A quem interessa a avaliação como ficção?
Paulo Guinote - 20080425 Público
Este Governo e este Ministério da Educação acharam por bem erigir os docentes como seus adversários de estimação, decidindo serem eles os responsáveis pelos diversos males e maleitas que afectam a Nação, desde a escassa literacia por comparação com o resto da Europa até ao excessivo défice orçamental, medido pelos mesmos parâmetros.
O conflito vai em três anos e percorreu diversas matérias e assumiu variadas configurações. Uma das recorrências passou por um discurso pretensamente meritocrático, destinado a exaltar a necessidade da "excelência" na Educação e do "rigor" na avaliação dos docentes do sector público. Sendo para isso indispensável estabelecer um regime de avaliação que permitisse reconhecer o "mérito" e recompensá-lo em termos de diferenciação na progressão na carreira.
Se o objectivo fosse alcançar isso de forma rápida, havia solução fácil e cómoda. Recuperava-se o artigo 50.º do Estatuto da Carreira Docente de 1998, no qual se previa que "a atribuição da menção qualitativa de Muito Bom determina, para efeitos de progressão na carreira, a bonificação de dois anos no tempo de serviço do docente" e revia-se o Decreto Regulamentar n.º 11/98 onde se procedeu à regulamentação do processo de avaliação do desempenho, acrescentando-lhe o articulado então esquecido sobre essa menção qualitativa. O legislador podia introduzir todas as regras e normas que considerasse necessárias para distinguir o "mérito" ou a "excelência". Acredito mesmo que se nesse artigo surgisse um mecanismo próximo do das quotas, seria algo difícil aos sindicatos e aos docentes oporem-se a tal medida, antes implicitamente acordada, pois apenas viria colmatar uma lacuna na legislação existente.
O caminho seguido foi outro e revelador do verdadeiro projecto político deste Governo e deste ME em termos de gestão dos recursos humanos da Educação. As suas intenções nunca foram premiar o mérito ou a excelência, mas sim espartilhar horizontalmente a carreira docente e bloquear artificialmente a progressão da maioria dos seus elementos. A publicação do Decreto Regulamentar n.º 2/2008 em Janeiro deste ano apenas passou para verbo com valor legal um sistema de avaliação dos docentes destinado a legitimar esses mecanismos de bloqueio da progressão. Mais grave do que isso, foi um diploma marcado por dois outros pecados maiores, ao nível do conteúdo e da forma do modelo proposto:
- Em termos substanciais, todos percebemos, mesmo com vista fracamente armada, que se propunha um modelo profundamente burocrático, pesado, formalista, papelento e assente numa hierarquia de avaliadores que antes o ME afirmara (mesmo se injustamente) terem chegado ao topo da carreira apenas por efeito de um sistema indolente de promoção.
- Em termos formais, também era facilmente compreensível que, publicado com o ano lectivo a meio, o cronograma proposto era inexequível. O próprio ME confessou isso ao rapidamente prescindir de fazer a sua parte, adiando a avaliação dos professores-avaliadores pela IGE para as calendas.
O edifício começou a entrar em colapso pela própria cúpula.
Repetidamente humilhados em público, os professores sentiram-se justamente revoltados com a forma pouco respeitosa como estavam a ser tratados e protestaram. E protestaram como nunca o tinham feito até hoje. Em massa, de forma inesperada para muitos, independente e com um cuidado extremo em preservar a qualidade do seu trabalho nas escolas com os seus alunos, algo com que o ME não pareceu estar sempre muito preocupado com a sua forma de agir. Perante isso, entrámos numa rápida sucessão de manobras de ilusionismo, em que os recuos se chamaram progressos e as cedências se chamaram convergências.
Neste momento foi alcançado o acordo possível, baptizado de "entendimento", após o desacordo constante nos últimos anos. Eu chamar-lhe-ia antes a "trégua" possível, atendendo às circunstâncias. Como "trégua", não está mal. Mas sabendo-se que o debate e a contestação continuarão dentro de momentos.
Há que repensar a avaliação dos docentes de uma forma séria e não instrumental. A avaliação deve estar efectivamente ao serviço da qualidade da escola pública e não de interesses ideológicos, políticos ou económicos. Deve reconhecer o mérito dos profissionais no desempenho das funções, sem entraves artificiais. Deve ser feita com rigor, clareza e equidade.
Discordo do sistema de avaliação proposto pelo ME porque acho que ele assenta numa falsa ilusão positivista de objectividade que encobre alçapões de opacidade nos processos (secretismo na definição dos objectivos individuais) e de potencial clientelismo.
Acho que o processo de avaliação e classificação deveria ser público, ser formalizado no final de cada escalão da carreira e assentar, com naturalidade, na apresentação de uma prova pública de aptidão pedagógica perante um júri. Sei que não é uma opção muito popular e desejada por todos, mas é o método que acho mais adequado à função exercida.
Neste momento, tal como existe no Decreto Regulamentar n.º 2/2008, a avaliação dos docentes tornou-se uma ficção. Muito do que lá está é letra morta. Escuso-me de detalhar como, sem um diploma que o reveja ou substitua, qualquer avaliação "simplificada" é marginal à lei e, logo, impugnável em qualquer instância judicial.
Orgulhos pessoais e políticos afastados, aconselharia o bom senso que o modelo fosse rapidamente revisto de modo a torná-lo credível. Enquanto isso não acontecer, a avaliação dos docentes corre o risco de se tornar uma mera ficção legislativa.
Aparentemente, são muitos os que estão interessados nisso. Incluindo os que ontem defendiam este modelo como a quinta-essência da promoção do "mérito" e do "rigor", assim como do único caminho possível para a "excelência". Professor do 2.º CEB, doutorado em História da Educação