Sunday, March 09, 2008
Política educativa: uma estranha coerência
José Madureira Pinto - Público 20080309
A obsessão "gestionária" do Governo no modo de conceber a actividade docente tem o seu quê de anacrónicoCom conteúdos e qualidade muito diversos, as medidas de política educativa do actual Governo manifestam, em qualquer caso, um princípio unificador bastante preciso: retirar direitos ("privilégios", no entendimento dos responsáveis governamentais), poder e auto-estima aos professores dos ensinos básico e secundário. Intrigado com esta estranha coerência, terminava José Gil a sua coluna na Visão de 21 de Fevereiro com a seguinte interrogação: "Nisto tudo, porquê tanto ódio, tanto desprezo, tanto ressentimento contra a figura do professor?"
Procurando contribuir para responder à pergunta, direi que a atitude governamental em causa, para se poder apresentar com tanta convicção e coerência, teve de basear-se em alguns equívocos, que passo a tentar enunciar.
O primeiro equívoco consiste em admitir que a sociedade portuguesa oferece aos jovens condições homogeneamente favoráveis de acesso e de relacionamento com a escola, tornando por isso fácil e padronizável a acção pedagógica. Partindo deste equívoco, o corolário político extraído pela actual equipa ministerial foi o de que os alegados maus resultados obtidos no sistema educativo português são directamente imputáveis aos seus protagonistas mais salientes: os professores e os órgãos de gestão das escolas.
A verdade é que, para sustentar tal posição, é preciso acreditar que: a sociedade portuguesa não é marcada por fortes desigualdades económico-sociais; é estatisticamente irrelevante a proporção de crianças e jovens a viverem em situação de pobreza ou em famílias com horizontes de emprego precários; não há défices de instrução e de literacia muito elevados entre a população adulta, portanto entre os pais de muitos alunos que hoje frequentam a escola; não há falta de tempo nem de preparação de muitos encarregados de educação para o acompanhamento escolar dos filhos; não há espaços residenciais estigmatizados nem formas de socialização desviantes a eles associadas; não há diluição de factores de motivação para o trabalho escolar induzidos pelo consumismo e por ilusões de ascensão social difundidas no campo dos media e das indústrias culturais e de lazer; não há carências nem falta de coordenação entre instituições de apoio social às populações e grupos escolares mais desfavorecidos; não há desmotivação dos jovens para o prosseguimento de estudos por falta de perspectivas profissionais valorizadoras das aprendizagens escolares; não há pressão para a saída precoce da escola em direcção a postos de trabalho precários e muito pouco qualificados (em Portugal ou até em Espanha); etc.
O segundo equívoco é, em grande medida, uma projecção do primeiro no modo de conceber o quotidiano concreto das escolas e desdobra-se, também ele, em múltiplas crenças: os equipamentos escolares têm sempre grande qualidade; as turmas reais têm a dimensão que lhes atribuem as "médias" oficiais; é estável, transparente e coerente a malha de regulamentação das actividades lectivas de iniciativa governamental (raramente avaliadas, aliás) a que os professores têm de se adaptar; não há alunos com dificuldades acumuladas nas turmas; há acompanhamento permanente a esses alunos por parte de equipas pluridisciplinares devidamente preparadas e estáveis; há muito tempo disponível no horário dos professores para se relacionarem com os colegas, para prepararem conscienciosamente as aulas e para se encontrarem consigo próprios no quadro de estratégias de autoformação consistentes e estimulantes; a sala de aula é um espaço de transmissão da mensagem pedagógica sem resistências nem dissidências por parte dos receptores, e onde a indisciplina é pontual e passageira; não há sofrimento nem forte incidência de burnout entre os docentes; etc.
