Público
Sábado, 27 de Novembro de 2004
magine que vai nacarreira 46, exactamente aquela onde recentemente um motorista da Carris foi agredido por um "gang" juvenil e lê no jornal: "O Tribunal de Instrução Criminal (TIC) do Porto mandou libertar, ontem, três cidadãos marroquinos que se encontravam em prisão preventiva desde 27 de Setembro, depois de terem sido detidos no Porto com mais de 21 mil comprimidos de 'ecstasy'. A decisão foi fundamentada com o facto de o tribunal ter considerado existir a probabilidade de as escutas telefónicas que deram origem às buscas e às apreensões virem a ser anuladas. Argumenta o juiz que, caso venha a ser declarada a nulidade das mesmas, por não se terem cumprido os formalismos legais, então existe uma probabilidade séria de os arguidos virem a ser absolvidos." ("JN", 19 de Novembro). Mas, em vez desta, podia ser também a história de Franklim Lobo, apontado pelas autoridades portuguesas como um dos mais importantes traficantes de droga e que, graças a um lapso judicial, foi libertado apesar de ter uma pena de 25 anos de prisão para cumprir. Ou a do juiz conselheiro Joaquim Almeida Lopes, que alegadamente terá dado indicações que permitiram a Fátima Felgueiras fugir à acção da justiça, mas que provavelmente nunca será julgado, porque as escutas telefónicas que o incriminavam não podem ser usadas... Podem ser estas ou outras quaisquer,mas incompreensivelmente tantas histórias dando conta de uma justiça que subestima as suas responsabilidades sociais e políticas.
Quando, dentro de alguns anos, a propósito do recrudescimento da extrema-direita na Europa,nos interrogarmos: "Como é que tudo isto começou?", vamos encontrar casos como estes ou como o de Carlos Silvino, que, das várias vezes que foi afastado da Casa Pia, foi sempre reintegrado por ordem dos tribunais. Tal como os anarquistas e comunistas fizeram no passado, agora, no século XXI, a extrema-direita vai colocar na agenda europeia aquilo que os políticos tradicionais não querem ver: uma justiça que despreza os mais fracos e o terror imposto pelos fundamentalistas islâmicos. No passado, não queriam ver a forma como os operários viviam e morriam. Uns chás de caridade, umas sopas dos pobres e o voluntarismo de alguns empresários não eram de modo algum suficientes para resolver as precárias condições de vida das classes trabalhadoras.
Hoje, os políticos tradicionais não querem ver que criaram um sistema de justiça que se preocupa mais com os arguidos do que com as vítimas. E as vítimas estão longe de ser aqueles que vivem em condomínios fechados ou nos bairros da classe média. As vítimas são os velhos que vivem nas serras algarvias, ou a jovem mãe da Cova da Moura que prefere ficar com um filho doente em casa até que se faça dia, porque tem medo de sair à ruamal o sol desaparece. As vítimas são os pequenos comerciantes, os motoristas da Carris, os taxistas, os professores...enfim, seja todas aquelas pessoas que, pela natureza do seu trabalho ou pelos seus poucos recursos, não podem evitar locais e situações onde é muito provável que sejam vítimas de delinquência - ou como, certamente por ironia, é corrente chamar-lhe, da pequena delinquência. Mas é pequena do ponto de vista de quem? De quem pratica o crime, claro. Nesta lógica inversa, assaltar um banco não é pequena delinquência. Pequena delinquência é assaltar o reformado que vai a caminho de casa com a sua pensão. Mas a definição é feita unicamente do ponto de vista de quem pratica o crime. Ser-se assaltado por esticão quando se tem uma pensão de 220 euros é certamente uma violência maior do que, sob ameaça de arma, tirar-se vinte mil euros ao mais insolvente dos bancos.
O crime organizado, o colarinho branco e outras formas elaboradas da prática criminosa podem, em último grau, colocar até em causa a natureza de um Estado - veja-se o sucedido em Itália com a Máfia -, mas a quem regressa a casa, ao anoitecer, na carreira 46, o que o assusta, o que o preocupa, é a possibilidade de ser assaltado quando sair do autocarro. Ou dentro dele, como já aconteceu. Subestimar este tipo de criminalidade é um erro político que se vai pagar muito caro. Estas pessoas estão disponíveis para passarem a votar em quem der conta dos problemas da sua vida. Em quem ousar dizer aquilo que eles gostariam de dizer, mas calam porque têm medo. A este medo, a esta humilhação do "calado é o melhor", do "eu cá não vi nada, não sei nada", junta-se o absurdo de os partidos políticos subestimarem a questão. Numa espécie de pacto de regime, está instituído que esta temática é couto da extrema-direita e, como o medo de ser chamado fascista funciona como uma espécie de "spray" entorpecedor, faz-se tábua rasa sobre o assunto. Até ao dia em que se constata, por exemplo, que Le Pen está prestes a tornar-se Presidente da França, como convém não esquecer que esteve para acontecer.
À incapacidade manifestada pelos políticos tradicionaisde abordarem o tema da insegurança, junta-se agora o problema do fundamentalismo islâmico. O que levou os telespectadores holandeses a consideraram recentemente um político marginal ao sistema, como era Pim Fortuyn, o seu maior compatriota de todos os tempos foi o facto de o recordarem como alguém que disse acerca dos emigrantes muçulmanos aquilo que eles gostariam de dizer, mas não dizem -porque têm medo de serem agredidos ou assassinados. Mesmo em países aparentemente livres desse flagelo, como é o caso de Portugal, as pessoas começam a ter cuidado: "Tínhamos pensado pôr umas mulheres com umas 'burkas', mas com isto do Theo Van Gogh é melhor termos cuidado. Vamos fazer a coisa menos óbvia!" Quando, num almoço pré-natalíciodava conta desta frase, que ouvi pronunciada, na semana passada, ao participante de um espectáculo, imediatamenteuma vozcontrapôsdo outro lado da mesa: "Por acaso, num argumentoque estou a fazer para um documentário também tive o cuidado de não meter mulheres com véus, porque não me apetece nada ter uma bomba à porta de casa!" Ao ouvir frases como estas, é impossível não recordar as estratégias de intimação dos nazis. "A posteriori" é óbvio onde estava o mal, mas, na época, os nazis, tal como hoje os fundamentalistas, justificavam as suas acções com base no facto de terem sido provocados. E ontem, tal como hoje, a estratégia do terror funcionou, transformando as vítimas em agentes de provocação, criando dois pesos e duas medidas: o procurador do tribunal francês onde, neste momento, se julga o jovem muçulmano que há um ano agrediu o rabi Michel Serfaty considerou que não se esteve perante um acto racista, mas sim perante uma palermice. O facto de o agressor ter gritado: "Palestina, Palestina, vou partir-te a cara, judeu!" foi irrelevante para o procurador, que fez até questão de declarar a Michel Serfaty: "Francamente, senhor rabi, eu penso que o senhor lhe fez medo."
Medo é de facto o que sente perante tanta cegueira. Esta cegueira que nos obriga a fazer de conta que somos livres e que nos manda calar o medo em nome do politicamente correcto. Combater o fundamentalismo, dar mais segurança às pessoas, têm de ser causas dos partidos democráticos. Porque é a liberdade que está em causa. Ainda não nos corredores das faculdades, nem nos círculos do poder. Mas experimentem apanhar a carreira 46, ao anoitecer, e ouçam o que aí se diz. Antes que seja tarde.
Saturday, November 27, 2004
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