António
Barreto
Retrato da
Semana
Público, 2 Dez 2007
Ainda não são aos bandos, mas há já fi guras
sinistras que voam pelo Príncipe Real, pelas
ruas da Escola Politécnica, da Alegria e do
Salitre, pelos jardins da Faculdade de Ciências
e pelo Jardim Botânico, até ao Parque
Mayer. Já há “interessados”, com muito dinheiro, que
querem “desenvolver” a área, “promover” a habitação,
abrir escritórios de luxo, criar unidades hoteleiras, centros
comerciais e zonas de lazer. Parece mesmo que
certos edifícios do Príncipe Real foram já adquiridos.
Está ali, sem dúvida, uma “janela de oportunidade”,
um “desafi o da modernidade” e uma “aposta na qualidade”.
A Lisboa competitiva ameaça passar por ali.
O CONJUNTO ESTÁ IDENTIFICADO. JÁ FOI A QUINTA
do Monte Olivete e já pertenceu aos Jesuítas. Já foi o
Noviciado da Cotovia e o Colégio dos Nobres. Já foi a
Escola Politécnica e a Faculdade de Ciências. Hoje alberga
dois museus, muitas relíquias e alguns pardieiros.
É a antiga Faculdade de Ciências, seus imóveis, anexos
e jardins, a que se acrescenta o Jardim Botânico. Inclui
alguns edifícios escolares, uns desactivados desde
o incêndio de 1978, outros depois disso. Pertence à
Universidade de Lisboa. São cerca de seis hectares no
centro da cidade. Espaço único que qualquer capital
civilizada aproveitaria e mostraria, orgulhosa, aos seus
cidadãos e ao mundo.
O INVENTÁRIO DO QUE ALI ESTÁ É IMENSO. COM A
ajuda da directora Ana Eiró e da investigadora Marta
Lourenço, pode resumir-se, por defeito, no seguinte. Os
Museus da Ciência e da História Natural, que incluem o
museu e laboratório mineralógico e geológico, o museu,
laboratório e jardim botânico e o museu e laboratório
zoológico e antropológico. O Observatório Astronómico.
A Biblioteca científi ca dos séculos XV a XIX. Os
restos das instalações escolares do século XIX, nomeadamente
as salas, laboratórios e anfi teatros da química,
da física e da matemática. O Picadeiro Real do Colégio
dos Nobres (nascido em 1766), fabuloso edifício, hoje
transformado em pavilhão de desportos. Os arquivos
históricos de várias instituições científi cas.
O CONTEÚDO É IMPRESSIONANTE. SÃO COLECÇÕES
notáveis de instrumentos científi cos e técnicos de química,
física, astronomia e matemática dos séculos XIX
e XX (mais de 10.000 peças). Arquivos históricos (mais
de 100.000 documentos). Bibliotecas científi cas dos séculos
XV a XX (25.000 livros). Mobiliário muito curioso
e interessante. Colecções de antropologia (2000 esqueletos),
de mamíferos (5000 espécies), de aves (2600),
de peixes (7000 lotes), de anfíbios e répteis (1000), de
invertebrados (30.000 lotes) e de sementes (4000 lotes).
A que se acrescentam os herbários (250.000 espécies)
dos séculos XVIII e XIX, incluindo os de Vandelli,
Brotero e Welwitsch. Ou as colecções de mineralogia,
petrologia, estratigrafi a e paleontologia (80.000 peças).
E fi nalmente o fantástico Jardim Botânico (1500 espécies),
com mais de 150 anos de existência, sobre o qual
dou a palavra ao Senhor Félix Krull, criação de Thomas
Mann, que nos diz, nos anos cinquenta, a propósito de
Lisboa: “A sua primeira visita deverá ser para o Jardim
Botânico, sobre as colinas do Oeste. Não tem igual na
Europa inteira, graças a um clima em que a fl ora tropical
prospera tanto como a da zona temperada. O jardim está
cheio de araucárias, de bambus, de papiros, de iúcas
e de todas as variedades de palmeiras. Aí verá com os
seus olhos plantas que, no fundo, já não pertencem
à actual vegetação do nosso planeta, mas a uma fl ora
mais antiga como, por exemplo, os fetos arbóreos. Vá
lá imediatamente e repare no feto arbóreo do período
carbónico. É mais do que uma pequena história cultural.
É toda a antiguidade da terra”!
A AMEAÇA DOS PROMOTORES NÃO É A ÚNICA. A OUTRA
é a da ruína e da degradação. É um verdadeiro tesouro
no meio da cidade, mais ou menos ignorado, decadente,
parcialmente abandonado, com equipamentos degradados
e espécies mal conservadas... Os efeitos desta ameaça
já se podem observar à vista desarmada. Há instalações
fechadas porque perigosas. Há paredes degradadas e soalhos
a cair. Há salas e edifícios encerrados por razões
de segurança. Muitas colecções estão fechadas por falta
de condições de preservação ou de exibição. O Jardim
Botânico tem falta absoluta de jardineiros e carência de
verbas para tratamentos
e manutenção, não havendo
sequer orçamento
sufi ciente para pagar a
rega. Degradação e abandono
são as palavras que
vêm ao espírito, apesar de
uns bandos de alunos que
visitam os locais e mau grado
alguns investigadores e
funcionários que se esforçam
por manter aquilo vivo.
A Universidade não tem
recursos para manter ou desenvolver este património. O
Governo diz, há muitos anos, que também não tem. Da
Câmara de Lisboa, além de intenções vagas, pouco se sabe.
Mas, a seu favor, nota-se a abertura de um “concurso
de ideias” até ao próximo 4 de Janeiro.
NÃO HAVERÁ, EM LISBOA OU NO PAÍS, INTELIGÊNCIA
sufi ciente para preservar e aproveitar este conjunto,
utilizando-o para os fi ns óbvios, como sejam o estudo,
a investigação e a divulgação cultural e científi ca, sem
esquecer todas as funções que pode preencher um espaço
público único? Não haverá ninguém que não se tenha
ainda deixado perverter pela cultura vigente do efémero,
da espuma virtual, do superfi cial e do divertimento? Não
haverá ninguém interessado em evitar novos incêndios,
inundações, delapidações ou promotores imobiliários?
Não haverá um ministro capaz de perceber isto? Um
Presidente da câmara? Um banco? Uma companhia de
seguros? Uma empresa? Uma fundação?
SEIS HECTARES E UM PATRIMÓNIO TÃO RICO NO CENTRO
da cidade! Numa cidade onde faltam os espaços verdes;
onde são poucos os espaços públicos organizados e acessíveis;
onde são raros os locais de repouso e convívio;
onde há poucos museus e instituições de divulgação
cultural e científi ca! Nunca saberei exactamente o que
mais leva ao desperdício e à degradação. Já pensei que
fosse a pobreza. Depois, a ignorância. Agora, acrescento
a demagogia dos novos-ricos. Sociólogo