Assumidas estas ficções sobre a sociedade portuguesa e as suas escolas concretas, basta que se assuma também o pressuposto (individualista/subjectivista) segundo o qual a acção dos professores depende exclusivamente de qualidades e intenções que lhes são "próprias", e não sobretudo, como acontece na prática social em geral, da estrutura de limitações e oportunidades com que se confrontam - basta que se assumam aquelas ficções e este pressuposto para se começar a acreditar, e depois a jurar, que os problemas da escola portuguesa começam e acabam na inabilidade, preguiça, "corporativismo", desleixo, desinteresse dos professores, responsabilizando-os publicamente por isso.
Foi esta a armadilha intelectual em que se deixou cair a equipa ministerial, quase desde o momento em que iniciou funções. Daí à hostilização sistemática dos professores, habilmente mediada pelo ataque às suas estruturas sindicais, não foi senão um passo. (...) Numa altura em que os teóricos da organização e gestão empresarial defendem cada vez mais a importância do envolvimento e participação criativa dos trabalhadores (encarados como actores "reflexivos"), desconfiando dos que teimam em racionalizar e controlar os comportamentos no espaço do trabalho sem ter em conta a pluralidade e riqueza das suas dimensões humanas, a obsessão "gestionária" do Governo no modo de conceber a actividade docente (actividade relacional por excelência) tem o seu quê de anacrónico - e pode vir a ter consequências muito negativas, se não forem revistos alguns dos seus fundamentos e modos de concretização. Sociólogo; professor da Universidade do Porto
A obsessão "gestionária" do Governo no modo de conceber a actividade docente tem o seu quê de anacrónicoCom conteúdos e qualidade muito diversos, as medidas de política educativa do actual Governo manifestam, em qualquer caso, um princípio unificador bastante preciso: retirar direitos ("privilégios", no entendimento dos responsáveis governamentais), poder e auto-estima aos professores dos ensinos básico e secundário. Intrigado com esta estranha coerência, terminava José Gil a sua coluna na Visão de 21 de Fevereiro com a seguinte interrogação: "Nisto tudo, porquê tanto ódio, tanto desprezo, tanto ressentimento contra a figura do professor?"
Procurando contribuir para responder à pergunta, direi que a atitude governamental em causa, para se poder apresentar com tanta convicção e coerência, teve de basear-se em alguns equívocos, que passo a tentar enunciar.
O primeiro equívoco consiste em admitir que a sociedade portuguesa oferece aos jovens condições homogeneamente favoráveis de acesso e de relacionamento com a escola, tornando por isso fácil e padronizável a acção pedagógica. Partindo deste equívoco, o corolário político extraído pela actual equipa ministerial foi o de que os alegados maus resultados obtidos no sistema educativo português são directamente imputáveis aos seus protagonistas mais salientes: os professores e os órgãos de gestão das escolas.
A verdade é que, para sustentar tal posição, é preciso acreditar que: a sociedade portuguesa não é marcada por fortes desigualdades económico-sociais; é estatisticamente irrelevante a proporção de crianças e jovens a viverem em situação de pobreza ou em famílias com horizontes de emprego precários; não há défices de instrução e de literacia muito elevados entre a população adulta, portanto entre os pais de muitos alunos que hoje frequentam a escola; não há falta de tempo nem de preparação de muitos encarregados de educação para o acompanhamento escolar dos filhos; não há espaços residenciais estigmatizados nem formas de socialização desviantes a eles associadas; não há diluição de factores de motivação para o trabalho escolar induzidos pelo consumismo e por ilusões de ascensão social difundidas no campo dos media e das indústrias culturais e de lazer; não há carências nem falta de coordenação entre instituições de apoio social às populações e grupos escolares mais desfavorecidos; não há desmotivação dos jovens para o prosseguimento de estudos por falta de perspectivas profissionais valorizadoras das aprendizagens escolares; não há pressão para a saída precoce da escola em direcção a postos de trabalho precários e muito pouco qualificados (em Portugal ou até em Espanha); etc.
