Sunday, February 20, 2005

Acerca da Superioridade Moral da Classe Médica Por LAURA FERREIRA DOS SANTOS

Público
Domingo, 20 de Fevereiro de 2005

Recentemente vimos no PÚBLICO, a propósito do aborto, um conjunto de opiniões sobre o facto de o código deontológico da classe médica diferir da lei penal: enquanto uns, como o bastonário cessante, defendem a harmonização, outros, como Gentil Martins, Daniel Serrão e o novo bastonário insistem basicamente, se bem os entendo, em que a classe é depositária de valores "universais", não sei se recebidos por revelação ou fax, e que, custe o que custar, os hão-de manter completamente inamovíveis, tanto quanto era suposto a Terra manter-se imóvel no tempo de Galileu. Afirma Gentil Martins: "A lei penal é muito importante, mas a ética médica não tem que estar subordinada à lei penal, tem 2500 anos. [...] Há princípios basilares que se mantêm - o respeito pela vida humana é sagrado". E Pedro Nunes: "Nós, médicos, temos valores universais independentemente das modas sociais". Dois comentários.

Em primeiro lugar, a ética médica não é uma coutada da classe médica. Como escreve Paul Carrick (cf. Medical Ethics in Antiquity, 1995), a gravidade do assunto é de tal ordem que não pode ser entregue apenas a estes profissionais. Por isso, soa a sobranceria que a classe médica se coloque do lado dos grandes valores, os "universais", remetendo o resto da população, em que se incluem, entre outras, pessoas do direito, da filosofia, do ensaio político, e tanta gente de boa vontade e boa inteligência, para o lugar obviamente desvalorizado dos modos de pensar equiparados a "modas". Mas assim se entende que, perante a nossa ignorância dos assuntos/valores verdadeiramente importantes, a classe médica só possa pôr-nos na ordem, como se fôssemos crianças mal comportadas. Não por acaso, Galeno (séc. II D.C.) pretendia que os pacientes olhassem para o seu médico com a mesma reverência que se tem por um deus.

Em segundo lugar, a estafada questão de que a ética médica tem 2500 anos. Se bem entendo, o que se quer dizer é que ela se encontra consagrada no denominado Juramento de Hipócrates. No entanto, este texto, que alguns elementos da classe médica invocam como se algo de sagrado e intocável se tratasse, deve ser devidamente contextualizado. Primeiro, trata-se de um texto que não reflectia a opinião e prática médicas da época, na Grécia e em Roma. Muito provavelmente, a maior parte dos médicos da altura nem sequer ouviram falar dele. Mais ainda, há incongruências entre o que se encontra determinado no Juramento e várias passagens da colecção de textos ditos hipocráticos. Sendo assim, como é que o Juramento passa a ter tanta importância? Precisamente a partir do momento em que os valores cristãos se tornam dominantes nos últimos 150 anos do Império Romano. Porquê? Porque era o código médico que mais se adequava ao cristianismo e porque o cristianismo acabou por se converter em religião oficial do(s) estado(s). Não esqueçamos que o Juramento está bastante marcado por influências pitagóricas, escola filosófica grega que considerava a obediência a deus o maior dever moral, devendo a existência servir para os humanos expiarem as suas faltas. Por isso, não deveriam cometer suicídio, fosse em que circunstância fosse, pois isso equivaleria a usurpar prerrogativas divinas. Por outro lado, deveriam deixar descendência para que a divindade continuasse a ser louvada. Assim se explica que só se invoque o Juramento para duas questões, o aborto e a eutanásia, pois aí reside claramente a convergência com a interpretação dominante do cristianismo. De facto, no Juramento diz-se que o médico não dará às mulheres uma substância abortiva nem, a qualquer outra pessoa, um medicamento/droga que possibilite matar alguém, embora neste último caso ainda se possa considerar se o que se encontra em causa é uma droga para assassinar alguém ou para ajudar alguém a acabar com o sofrimento, a seu pedido (eutanásia ou suicídio assistido). Quanto a outras partes do juramento, como a que proíbe o uso da faca pelo médico, ou seja, a prática da cirurgia, ou como aquela que obriga o médico a ensinar gratuitamente os filhos (não filhas) do mestre, já nunca são referidas.

Como afirmei, a maior parte da prática médica do tempo de Hipócrates não se regia por estas normas. O facto é que, como enfatiza Paul Carrick, no ambiente filosoficamente pluralista em que se vivia, nenhuma escola conseguia convencer o público mais ou menos "ilustrado" de que o aborto e a eutanásia (para mim, sempre "voluntária") fossem algo de moralmente errado. E algumas faziam mesmo a defesa do suicídio e da eutanásia em certas circunstâncias (pense-se, por ex., nos estóicos e em Séneca, nos cínicos e cirenaicos, ou em passagens de Platão), no que eram acompanhadas pelos médicos da altura.

Acabado este pluralismo filosófico com a chegada de uma concepção autoritária do cristianismo em que, como escreve Ricoeur, a religião pede a sanção do estado e o estado a unção da religião, ficamos entregues aos valores "universais" de que alguma classe médica tanto gosta. Infelizmente, enchem sobretudo a boca para falar de "respeito pela vida", sem sequer se aperceberem de que pode haver hermenêuticas distintas para um mesmo valor partilhado, que é o da inviolabilidade da vida humana (cf. R. Dworkin, Life's Dominion, 1993). Para além disso, esquecem-se de falar com a mesma ênfase na necessidade urgente de aumentar a oferta de cuidados paliativos, de controlar a dor, de cumprimentar as pessoas que entram nos seus consultórios, etc, etc.

Uma sugestão ao novo bastonário da Ordem dos Médicos e das Médicas: como já chegou a Portugal o filme Mar Adentro, galardoado com alguns prémios, e que retrata a luta do tetraplégico Ramón Sampedro pelo direito ao suicídio assistido, por que não ameaçar desde já com sanções disciplinares os membros que, na discussão, se manifestem a favor da despenalização da eutanásia? Em nome do respeito pelos valores "universais", é claro. E da "vida". Sobretudo, a vida de Ramón...

Docente da Universidade do Minho (IEP).

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