Monday, November 22, 2004

É Preciso Acalmar a Fúria de Sucessivas Reformas no Ensino Por MARIA DO CARMO VIEIRA

Público
Segunda-feira, 22 de Novembro de 2004

Aqueles que são ignorantes são fáceis de conduzir

Robert Schumann

Lecciono numa das "piores" Escolas do País e confesso que me é penoso escrever, ler ou ouvir tal avaliação, que estigmatiza toda uma comunidade escolar e a humilha perante todos. É certo que me "levanto", arrastando nesse gesto, que me exijo, todos os meus alunos que, embora frequentem o Ensino Recorrente Nocturno, se sentem profundamente atingidos na sua dignidade. Muitos, recentemente, me confessaram recear a pergunta sobre a Escola que frequentavam e eu própria interrogada, a esse propósito, por uma aluna do 8º ano do Colégio dos Maristas em Lisboa (6º lugar), tive uma primeira reacção de silêncio, sentindo o tumulto da confusão dentro de mim. Posso garantir, no entanto, que não serão as listas que me farão sair da Escola onde criei raízes e de onde guardo as melhores recordações da minha vida de professora de Português e Francês, todas elas povoadas de alunos, dos seus gestos, atitudes, intervenções, cartas, casamentos, filhos, a quem, por exemplo, se pôs o nome de personagens de romances estudados, nas aulas, ou de amadas de poetas, relembrando o de Lídia, a quem Ricardo Reis-Fernando Pessoa se dirigiu, em tantas das suas odes.

Não me poderia ser também indiferente o facto desta Escola acumular 120 anos de história e um património, que nos fala de um Tempo, da qualidade de um Ensino, da Competência e da Criatividade dos seus alunos e dos seus Mestres, um dos quais exige ser mencionado - Leopoldo Battistini, que aliás deu o nome ao museu da Escola, carinhosamente montado e organizado pelos colegas, Alice Lázaro, professora de História, e António Ambrósio, professor de Educação Visual. Nós, os da Marquês de Pombal, temos o privilégio diário de cruzar o passado com o presente, ora contemplando a delicadeza de peças desenhadas e executadas pelos antigos alunos, ora utilizando-as nas oficinas e noutros espaços, apreciando a perfeição da obra realizada, ora ainda quando saudamos em silêncio os que são a imagem do outrora, retidos em grandes fotografias fixas ao longo da escadaria, que dá acesso às salas de aulas. Temos ainda o orgulho de contactar com a Associação dos Antigos Alunos, a funcionar de forma muito dinâmica e cujo espaço deveria ser mais amplamente divulgado pelo recheio patrimonial que guarda.

Será talvez devido a esta relação de amizade, que criámos com a Escola e com o seu espaço, que não gostamos de assistir ao esvoaçar desenfreado dos jornalistas, na mira das escolas extremadas nos "rankings"; muito menos suportamos que os Conselhos Executivos justifiquem ostensivamente, sem o mínimo de respeito pela privacidade dos seus alunos, que "eles vêm do campo", que "há problemas de alcoolismo em algumas famílias", que a maior parte "tem de ajudar os pais nas diferentes lides rurais", ou que "os recursos financeiros são fracos" ou ainda "que vivem em barracas" ou que "são filhos de emigrantes". Respostas que já conhecíamos do ano passado e que serão as mesmas do próximo ano, porque na realidade nada se faz para alterar seja que situação for. É pura falta de decência da parte de quem assim se tenta libertar de responsabilidades, rebaixando-se e arrastando toda a Escola, e de quem anseia pelo espectáculo do miserabilismo, tão em voga em manuais, em programas, em certas pedagogias e, obviamente, até à náusea, na televisão e também na Rádio. Um problema grave de contágio que se instalou já como epidemia.

As listas que tão afincadamente o director do jornal PÚBLICO exigiu dar ao país, em nome de uma melhor educação e de uma merecida liberdade para os encarregados de educação, fazem lembrar a Escola Primária do meu tempo (1958) em que, ao ritmo da voz aflautada de uma professora, catraios de 6, 7, 8 ou 9 anos, avançavam ora rápida ora envergonhadamente para a fila que lhes era apontada e designada por Ouro, Prata, Cobre ou Ferro. Não será necessário dizer quem eram os que ocupavam o seu lugar em passo de dança, ou os que de cabeça baixa e num andar desajeitado se fechavam no espaço da humilhação. Era assim no meu tempo e assim continua. Estranho, não acham?

Se queremos efectivamente investir na qualidade do Ensino, creio que será necessário parar para reflectir. Há, com efeito, que:

1. Acalmar a fúria de sucessivas reformas, nunca avaliadas nos seus efeitos, e que desatinam professores e alunos. Como se explica por exemplo que os autores desta nova Reforma, sempre tão preocupados com "o prazer dos alunos", considerassem pedagógico o número de disciplinas (15, não é engano, é mesmo quinze) e que preenchem de manhã à noite, com furos à mistura, os horários dos alunos do 3º Ciclo (7º, 8º e 9º anos)? Ou os blocos de 90 minutos para as aulas de Português, e outras disciplinas afins, sabendo-se de antemão que é limitada a nossa capacidade de atenção?

2. Exigir a qualidades dos manuais, atitude negligenciada pelo próprio Ministério e, infelizmente, por muitos professores, que aceitam passivamente, sem qualquer espírito crítico, tudo o que lhes é oferecido. No caso dos novos programas da disciplina de Português custa, ver a indiferença de muitos colegas ao facto da literatura ser apresentada como um mero tipo de texto, entre outros. Será que desconhecem que a literatura é uma arte? Só isso poderá explicar que num manual do 11º ano apareça uma sequência de aprendizagem, assim sumariada: Editorial, Poesia de Cesário Verde, Publicidade, Reclamação, Artigo Crítico.

3. Recusar a "formatação" do acto de ensinar, atitude bem expressa nos novos programas de Língua Portuguesa, na organização e conteúdo de muitos manuais e na formação que pretende "ensinar os professores a aplicar os novos programas".

Como podemos aceitar, com tanta docilidade, que nos asfixiem a atitude de "estudante", que qualquer professor deve conservar ao longo da vida, e nos transformem em cassetes portáteis?

Professora

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