Sunday, March 27, 2005

Os cocós da Lapa por António Barreto

Os cocós da Lapa por António Barreto

Público, 27 de Março de 2005

A novidade da Lapa são os cocós. Não os equivalentes aos Betinhos, às Tias ou aos Queques, que também aqui são pletora, mas os cocós mais rasteiros, esses mesmos, os dos cães. Há cerca de dez anos, talvez quinze, começaram a sua invasão

Vivo na Lapa há mais de trinta anos. Depois do Passeio Alegre, na Foz, de Vila Real, da Régua, de Coimbra e de Genebra, fiz de Lisboa a minha terra. Mais propriamente, da Lapa. O bairro confunde-se com os seus vizinhos, Santos o Velho, a Madragoa, a Estrela, São Bento e até, resvés, Campo de Ourique. É o melhor de Lisboa. Até um notório Pé Fresco, João Soares, antigo presidente da Câmara, disse um dia que tinha especial ternura pela Lapa. Tinha razão. Como fica perto dos Prazeres, é aqui que quero morrer.

O BAIRRO TEM TUDO QUANTO É PRECISO. Para uma vida feliz, quer dizer. Tem casa pobre e popular, casa remediada, apartamentos, poucos "prédios", um ou outro condomínio fechado e tristonho, jardim aqui, jardim ali, solar, mansão e palacete. Há casas de todas as espécies, feitios e datas, algumas seculares. Tem vista para o Tejo, com ruas que parece descerem directamente nas águas. De certos pontos de vista, os barcos estão dentro de cidade. Além dos jardins privados, tem, desde o senhor Costa Cabral, o da Estrela, imponente, com pato e pavão, baloiço e bisca lambida. A seu lado, o pequeno jardim da Burra, segredo de namoros e charros. Aqui e ali, tílias e jacarandás enfeitam as almas. Há capelas e igrejas, velhinhas, não há templos do Estado Novo, graças a deus, mas também há a Basílica da Estrela a festejar, não se sabe bem, a gravidez da rainha ou o fim de Pombal. Todas têm sinos verdadeiros para dar horas, chamar às matinas e às vésperas. Não muito longe, a casa do Primeiro Ministro, com o jardim que já foi de Salazar, Caetano, Soares, Cavaco, Guterres e Santana. A dois passos, o casarão que foi dos monges de São Bento e é agora dos deputados ao Parlamento. Tem residências ou embaixadas para todos os gostos, da China à América, de França à Grã-Bretanha. Tem Universidade e Escola Superior, liceu e jardim escola, públicos e privados. Em quase todas as ruas, conventos e o que deles resta, das Trinas ou das Francesinhas. Tem alguns dos hotéis (York House e Lapa), restaurantes (Travessa e Guarda Mor), Casas de Chá e lojas de comida pronta (Chef) mais interessantes de Lisboa. Tem boas lojas de vinhos, incluindo uma só de mulheres, mas que também vende a homens. No comércio, há de tudo, drogaria e sapateiro, mercearia e picheleiro, ginásio e barbeiro. Tem lavadouro público e galerias de arte. Casa de fado e bar da noite. Não lhe falta supermercado, nem banco ou multibanco. Uma loja de Ferrari e Maseratti, vende agora o Smart. A piscina coberta é pública e os quiosques de jornais são quantos se quiserem. O tráfego não é grande coisa, como nenhures em Lisboa, mas melhor do que na maior parte da cidade. Os carros nos passeios, sobretudo os Jeeps, a fazer lembrar as viaturas americanas de Bagdade, são um martírio com que tem de se viver. O bairro está em vias de "gentrification", isto é, os "populares" vão saindo, ou morrendo, e para os seus lugares, depois de obras, vêm as classes médias, alguns intelectuais, gestores, artistas, estrangeiros e ricos de fresca data com um pouco de gosto pela cidade velha. Mas ainda faltam muitos anos para a Lapa perder o seu carácter.

