Público
Segunda-feira, 21 de Fevereiro de 2005
No passado dia 13 de Fevereiro, morreu aos 97 anos (faria 98 em 30 de Março) Lúcia de Jesus dos Santos. E, com o seu abandono do mundo dos vivos, estão criadas condições para a hierarquia da Igreja Católica consumar aquilo que há muito parece ser o seu desejo: beatificar a mais importante das videntes de Fátima. Os fatimistas indefectíveis - e os políticos mais oportunistas - irão entretanto produzir sobre ela os já previsíveis discursos hagiográficos, os quais não deixarão de apregoar as suas incomensuráveis virtudes católicas e invocar o seu piedoso protagonismo na história das aparições de Fátima. A lamentável morte da irmã Lúcia poderá até servir de álibi para relançar no país e no mundo a imagem de um santuário que no último ano parece ter perdido demasiados peregrinos e, ainda, fornecer fundamentos para que o Vaticano apresse também o processo de beatificação de uma outra preciosa figura do panteão fatimista: o cónego Nunes Formigão.
No entanto, à margem de uma história mística e laudatória que sucessivos cronistas católicos, com o imprimatur da hierarquia da Igreja, souberam tão bem construir e difundir desde 1917, importa responder com rigor e objectividade a esta incontornável questão: qual o papel desempenhado pela irmã Lúcia em todo o processo das aparições de Fátima?
Neste breve e necessariamente preambular artigo de jornal, queria apenas propor aos leitores um exercício (que, obviamente, não é original) de análise comparativa de um conjunto de documentos fundamentais e que permitirá ajudar a responder à questão supracitada: os interrogatórios efectuados pelo pároco de Fátima à mais velha dos pastorinhos, entre Maio e Outubro de 1917 (ver Documentação Crítica de Fátima I, 1992), os interrogatórios aos videntes Lúcia, Francisco e Jacinta, feitos oficiosamente pelo cónego Nunes Formigão, entre Setembro e Novembro de 1917 (ver op. cit.), os interrogatórios oficiais de Lúcia, realizados pelo mesmo cónego e o padre Manuel Marques dos Santos, em 1924 (ver Documentação Crítica de Fátima, II, 1999), e as primeiras memórias redigidas pela freira Carmelita, entre 1935 e 1941, por ordem do bispo de Leiria, D. José Alves Correia da Silva (ver Memórias da Irmã Lúcia, 8.º edição, 2000) - também ele um protagonista incontornável do processo das aparições e culto da Cova da Iria.
Do primeiro documento, datado de 1917, - e, sem dúvida, o mais fidedigno - ressaltam duas ideias singelas e pouco originais: a oração e a devoção, através da recitação do Rosário; o cumprimento escrupuloso desse popular preceito espiritual teria como contrapartida o final da guerra (de 1914-18) e a implantação da paz no mundo. Deste interrogatório vale ainda a pena reter a falsa profecia presumivelmente avançada por "Nossa Senhora" (em 13 de Outubro de 1917) sobre o final imediato da guerra, efectuada nos seguintes termos: "a guerra acaba ainda hoje; esperem cá pelos seus militares muito breve".
Os segundos e terceiros documentos supracitados, de 1917 e 1924, introduzem já elementos novos que complementam e tornam a mensagem primitiva mais intricada. Atestam o mandamento Mariano da recitação do Rosário em prol do fim da guerra e da implantação da paz no mundo. Contudo, acrescentam à prática da oração os conceitos explícitos de penitência e conversão, aludem ao ensinamento por Maria de uma jaculatória cujo conteúdo consubstancia a existência de um mundo trinitário pós-terreno onde o Céu, por um lado, e o Purgatório e o Inferno, por outro lado, se configuram respectivamente como os destinos dos piedosos (ou seja, dos fiéis ou convertidos aos mandamentos católicos) e dos pecadores. Os mesmos textos mencionam pela primeira vez um (e não três) enigmático(s) e polémico(s) segredo(s) revelado(s) por "Nossa Senhora" às crianças e uma misteriosa aparição, em 1916, de um anjo a Lúcia e a outras crianças da freguesia de Fátima. E reformulam já a profecia feita sobre o final da guerra, agora apresentada em duas versões ambíguas e literariamente retocadas: "Se o povo se emendasse, acabava a guerra", ou "convertam-se, a guerra acaba hoje, esperem pelos seus militares muito em breve".
Os últimos textos aqui citados, as memórias escritas pela irmã Lúcia, depois de 1935, com singulares e misteriosos pormenores, os quais contrastam aliás com as respostas lacónicas e simples que emitiu nos diversos inquéritos de que foi alvo logo após os acontecimentos de 1917, retomam e ampliam intangíveis revelações, algumas já avançadas em primeira mão pelo cónego Nunes Formigão, ao longo da década de 20: entre muitas outras novidades, a morte precoce de Jacinta e Francisco, a visão de um inferno dantesco e do Imaculado Coração de Maria cercado de espinhos, o famigerado pedido da "Virgem" para "consagrarem a Rússia ao Seu Imaculado Coração". E a referência ao final da guerra, que aqui foi feita de maneira a depurar as perplexidades que as mensagens anteriores encerravam: "A guerra vai acabar e os militares voltarão em breve."
Em face do exposto, podemos inferir que a história e a mensagem de Fátima que conhecemos através das palavras de Lúcia não são lineares. Isto é, muitos dos factos por ela narrados foram gradualmente alterados e efabulados entre 1917 e os anos 30. E podemos também adiantar, através da análise das diferentes mensagens, que essas transformações estão directamente relacionadas com as diferentes conjunturas político-ideológicas que se verificaram, entre 1917 e a década de 30 do século passado, em Portugal e no mundo.
A quem cabe a responsabilidade desta inequívoca falsificação da história? Não creio que se possa atribuir a Lúcia cuja vida pública e privada foi controlada e mesmo amordaçada desde 1921 (tinha então 14 anos). Pode e deve antes imputar-se a sectores poderosos da hierarquia da Igreja Católica que oportunamente souberam utilizar a última das videntes de Fátima como precioso peão ao serviço de um ambicioso e permanente movimento de renascimento católico de dimensões nacional e mundial.
Sei bem que, hoje como ontem, - num mundo pragmático, contaminado pela preponderância do "parecer" sobre o "ser" - os argumentos que sustentam esta perspectiva de nada valem e aqueles que a advogam são até rotulados, por sectores católicos mais conservadores e intolerantes, de ateus e anticlericais obstinados ou então de loucos inspirados por maquiavélicas teorias da conspiração. São esses mesmos sectores que em público preferem sistematicamente ignorar, omitir ou desvalorizar as contradições que a história de Fátima encerra e branquear os axiomáticos paradoxos consubstanciados nos depoimentos de Lúcia (e de outros cronistas) com o fundamento de que, afinal, o culto da Cova da Iria se impôs ao mundo - e tal facto, na opinião deles, legitima o argumento de que as "aparições de Fátima" beneficiaram da mão de Deus.
Em verdade vos digo, não creio que Deus possa abençoar aqueles que em nome de Cristo se assenhorearam deste culto de primitiva expressão popular - igual a tantos outros que existem no país - e depois construíram de modo premeditado um conjunto elaborado de representações místicas com o desígnio supremo de disciplinar, angariar e manipular fiéis. Contudo, estou já profundamente convicto de que a irmã Lúcia sairá inocente de tal julgamento divino.
Historiador
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
1 comment:
Sim, provavelmente por isso e
Post a Comment