Saturday, September 27, 2008

As perguntas que devem ser feitas sobre o Magalhães

José Pacheco Pereira, Público 27 de Setembro de 2008

O caso do Magalhães é mais um exemplo de como pouco se escrutina a actividade governamental
As entregas de computadores nas escolas pelo primeiro-ministro são uma peça essencial da propaganda governamental de sucesso garantido a abrir um ano eleitoral. Como é óbvio, ninguém deixa de gostar que lhe dêem coisas. Valentim Loureiro dava frigoríficos e outros electrodomésticos, coisas que ninguém pode achar serem inúteis e desvantajosas para quem as recebe, Sócrates "dá" computadores, um objecto cuja aura é hoje superior ao frigorífico, e que vem envolvido com toda uma retórica de modernidade, que ninguém se atreve a contestar. Uma das características deste Governo é um grande deslumbramento tecnológico que tem muito a ver com o primeiro-ministro, um típico tecnocrata, mais autodidacta do que com uma formação profissional sólida, e que por isso "gosta" de gadgets e não sabe viver sem eles. Mais: está convencido de que são os gadgets que mudam as pessoas, numa visão tecnocrática típica, sem perceber que o modo como as pessoas os usam pode ou não ser vantajoso conforme as literacias prévias que possuam.
A operação é inevitavelmente popular, e por isso tem havido muito pouco escrutínio sobre ela, quer da comunicação social, quer da oposição. A oposição sente-se intimidada em criticar algo que sabe ser popular, e hesita. Passada a desmontagem das mentiras habituais na sua apresentação (o computador "português", etc., que só a RTP hoje repete), sobra quase tudo por analisar e questionar, mas isso incomoda muito pouca gente no ambiente de aceitação acrítica da governação e do embevecimento tecnológico que o povo recordista dos telemóveis inevitavelmente tem. O resultado é que toda esta história do computador Magalhães vai passar incólume mesmo que tudo, ou quase tudo, seja errado nesta operação.
Quanto mais sei sobre todo este processo do Magalhães, mais objecções tenho ao que se está a passar. E acresce que não sei muita coisa, porque há demasiadas obscuridades sobre como este projecto apareceu, como foi decidido, quem foi consultado nas escolas (pedagogos, professores) e na indústria, como foi financiado, de quem são os computadores que o Governo "dá", visto que não os comprou e não houve concurso público, que engenharia criativa foi feita para não haver concurso público, como foi escolhida esta empresa, que compromissos existem com ela, e como vai ser dada continuidade à produção, dados os números mirabolantes que o Governo agita, e que seriam bons para a capacidade produtiva de Taiwan, e as maravilhas de design nacional que supostamente vão ser incorporadas (o que significa que os computadores que o Governo está a "dar" são inferiores aos que vai "dar" daqui a um ano). E por aí adiante. Tenho tanta convicção de que isto foi feito no joelho e à pressa que desafio o Governo a mostrar as consultas, os estudos, que fez previamente, sobre as vantagens pedagógicas do Magalhães, por especialistas da educação, e sobre cada uma das opções, pelo Classmate, pela empresa de Matosinhos, etc., etc., que sustentaram um programa calculado em 200 milhões de euros à cabeça.
Há várias perguntas de fundo a fazer, que deveriam ter sido feitas e cuja resposta deveria ser prévia às sessões de propaganda para a televisão. A primeira e mais fundamental das perguntas é a de saber se a distribuição de computadores individuais para as crianças do ensino básico tem sentido pedagógico e utilidade no combate à info-exclusão. Sobre isto a maioria dos pedagogos responde não à primeira e a maioria dos estudos responde também não à segunda questão. Não é unânime a resposta, mas existem muitas dúvidas. Um relatório do Departamento de Educação americano é explícito: "A tecnologia parece ser completamente irrelevante quando se trata de ajudar estudantes a melhorarem os seus níveis de aproveitamento académico." É que nestas coisas nem tudo o que parece evidente para os deslumbrados dos gadgets é verdadeiro.
Não é líquido que um computador individual na sala de aula do ensino básico (o problema é diferente para outros níveis de ensino) possa beneficiar a aquisição das competências básicas, em particular na leitura e na matemática. No caso da leitura é claramente contraproducente, afastando as crianças da leitura "plana", corrida, na fluência do texto, fundamental na ficção e na poesia, a favor de uma leitura em volume, com o uso do hipertexto, com outras virtualidades, mas que não substituem a leitura "literária".
Ou seja, não é líquido que a aparente evidência de que quanto mais cedo for a exposição ao mundo dos computadores, através da opção pelo computador individual (um elemento básico desta escolha é a individualização da máquina), melhor será a aprendizagem e a info-inclusão. Não está em causa facilitar o contacto com os computadores, sem dúvida necessário, mas sim a posse de um computador individual e a sua utilização para aprender ao nível do ensino básico. Se for para jogos é outra coisa, se for como brinquedo tem certamente mais sentido, mas não é suposto o Estado distribuir consolas de jogos. Ou se é, na verdade as consolas de jogos são muito mais eficazes na idade do básico, não é suposto que essa seja uma prioridade pedagógica.
A questão essencial é que todas as crianças tenham facilidade de contacto com os computadores, não é ter um computador individual nesta faixa etária. Desse ponto de vista, tem muito mais sentido facilitar a presença de computadores em casa para a família, baixar o preço das comunicações, em particular a banda larga, e generalizar competências nos adultos, de modo a que as crianças que com eles convivem possam conhecer um ambiente amigável com os computadores, sem deixarem de fazer os trabalhos de casa escrevendo e lendo, sem ser fazendo copy-paste ou serem atirados para procuras na Internet cuja relevância não têm, como muitos dos seus professores, as literacias para julgarem.
A situação muda na pré-adolescência, onde a individualidade do computador é fundamental para o seu uso juvenil, que inclui uma utilização paraconfidencial face aos adultos como diário (nos blogues de adolescentes) ou nas actividades de turma ou grupos de amigos, como a partilha das fotos, chats, etc. É aliás na pré-adolescência que mais profícuo é o investimento na info-inclusão, cujo será tanto mais eficaz quanto as literacias básicas tenham sido adquiridas no básico. É que o combate contra a info-exclusão não depende em primeiro lugar das próprias tecnologias, mas sim de competências que lhe são prévias e que são, digamos assim, mais "clássicas". Se os computadores servem para procurar resultados de jogos de futebol ou pornografia, pouco mais acrescentam ao que se pode fazer com o teletexto da televisão e os canais por cabo e não "modernizam" nada.
Esta primeira questão tem a ver com a segunda: é este computador, pensado para as "comunidades em desenvolvimento" (como diz a Intel), ou seja países como a Índia, a Indonésia, países africanos, mesmo Venezuela e Angola, onde já está comercializado ou vai ser, a melhor opção para a Europa, adequado a Portugal? Existe nalgum país europeu um programa semelhante ao do Governo português, mesmo quando neles se comercializa o Classmate? Não. E a razão percebe-se muito bem: o tipo de contactos necessário e vantajoso das crianças daquela idade com o computador na Europa não passa pela propriedade de um computador na idade do brinquedo, mas sim pela possibilidade de as crianças jogarem jogos em consolas ou "pintarem" ou desenharem no computador das famílias ou da escola. Diferentemente da Indonésia ou do Burkina Faso, já existe em Portugal um parque de computadores nas casas e nas escolas, suficiente para esse acesso, o que não acontece nos países "em desenvolvimento", em que a opção pelo computador individual deste tipo tem outro sentido. A não ser que o computador esteja a ser dado aos pais e não às crianças e, nesse caso, rapidamente se verificará que na maioria dos casos o Magalhães pouca utilidade tem para os adultos, dadas as suas limitações e pelo preço do acesso à Internet. Aí é que as desigualdades sociais se vão verificar.
O caso do Magalhães é mais um exemplo de como pouco se escrutina a actividade governamental. Acenam-nos com as bandeirinhas do progresso tecnológico e nós concedemos tudo. Mas a verdade é que vários programas destes de "progresso" estão aí em ruínas, alguns com dois anos e milhões de euros deitados ao lixo, sem ninguém se dar ao trabalho de pedir contas. O caso da Via CTT é talvez o mais evidente, mas o das Cidades Digitais também exigia avaliação. E na altura, ai dos "velhos do Restelo" que se opusessem a essa magnífica ideia democrática e moderna de dar nas estações de CTT um e-mail a cada português!
Historiador

1 comment:

Anonymous said...

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