DN, 23 de Fevereiro de 2005
A fronteira por Miguel Poiares Maduro
Hoje, com o correio electrónico ou os sms, temos uma falsa sensação de distância
Há dias consultei um velho endereço de correio electrónico que tinha praticamente abandonado. Descobri que tinha outra vida! A julgar pelo "lixo" electrónico que aí recebo o outro eu sofre de graves disfunções sexuais, ganhou várias vezes a lotaria do Canadá, gosta de viagens de cruzeiro, tem estranhos negócios com familiares de ex-ditadores e, a crer nas inúmeras mensagens de agências de contactos, é extremamente popular entre as mulheres (algo teríamos de ter em comum…). No mundo virtual, esse meu velho endereço de correio electrónico, deixado ao abandono, tinha ganho uma vida própria e feito amigos bem diferentes dos meus!
Ironia à parte, este episódio fez- -me pensar na fronteira entre o real e o virtual e em como as formas de comunicação na Web estão a alterar as formas de socialização nas nossas esferas pública e privada e a questionar a fronteira entre ambos.
A Internet tem virtudes sociais! Na Net o conhecimento é anónimo e autoconstruído, logo liberto de preconceitos. É-se quem se aparenta ser perante os outros e não quem estes pressupõem que somos com base numa classe, raça, sexo, etc. Mas nem tudo são rosas.
Lawrence Lessig, no livro Code and Other Laws of Cyberspace, conta histórias de conflitos entre vizinhos em cidades virtuais ou de um "assassino" que relata os seus crimes em chat rooms, não passando afinal de um tímido estudante universitário que acaba na cadeia quando a polícia toma como real o que o estudante argumenta ser apenas ficção. Para Lessig o que é marcante nesta história é a circunstância de o ciberespaço permitir a Jake (assim se chamava o estudante) libertar-se dos constrangimentos do espaço real.
A mim, o que me impressiona é o facto de estes episódios não serem apenas realistas mas sim, em larga medida, uma outra dimensão de realidade. Que diferença representa um conflito entre dois vizinhos de uma cidade virtual que constroem aí uma vida face a um conflito entre dois vizinhos de uma rua de Lisboa?
A geografia é diferente mas as expectativas, os sentimentos pessoais e as consequências sociais serão realmente diferentes? No fundo, o que se passa no mundo real tem efeitos sobre nós não directamente, mas através da construção mental que dele fazemos. No mundo virtual, esta construção mental apenas passa a ter uma base real bem mais fina (um computador e uma ligação à rede).
E a fronteira é tão ténue que, no caso de Jake, a sua personagem virtual entrou em contacto com homicidas do mundo real que a pretendiam copiar. A personagem era fictícia mas o mundo em que se movia não era fictício. Queria Jake ser um assassino ou um escritor policial? A partir de certa altura isso deixou de ser relevante quando todos o tomavam por assassino e os corpos das vítimas começaram a aparecer…
Virtual. A socialização do mundo virtual é um pouco como se os sonhos deixassem de ser pessoais para passarem a ser socializados. A partir do momento em que outros entram nos nossos sonhos e com eles interferem, como vamos regular essa nova esfera das relações sociais?
Mesmo quando não nos mudamos para o mundo virtual mas apenas o utilizamos ao serviço da realidade tradicional somos profundamente afectados pelos instrumen- tos de comunicação dele resultantes. Não se trata apenas de facilitar ou promover a comunicação mas é a sua própria natureza que se altera. Lembro-me de como certas coisas difíceis tinham de ser comunicadas por carta. Hoje já não se escrevem cartas de amor. Estas não eram um mero instrumento de comunicação mas sim um mediador de sentimentos. A diferença temporal entre o tempo da escrita e o tempo do impacto da mensagem atenuava a ansiedade e libertava-nos de certos constrangimentos. A sensação de distância permitia ao destinatário deixar-se conquistar pelos nossos esforços ou digerir a desilusão deles resultante. Hoje, com o correio electrónico ou os sms, temos uma falsa sensação de distância. Escrevemos libertos do constrangimento da presença do outro mas com o impacto de uma comunicação imediata e presencial. Mesmo quando escrevemos cartas de amor por email já não são as mesmas cartas de amor a diluição da forma e o imediatismo da mensagem alteram a expressão do nosso amor. Talvez facilite o amor mas retira-lhe algum mistério.
Comunicar. Mas talvez o maior impacto da Internet nas formas de comunicação e socialização esteja na (com)fusão entre o espaço privado e o espaço público que promove. Os blogues e o seu impacto são um bom exemplo. Misto de diários pessoais publicados e colunas de opinião, diluem a fronteira entre o público e o privado e alteram radicalmente a natureza do discurso público. A atracção da escrita dos blogues está na sua espontaneidade e liberdade. São reacções genuínas e algo "epidérmicas", daquelas que temos numa conversa entre amigos. Mas a sua publicação dá-lhes a importância de uma mensagem pública. Ficamos prisioneiros de uma opinião que, frequentemente, não é totalmente reflectida. Uma coisa é uma reacção instantânea, outra é uma opinião de fundo. Nos blogues, os dois confundem-se. É aí que está o seu risco, mas também parte do seu interesse.
O problema acontece quando o estilo blogue é descontextualizado. A recente campanha eleitoral foi um bom exemplo dos riscos inerentes ao transplante deste tipo de comunicação para o espaço público mais tradicional. Os boatos eram disseminados por sms e discutidos livremente na Web, permitindo manter a aparência de conversa privada mas transformando-os realmente em tema do espaço público - e como os portugueses gostam de boatos! Em Portugal, transmitir um boato é sinal de importância só alguém importante é que saberia algo de uma tal importância sobre alguém tão importante… Perguntando-se, verifica-se que nunca ninguém assistiu a algo de concreto sobre o que é dito mas tal não é preciso… "toda a gente sabe" …! -.
O mais grave foi a tendência, que não é nova, de alguma imprensa para ir a reboque dos boatos e importar o estilo blogue. Para essa imprensa, os boatos deixam de ser boatos para passarem a notícia quando são citados em jornais estrangeiros. Ao mesmo tempo, as suposições substituíram os factos nos artigos políticos. O gosto de protagonismo parece ter-se estendido a alguns jornalistas ajudando a eliminar a fronteira entre discurso público e discurso privado.
Se há algo a aprender de tudo isto é que, se o mundo virtual é cada vez mais real, não podemos cair na tentação de importar as regras sociais desse mundo para o mundo real. Estes mundos têm regras sociais distintas. Ler um com os olhos do outro é que é mesmo desvirtuar a realidade.
Miguel Poiares Maduro
miguel.maduro@curia.eu.int
Wednesday, February 23, 2005
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