VIVE-SE BEM, NA LAPA. O BAIRRO, AO contrário da sua reputação, é mais inter-classista do que a maioria dos de Lisboa. Tem canalizador e taxista, reformada e pensionista. Tem funcionário e secretária, empreiteiro e comerciante. Tem operário e notário, tem artista e diplomata. Tem rico dos antigos, tem novo rico da nossa era. Nunca teve menos de dois ministros de cada governo. Tem diplomata e cortesão. Tem a velha burguesia lisboeta e tem aristocracia, o que dela resta pelo menos. Tem ucraniano e africano, judeu e anglicano. Tem estrangeiro e boémio, cantor e trapezista. Tem mulher de vida fácil e indiscreta, tem homossexual recatado, tem toureiro e tem varina. Tem polícia, pintor, mulher a dias e professor. E a todos não falta snobismo: dizem que os lisboetas se dividem em duas espécies, os que vivem "para cá da Rotunda" e os outros. Eis quanto!

A NOVIDADE DA LAPA SÃO OS COCÓS. Não os equivalentes aos Betinhos, às Tias ou aos Queques, que também aqui são pletora, mas os cocós mais rasteiros, esses mesmos, os dos cães. Há cerca de dez anos, talvez quinze, começaram a sua invasão. São milhares, por todas as ruas. Isto é, por todos os passeios, que os cãozinhos não correm riscos. São de todas as formas e feitos, dimensões e idades. Pertencem a todas as raças, das mais caras de preferência. Mas sempre nos passeios. Andar na Lapa a pé, é um exercício de perícia e agilidade, a saltitar, nas pontas dos pés, a olhar para o chão. Anda-se como em terra africana de país minado. Os desgraçados dos cegos, esses, não têm solução. Vejo-os a resmungar e a sacudir os pés, após sentirem a maléfica consistência.

VIERAM, OBVIAMENTE, COM OS CÃES. Que, na Lapa, são de importação recente. De todas raças, com pergaminho e genealogia, substituíram os vadios e outros rafeiros. Chegaram com as classes médias, os artistas, os jovens gestores e alguns estrangeiros. Faz agora dez ou quinze anos. As elites portuguesas, logo copiadas pelas classes médias, habituaram-se aos cães de cidade. Quando, à volta do cão, têm jardim, quintinha ou herdade, não sobram problemas para os conterrâneos. Mas quando o cão de cidade é também de apartamento, começam os dramas da vizinhança. Na Lapa, há agora centenas deles. Vejo-os todos os dias. Às oito da manhã e à noite, pela trela do dono em fato de treino, a fazer o exercício e o passeio higiénico. O que quer dizer, a emporcalhar o passeio. O problema é que as mesmas elites e as mesmas classes médias que adoptaram a moda do cão, não adoptaram a moda da luva, do saco de plástico ou da vassourinha. Mal educadas, pouco esclarecidas, predadoras do espaço público, as elites portuguesas e as classes médias sempre se comportaram assim.

OS PORTUGUESES DETESTAM O ESPAÇO público, que sujam sistematicamente. No que são ajudados pela Câmara, que o esquece, maltrata e varre mal. Podem ser limpos em casa, é possível. Mas o bem comum é, para o nosso concidadão, desprezível lixeira ou fonte de rendimento ilícito. Tal como há cem anos, ou duzentos, as classes com meios adoptaram o que vinha de França e de Londres, sobretudo as rendas e o Chablis, mas não a leitura nem a limpeza, também agora os meus vizinhos adoptaram o canídeo, mas não a vassourinha. Felizmente que existe, como sempre, o Estado providência. Na verdade, a freguesia pôs à disposição dos residentes, cortesia do Estado, pás e luvas. Não temos emenda!

3 comments:

Roberto Iza Valdés said...
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Kiii said...

venho deste modo apenas reafirmar aquilo que escrevu... vivo também na lapa, há já alguns anos e acabei por me identificar com todo o seu texto... os meus parabéns.

Paulo said...

Há uns "filhos de deus menor" que vivem no blog www.aspigcentro.blogspot.com que ma dá muita triteza.