Eles estão doidos! Quem recusar fornecer-se de produtos industriais e quem não quiser ser igual a toda a gente está condenado
António Barreto, Público 25 Novembro 2007
A meia dúzia de lavradores que comercializam
directamente os seus produtos e que sobreviveram
aos centros comerciais ou às grandes
superfícies vai agora ser eliminada sumariamente.
Os proprietários de restaurantes caseiros
que sobram, e vivem no mesmo prédio em que
trabalham, preparam-se, depois da chegada da fast food,
para fechar portas e mudar de vida.
Os cozinheiros que faziam no domicílio pratos e “petiscos”,
a fi m de os vender no café ao lado e que resistiram a
toneladas de batatas fritas e de gordura reciclada, podem
rezar as últimas orações. Todos os que cozinhavam em
casa e forneciam diariamente aos cafés e restaurantes
do bairro sopas, doces, compotas, rissóis e croquetes
podem sonhar com outros negócios. Os artesãos que
comercializam produtos confeccionados à sua maneira
vão ser liquidados.
A solução fi nal vem aí. Com a lei, as políticas, as polícias,
os inspectores, os fi scais, a imprensa e a televisão.
Ninguém, deste velho mundo, sobrará. Quem não quer
funcionar como uma empresa, quem não usa os computadores
tão generosamente distribuídos pelo país, quem
não aceita as receitas harmonizadas, quem recusa fornecer-
se de produtos e matérias-primas industriais e quem
não quer ser igual a toda a gente está condenado.
Estes exércitos de liquidação são poderosíssimos: têm
estado-maior em Bruxelas e regulam-se pelas directivas
europeias elaboradas pelos mais qualifi cados cientistas
do mundo; organizam-se no governo nacional, sob tutela
carismática do ministro da Economia e da Inovação,
Manuel Pinho; e agem através pessoal da ASAE, a organização
mais falada e odiada do país, mas certamente a
mais amada pelas multinacionais da gordura, pelo cartel
da ração e pelos impérios do açúcar.
Em frente à faculdade onde dou aulas, há dois ou três
cafés onde os estudantes, nos intervalos, bebem uns
copos, conversam, namoram e jogam às cartas ou ao
dominó. Acabou! É proibido jogar!
Nas esplanadas, a partir de Janeiro, é proibido beber
café em chávenas de louça, ou vinho, águas, refrigerantes
e cerveja em copos de vidro. Tem de ser em copos
de plástico.
Vender, nas praias ou nas romarias, bolas-de-berlim ou
pastéis de nata que não sejam industriais e embalados?
Proibido. Nas feiras e nos mercados, tanto em Lisboa e
Porto, como em Vinhais ou Estremoz, os exércitos dos
zeladores da nossa saúde e da nossa virtude fazem razias
semanais e levam tudo quanto é artesanal: azeitonas,
queijos, compotas, pão e enchidos.
Na província, um restaurante artesanal é gerido por
uma família que tem, ao lado, a sua horta, donde retira
produtos como alfaces, feijão verde, coentros, galinhas
e ovos? Acabou. É proibido.
Embrulhar castanhas assadas em papel de jornal?
Proibido.
Trazer da terra, na estação, cerejas e morangos? Proibido.
Usar, na mesa do restaurante, um galheteiro para o
azeite e o vinagre é proibido. Tem de ser garrafas especialmente
preparadas.
Vender, no seu restaurante, produtos da sua quinta,
azeite e azeitonas, alfaces e tomate, ovos e queijos, acabou.
Está proibido.
Comprar um bolo-rei com fava e brinde porque os
miúdos acham graça? Acabou. É proibido.
Ir a casa buscar duas folhas de alface, um prato de sopa
e umas fatias de fi ambre para servir uma refeição ligeira
a um cliente apressado? Proibido.
Vender bolos, empadas, rissóis, merendas e croquetes
caseiros é proibido. Só industriais.
É proibido ter pão congelado para uma emergência:
só em arcas especiais e com fornos de descongelação
especiais, aliás caríssimos.
Servir areias, biscoitos, queijinhos de amêndoa e brigadeiros
feitos pela vizinha, uma excelente cozinheira
que faz isto há 30 anos? Proibido.
As regras, cujo não cumprimento leva a multas pesadas
e ao encerramento do estabelecimento, são tantas que
centenas de páginas não chegam para as descrever.
Nas prateleiras, diante das garrafas de Coca-Cola e de
vinho tinto tem de haver etiquetas a dizer Coca-Cola e
vinho tinto.
Na cozinha, tem de haver uma faca de cor diferente
para cada género.
Não pode haver cruzamento de circuitos e de géneros:
não se pode cortar cebola na mesma mesa em que se
fazem tostas mistas.
No frigorífi co, tem de
haver sempre uma caixa
com uma etiqueta “produto
não válido”, mesmo
que vazia.
Cada vez que se corta
uma fatia de fi ambre ou
de queijo para uma sanduíche,
tem de se colar uma
etiqueta e inscrever a data
e a hora dessa operação.
Não se pode guardar pão para, ao fi m de vários dias,
fazer torradas ou açorda.
Aproveitar outras sobras para confeccionar rissóis ou
croquetes? Proibido.
Flores naturais nas mesas ou no balcão? Proibido. Têm
de ser de plástico, papel ou tecido.
Torneiras de abrir e fechar à mão, como sempre se fi -
zeram? Proibido. As torneiras nas cozinhas devem ser de
abrir ao pé, ao cotovelo ou com célula fotoeléctrica.
As temperaturas do ambiente, no café, têm de ser medidas
duas vezes por dia e devidamente registadas.
As temperaturas dos frigorífi cos e das arcas têm de ser
medidas três vezes por dia, registadas em folhas especiais
e assinadas pelo funcionário certifi cado.
Usar colheres de pau para cozinhar, tratar da sopa ou
dos fritos? Proibido. Tem de ser de plástico ou de aço.
Cortar tomate, couve, batata e outros legumes? Sim,
pode ser. Desde que seja com facas de cores diferentes,
em locais apropriados das mesas e das bancas, tendo o
cuidado de fazer sempre uma etiqueta com a data e a
hora do corte.
O dono do restaurante vai de vez em quando abastecer-
se aos mercados e leva o seu próprio carro para
transportar uns queijos, uns pacotes de leite e uns ovos?
Proibido. Tem de ser em carros refrigerados.
Tudo isto, como é evidente, para nosso bem. Para proteger
a nossa saúde. Para modernizar a economia. Para
apostar no futuro. Para estarmos na linha da frente. E
não tenhamos dúvidas: um dia destes, as brigadas vêm,
com estas regras, fi scalizar e ordenar as nossas casas.
Para nosso bem, pois claro. Sociólogo
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