O segundo equívoco é, em grande medida, uma projecção do primeiro no modo de conceber o quotidiano concreto das escolas e desdobra-se, também ele, em múltiplas crenças: os equipamentos escolares têm sempre grande qualidade; as turmas reais têm a dimensão que lhes atribuem as "médias" oficiais; é estável, transparente e coerente a malha de regulamentação das actividades lectivas de iniciativa governamental (raramente avaliadas, aliás) a que os professores têm de se adaptar; não há alunos com dificuldades acumuladas nas turmas; há acompanhamento permanente a esses alunos por parte de equipas pluridisciplinares devidamente preparadas e estáveis; há muito tempo disponível no horário dos professores para se relacionarem com os colegas, para prepararem conscienciosamente as aulas e para se encontrarem consigo próprios no quadro de estratégias de autoformação consistentes e estimulantes; a sala de aula é um espaço de transmissão da mensagem pedagógica sem resistências nem dissidências por parte dos receptores, e onde a indisciplina é pontual e passageira; não há sofrimento nem forte incidência de burnout entre os docentes; etc.
Assumidas estas ficções sobre a sociedade portuguesa e as suas escolas concretas, basta que se assuma também o pressuposto (individualista/subjectivista) segundo o qual a acção dos professores depende exclusivamente de qualidades e intenções que lhes são "próprias", e não sobretudo, como acontece na prática social em geral, da estrutura de limitações e oportunidades com que se confrontam - basta que se assumam aquelas ficções e este pressuposto para se começar a acreditar, e depois a jurar, que os problemas da escola portuguesa começam e acabam na inabilidade, preguiça, "corporativismo", desleixo, desinteresse dos professores, responsabilizando-os publicamente por isso.
Foi esta a armadilha intelectual em que se deixou cair a equipa ministerial, quase desde o momento em que iniciou funções. Daí à hostilização sistemática dos professores, habilmente mediada pelo ataque às suas estruturas sindicais, não foi senão um passo. (...) Numa altura em que os teóricos da organização e gestão empresarial defendem cada vez mais a importância do envolvimento e participação criativa dos trabalhadores (encarados como actores "reflexivos"), desconfiando dos que teimam em racionalizar e controlar os comportamentos no espaço do trabalho sem ter em conta a pluralidade e riqueza das suas dimensões humanas, a obsessão "gestionária" do Governo no modo de conceber a actividade docente (actividade relacional por excelência) tem o seu quê de anacrónico - e pode vir a ter consequências muito negativas, se não forem revistos alguns dos seus fundamentos e modos de concretização. Sociólogo; professor da Universidade do Porto
Monday, March 03, 2008
A reforma da Educação
Por António Barreto - Público
PARECE QUE A EDUCAÇÃO está em reforma. Sempre esteve, aliás. Vinte e tal ministros da educação e quase cem secretários de Estado, em pouco mais de trinta anos, estão aí para mostrar o enorme esforço despendido no sector. Uma muito elevada percentagem do produto nacional é entregue ao departamento governamental responsável. Este incansável ministério zela por nós, está atento aos menores sinais de mudança ou de necessidade, corrige infatigavelmente as regras e as normas. Neste
5 de Outubro, dia da República, o Chefe de Estado e o presidente da Câmara de Lisboa não se esqueceram de considerar a educação a mais alta prioridade e a principal causa do nosso atraso. Nesse mesmo dia, mão amiga fez-me chegar o último exemplo do esforço reformador que anima os nossos dirigentes. Com a devida vénia ao signatário, o secretário de Estado Valter Lemos, transcrevo o seu despacho normativo, cuja leitura em voz alta recomendo vivamente:
Assim, o Despacho n.º 14387/2004 (2.ª Série), de 20 de Julho, veio estabelecer um conjunto de orientações sobre o processo de reorientação do percurso escolar do aluno, visando a mudança de curso entre os cursos criados ao abrigo do Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de Março, mediante recurso ao regime de permeabilidade ou ao regime de equivalência entre as disciplinas que integram os planos de estudos do curso de origem e as do curso de destino, prevendo que a atribuição de equivalências seria, posteriormente, objecto de regulamentação de acordo com tabela a aprovar por despacho ministerial.
