Tuesday, February 08, 2005

Crise? Qual Crise? Por TERESA DE SOUSA

Público
Terça-feira, 08 de Fevereiro de 2005

1. Há qualquer coisa de profundamente estranho nesta campanha eleitoral. Não falo das insinuações torpes nem da boataria nojenta utilizada por aqueles que já não têm nada a perder, nem sequer o bom nome de um partido fulcral para a democracia portuguesa, no caso o PSD. Falo do tom geral da campanha, que alimenta e que é, por sua vez, alimentado pelo mundo virtual das televisões, num infernal círculo vicioso que ninguém parece conseguir romper.


A estranheza está em que, debates e comícios confundidos, o país já saiu, definitivamente, da realidade. As "Novas Fronteiras" - insisto, um exercício interessante - esfumaram-se numa só mensagem dominante: afastado o PSD do governo, tudo se resolverá. O discurso das "missões" Portugal e outras iniciativas que vinham de Barroso e que acentuavam o pendor claramente liberal da governação PSD esfumou-se, há mais tempo é verdade, no populismo frenético de Santana onde tudo é em cada instante possível - uma coisa e o seu contrário.


É caso para nos perguntarmos para onde foi a crise.


2. Mas será que há mesmo crise? O IKEA - esse monumento ao consumo barato mas elegante das classes médias europeias - acaba de registar em Portugal o seu maior sucesso de sempre. A tal ponto que a multinacional sueca antecipou de um ano a recuperação do seu investimento. A venda de automóveis, sobretudo os de gama alta, subiu significativamente. Já éramos, na Europa, os campeões dos telemóveis (ontem, novos dados divulgados pela Comissão confirmaram a tendência) e do número de televisões por habitação, somos quase campeões da segunda habitação. Não interessa se não lemos jornais, se compramos poucos livros, se investimos pouco na educação, na nossa e na dos nossos filhos, ou se nem sequer achamos necessário fazê-lo, como mostra o último Eurobarómetro. Tudo parece indicar que, pelo menos ao nível das percepções da realidade, ainda continuamos a viver o milagre do "boom" consumista do final dos anos 90, graças à queda abrupta das taxas de juro devida ao euro e ao bom desempenho da economia europeia. Consolidámos um nível de expectativas que, no que respeita aos bens materiais, pouco nos afasta dos países europeus, independentemente de podermos ou não mantê-las.


O último Eurobarómetro, divulgado na semana passada, dá que pensar. Portugal é um dos países da UE a 25 com uma perspectiva mais negra da economia e do emprego para os próximos anos. No primeiro caso, 95 por cento dos portugueses têm uma visão pessimista - o pior número dos 25. Dir-se-ia que as condições parecem maduras para um discurso de verdade que levasse os eleitores a fazer as suas escolhas com base numa percepção mais verdadeira da realidade. Mas, ao mesmo tempo, o efeito IKEA também lá está expresso: quando se trata da sua própria situação individual, os portugueses que têm emprego estão razoavelmente confiantes na sua manutenção e na estabilidade da sua própria situação económica. E nem sequer consideram que investir na sua educação e formação ou que canalizar colectivamente mais recursos para a I&D e para a inovação seja muito relevante - para si próprios e para o país.


Ou seja, ficamos com a sensação de que os portugueses acreditam que podem continuar a mobilar a segunda habitação no IKEA mantendo uma produtividade que é metade da média europeia, a maior taxa de insucesso escolar dos 25, a manutenção artificial das indústrias que estão condenadas, um sistema de segurança social tão intocável como um direito divino.


3. As elites, incluindo as políticas, têm perfeita consciência de que esta situação é insustentável e que é também grande o risco que colectivamente corremos no curto prazo de nos auto-condenarmos à estagnação prolongada que nos afastará inexoravelmente dos padrões europeus. O que deveriam estar, pois, a discutir seria as formas de evitar esse risco, traduzidas em diferentes propostas partidárias para inverter a situação.


