar a gloriosa imagem que tem de si mesmo, por em causa a sua competência para governar e apoucar o seu presumido sucesso. Santana Lopes pensa que governar é deslocar-se sempre com um exército de assessores e seguranças atrás de si e estar em contínua exposição mediática. Quem tem esta concepção da política e da governação é inevitavelmente impelido para tentar controlar e manipular a comunicação social, do que ele deu vários exemplos.


Lopes não percebe por que tem má imprensa. Como sempre e em tudo, julga-se uma vítima. Ao longo da campanha eleitoral, não tem feito mais do que queixar-se das "traições", das "facadas" e dos "tiros" que, diz ele, os correligionários disparam na sua própria trincheira. Porque não corre toda a gente a exaltá-lo? Como é possível que dentro do seu próprio partido haja tanta gente respeitável que não o aprecia nem confia nele? Ele, o apóstolo de Sá Carneiro (há quem diga que é a "pesada herança" que o fundador deixou!); ele, que leu gravado nas estrelas o seu destino de primeiro-ministro; ele, habituado a ter razão contra tudo e contra todos e a vencer contra ventos e marés; ele, que oferece generosamente à pátria a sua visão de futuro, o seu rasgo político, a sua capacidade para dirigir os homens... Ele, que em quatro meses de governo acertou em tantas decisões difíceis, tomou tantas opções corajosas, derrubou tantos obstáculos intransponíveis, ao ponto de que em tão escasso tempo passou a ombrear com os (poucos) portugueses que em trinta anos mais tinham feito pelo país! A absoluta falta de pudor com que Lopes se insinuou no primeiro plano do célebre cartaz em que Cavaco Silva (e bem) recusou figurar, dá a medida não apenas da sua tão desmedida quanto injustificada vaidade, como, sobretudo, da absoluta falta de noção do que vale e da irremediável inconsciência da sua flagrante mediocridade.


Mais do que ninguém, ele teria precisado de se afirmar e legitimar pelo mérito. Dentro do PSD, Lopes não passava do chefe de uma pequena facção - isso mesmo, uma facção - que Durão Barroso, para se livrar de problemas e incómodos, promoveu a número dois do partido. A receita não era nova. Já Cavaco Silva, em tempos, o mantivera entretido na secretaria de Estado da Cultura. Nada, mas nada no seu currículo o recomendava para uma tal responsabilidade, a não ser que seja norma do PSD premiar quem lhe anima os congressos com a exibição de sentimentalismos que atraem as televisões. Por isso, quando apareceu indigitado para primeiro-ministro, logo houve quem dissesse que o caso, a confirmar-se, equivalia a um golpe de estado partidário: por um acaso da fortuna (ou talvez fossem as tais estrelas!), a facção conquistava o partido e, por inerência, o governo de Portugal. Ele há facções felizes!


Só que estas coisas não se perdoam facilmente. Como todos os chefes de facção, Lopes tinha um terrível problema de legitimidade que o Congresso do Partido evidentemente não resolveu. Pelas piores razões, distritais, autarquias e gente avulsa correram a colar-se ao novo chefe que, sobre ter fabricado para si próprio uma inexplicável aura de invencível, tinha fama de compensar com mãos largas os que se lhe rendiam. Com ele viriam aí, finalmente, após dois anos de fome, as vacas gordas. Não se enganaram. A presença de Bagão Félix não foi suficiente para impedir Lopes de proclamar no Congresso que não queria - como se fosse questão de apetecer - impor mais sacrifícios "às portuguesas e aos portugueses". Enganaram-se, isso sim, os que pensaram que o homem podia ser controlado. Assim que se apanhou com o poder todo, a sua natureza caprichosa e desordenada manifestou-se em todo o seu esplendor. Os desconchavos que rodearam a formação e a posse do executivo foram o prenúncio certo de um estilo governativo marcado por "trapalhadas" semanais e pelo desnorte constante. Cedo se estabeleceu um padrão que, como disse o Presidente da República, não era susceptível de regeneração. Lopes desperdiçou em pouco tempo a única possibilidade que teria tido de se legitimar: a competência governativa. Em vez disso, tornou limpidamente claro que não estava à altura do cargo nem possuía as qualificações mínimas para o exercer. Nem todos os "contraditórios" do mundo nem a mais prodigiosa central de informação seriam capazes de esconder este facto que as sondagens, sem "contraditório", para já confirmam.


Não espero que Sócrates retire o país da mediocridade em que se atolou. Mas espero que afaste Santana e ao menos restitua à vida política um módico de normalidade.
Historiadora

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