Neste sentido, o Despacho n.º 22796/2005 (2.ª Série), de 4 de Novembro, veio concretizar a atribuição de equivalências entre disciplinas dos cursos científico-humanísticos, tecnológicos e artísticos especializados no domínio das artes visuais e dos audiovisuais, do ensino secundário em regime diurno, através da tabela constante do anexo a esse diploma, não tendo, no entanto, abrangido os restantes cursos criados ao abrigo do Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de Março.
A existência de constrangimentos na operacionalização do regime de permeabilidade estabelecido pelo Despacho n.º 14387/2004 (2.ª Série), de 20 de Julho, bem como os ajustamentos de natureza curricular efectuados nos cursos científico-humanísticos criados ao abrigo do Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de Março, implicaram a necessidade de se proceder ao reajuste do processo de reorientação do percurso escolar do aluno no âmbito dos cursos criados ao abrigo do mencionado Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de Março.
Desta forma, o presente diploma regulamenta o processo de reorientação do percurso formativo dos alunos entre os cursos científico-humanísticos, tecnológicos, artísticos especializados no domínio das artes visuais e dos audiovisuais, incluindo os do ensino recorrente, profissionais e ainda os cursos de educação e formação, quer os cursos conferentes de uma certificação de nível secundário de educação quer os que actualmente constituem uma via de acesso aos primeiros, criados ao abrigo do Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de Março, rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 44/2004, de 25 de Maio, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 24/2006, de 6 de Fevereiro, rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 23/2006, de 7 de Abril, e pelo Decreto-Lei n.º 272/2007, de 26 de Julho, e regulamentados, respectivamente, pelas Portarias n.º 550-D/2004, de 22 de Maio, alterada pela Portaria n.º 259/2006, de 14 de Março, n.º 550-A/2004, de 21 de Maio, com as alterações introduzidas pela Portaria n.º 260/2006, de 14 de Março, n.º 550-B/2004, de 21 de Maio, com as alterações introduzidas pela Portaria n.º 780/2006, de 9 de Agosto, n.º 550-E/2004, de 21 de Maio, com as alterações introduzidas pela Portaria n.º 781/2006, de 9 de Agosto, n.º 550-C/2004, de 21 de Maio, com as alterações introduzidas pela Portaria n.º 797/2006, de 10 de Agosto, e pelo Despacho Conjunto n.º 453/2004, de 27 de Julho, rectificado pela Rectificação n.º 1673/2004, de 7 de Setembro.
Assim, nos termos da alínea c) do artigo 4.º e do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de Março, rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 44/2004, de 25 de Maio, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 24/2006, de 6 de Fevereiro, rectificado pela Declaração de Rectificação nº 23/2006, de 7 de Abril, e pelo Decreto-Lei n.º 272/2007, de 26 de Julho, determino:
O que se segue é indiferente. São onze páginas do mesmo teor. Uma linguagem obscura e burocrática, ao serviço da megalomania centralizadora. Uma obsessão normativa e regulamentadora, na origem de um afã legislativo doentio. Notem-se as correcções, alterações e rectificações sucessivas. Medite-se na forma mental, na ideologia e no pensamento que inspiram este despacho. Será fácil compreender as razões pelas quais chegámos onde chegámos. E também por que, assim, nunca sairemos de onde estamos.
Sunday, March 02, 2008
Detalhes de ética política
António Bagão Félix - 20080302, Público O que conta cada vez mais não é a substância, mas a forma, não é a consistência mas a estatística1Nos interstícios dos factos políticos, às vezes sugeridos ou alimentados pela "arte"do Governo, outros assuntos de importância para as pessoas passam ao lado ou são apenas perceptíveis em "detalhes". Seleccionei três que revelam que o que conta cada vez mais não é a substância, mas a forma, não é a consistência, mas a estatística, não é a verdade técnica, mas a mentira política. |