Na filosofia geral do programa do PS há um caminho que pode resumir-se assim - apostar tudo na criação de condições para que as ilhas de excelência da economia do país (que já existem mas que ainda não constituem a massa crítica necessária para alterar qualitativamente o nosso padrão de desenvolvimento) se possam expandir progressivamente; transferir e optimizar recursos para os sectores que potenciam essa mudança e que são a investigação científica e tecnológica, a educação, formação, a inovação; ganhar eficiência nos serviços públicos, preservando no geral o modelo universal.


Ouvindo Sócrates, só com uma enorme imaginação conseguimos lá chegar. Dizer que é preciso canalizar recursos do Estado para os idosos com rendimentos inferiores a 300 euros não é errado. Nenhuma sociedade decente pode ficar inactiva perante esta realidade, que todos sabemos que existe sem precisar de estatísticas, esperando que as velhas redes tradicionais da vizinhança, da família ou da paróquia resolvam o problema. Mas era preciso que Sócrates estabelecesse uma escala de prioridades, explicando quem iria perder alguma coisa.


A filosofia do programa do PSD deveria ser diferente, se continuasse a seguir o modelo barrosista - um Estado menos interventor em matéria de mudança de padrão de desenvolvimento, centrando os incentivos na redução dos impostos e deixando que as empresas façam o resto; e, consequentemente, disposto a reduzir significativamente as despesas públicas, incluindo a privatização de sectores importantes da segurança social. O modelo de Santana é mais parecido com o do PCP: se for preciso, acciona-se a cláusula de salvaguarda do acordo de liberalização do comércio dos têxteis; ninguém tocará nos direitos adquiridos de ninguém; ou, então, num toque de modernidade mais ao estilo "bloquista", anunciando que está tudo em aberto, da clonagem à eutanásia, "you name it"...


Em suma, em vez de estarmos a debater políticas estamos a falar de milagres. Do milagre da transformação da Função Pública sem despedir ninguém, sem congelar salários ou promoções, sem quebrar imobilismos e direitos adquiridos. Do milagre da alteração do nosso padrão de desenvolvimento sem deixar fechar indústrias têxteis nem aumentar o desemprego na construção civil. Do milagre do combate ao tremendo insucesso escolar, que nos está a condenar a prazo, sem alterar profundamente o modelo centralizador e irresponsabilizador que continua a vigorar em Portugal, apesar das sucessivas reformas.


Não admira, pois, que tudo se meça na televisão em termos de decibéis dos comícios ou de litros de suor vertidos, de empatia televisiva ou da cor da gravata dos líderes - entre o "tijolo" ousado e o "azul-bébé" mais para o clássico.


4. Tinha de ser assim? Quando, em 1983, fiz a cobertura da campanha de Mário Soares, lembro-me como se fosse hoje que o então líder do PS começava todos os comícios com uma mesma e única frase: "Só voz posso prometer a austeridade". É verdade que, nessa altura, Soares tinha uma meta a propor aos portugueses que era a Europa. É verdade que Portugal não era ainda membro da UE nem do euro e que, por isso, o desequilíbrio assustador das contas externas tinha consequências muito mais graves. Mas o essencial é que havia um líder determinado em fazer o que era preciso para colocar o país no caminho do futuro. Quando, em 1987, acompanhei a campanha que conduziu Cavaco Silva à primeira maioria absoluta, as escolhas eram outras, muito menos dramáticas mas, mesmo assim, decisivas. Com o país integrado na Europa, havia outro conforto mas também outro tipo de rupturas a fazer. Mais de natureza ideológica e de urgência de alteração do modelo económico "nacionalizado" que a revolução deixara. Não me lembro de Cavaco ter feito uma campanha de meias palavras para agradar a gregos e troianos. Lembro-me da polarização de opções e de uma tremenda mobilização do eleitorado. Não foram precisas sondagens para antecipar maioria absoluta.

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