Saturday, April 12, 2008

Flávio contra Flândria

Flávio contra Flândria

Paulo Moura, Público 12 Abril 2008

Flávio foi o meu professor
primário. Isto passa-se antes do 25
de Abril, bem entendido (ver foto
acima).
Na minha sala havia uns 40
alunos. Todos rapazes, porque a
escola não era mista. Nas fi las da
frente, sentavam-se os fi lhos das
famílias mais ricas, ou de classe
média. Atrás, numa zona que o
próprio Flávio baptizara como “a
fi la dos burros”, encolhiam-se de
puro medo os meninos que, por
uma curiosa coincidência, andavam
descalços.
O professor Flávio passeava-se por
entre as carteiras com uma cana-daÍndia
na mão. Ia fazendo perguntas,
para o ar, sem destinatário. Em
silêncio, nós, paralisados pelo
terror, esperávamos que ele,
no fi m da pergunta, se voltasse
subitamente para um: “Paulo!” O
aluno respondia, quase sempre mal,
porque o pânico tolhe o raciocínio. E
zás!, a vara caía-lhe com toda a força
sobre uma orelha. Passávamos horas
nisto. Era um dos prazeres de Flávio.
Outro era fazer a chamada para
entregar os ditados. Quantos erros
tínhamos dado, quantas reguadas
levávamos. Claro que os gloriosos
elementos da “fi la dos burros”
davam muito mais erros do que os
outros, e portanto apanhavam mais.
A vida deles era, aliás, apanhar.
Em geral, conformavam-se. Se lhes
tinha calhado na rifa serem pobres
e “burros”, também era normal que
apanhassem. Era a lei da vida. Pelo
menos naquela altura, era.
Apanhavam e calavam. Não. Um
deles era diferente. Chamávamoslhe
o Flândria, porque o pai
trabalhava como operário na
fábrica de motorizadas Flândria.
Era um miúdo baixito, de cabelo
quase rapado, calças rotas,
sempre descalço. Era um “burro”
normal, mas um dia fez uma coisa
extraordinária: quando a cana
descia brutalmente sobre a sua
cabeça, ele agarrou-a, puxou-a, e
perante o estarrecimento da turma
inteira, deu um encontrão ao
Flávio. Louco de fúria, o professor
agarrou-o pelos colarinhos e
começou a dar-lhe bofetadas e
pontapés.
O Flândria desatou a chorar, mas
Flávio não se condoeu. Continuou
a bater-lhe com os pés e as mãos,
muito vermelho, a suar em bica. O
Flândria levantou-se e fugiu, mas
o Flávio foi atrás dele. Ficámos
a assistir a uma perseguição
tresloucada por entre as carteiras.
A dado momento, o Flândria teve
uma jogada de génio: empurrou
uma cadeira para o meio do
corredor. O professor, que vinha
atrás, tropeçou e estatelou-se no
chão. Foi maravilhoso, mas ninguém
ousou rir-se. Quando Flávio se
levantou, o Flândria percebeu que
tinha de fugir porta fora.
O professor recompôs-se e
continuou a aula, como se nada
se tivesse passado. Nenhum de
nós abriu a boca. Excepto, claro,
o Flândria, que entretanto tinha
enfi ado a cabeça pela janela e
gritava, lá de fora: “Quero as minhas
coisinhas!” Referia-se à sua pasta
imunda, que não conseguira levar
consigo, na precipitação da fuga.
“Quero as minhas coisinhas!”,
chorava ele, pendurado na janela.
Mas nenhum de nós ousou sequer
voltar a cabeça.
Flândria, onde quer que estejas,
quero que saibas isto: durante toda a
vida, foste o meu herói.
Jornalista

No comments: