Friday, June 20, 2008

A necessidade de empobrecer

A necessidade de empobrecer

Vasco Pulido Valente, Público 20 Junho 2008

Cada vez que há uma crise
do petróleo, aparece a
ortodoxia a proclamar
zelosamente duas coisas.
Primeira, que temos de
pensar a sério na energia solar e
na energia eólica. Segunda, que
temos de mudar de vida. É uma
conversa sem sentido. A energia
eólica e a energia solar, no estado
actual da tecnologia, não resolvem
problema nenhum: cobrem uma
pequeníssima parte do consumo e,
sobretudo, são caríssimas. Quanto
à necessidade, e à urgência, de
mudar de vida, nunca a ortodoxia
explica exactamente o que isso
na prática significa: significa um
empobrecimento tão extenso e tão
profundo que, mesmo num país
como Portugal, com a sua miséria
e o seu atraso, 80 por cento da
população não a suportaria.
“Mudar de vida” seria pior do que
uma revolução, seria o fim de uma
civilização.
Com a minha idade, um
homem pode imaginar um país
devolvido de repente a 1948 ou
1949, antes de enriquecer e de
engordar com o petróleo barato.
Bem sei que o Portugal de Salazar
não serve de exemplo (mas já lá
vamos). Por agora, basta falar da
classe média urbana. Em Lisboa
quase não se viam “automóveis”
(como se dizia). Toda a gente
andava de eléctrico (muitos do
século XIX) ou de autocarro (de
resto, poucos). Viagens não se
faziam ou só se faziam de longe
em longe com trepidação e
sacrifício. Em casa, não existiam
electrodomésticos fora a telefonia
(um luxo) e o frigorífico (outro
luxo) e o ocasional aspirador ou
ferro de engomar (o fogão era
naturalmente a gás). Não me
lembro de ar condicionado: nem
na escola, nem na faculdade, nem
no trabalho. As roupas, como
os livros, passavam de irmão
a irmão ou de pais para filhos.
Ninguém desaproveitava comida,
meticulosamente medida e
recozinhada, que ia ressuscitando
de “prato” em “prato”. Ninguém
acendia a luz sem precisar. E o
cinema estava reservado para
sábado ou domingo (um dia por
semana).
Quando comecei a sair de
Portugal, num Mini perigosíssimo,
não encontrei auto-estradas
que me separassem do mundo,
encontrei estradas de vinte e
trinta anos com um trânsito
suportável e até simpático. Em
Inglaterra, apesar da euforia
do tempo, as pessoas contavam
tostões – libras, se quiserem – e
andavam vestidas para “durar”.
Até em Londres (como na
“Europa” inteira) o “automóvel”
não se tornara ainda uma
sufocação. Esse “equilíbrio”
– se me permitem a palavra
– acabou.
O slogan “mudar de vida” é uma
pura fraude, com que os políticos
mistificam a populaça. Tirando
um milagre, voltar à pobreza é
do que se trata. Pela força e pelo
sofrimento.

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